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Revista Especial
  
Roteiro 7 - Na cruz, Cristo reconcilia justiça e amor.
Carta encíclica Deus Caritas Est
 

A novidade da fé bíblica

9. Antes de mais nada, temos a nova imagem de Deus. Nas culturas que circundam o mundo da Bíblia, a imagem de deus e dos deuses permanece, tudo somado, pouco clara e em si mesma contraditória. No itinerário da fé bíblica, ao invés, vai-se tornando cada vez mais claro e unívoco aquilo que a oração fundamental de Israel, o Shema, resume nestas palavras: « Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! » (Dt 6, 4). Existe um único Deus, que é o Criador do céu e da terra, e por isso é também o Deus de todos os homens. Dois fatos se singularizam neste esclarecimento: que verdadeiramente todos os outros deuses não são Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus, é criada por Ele. Certamente a idéia de uma criação existe também alhures, mas só aqui aparece perfeitamente claro que não um deus qualquer, mas o único Deus verdadeiro, Ele mesmo, é o autor de toda a realidade; esta provém da força da sua Palavra criadora. Isto significa que esta sua criatura Lhe é querida, precisamente porque foi desejada por Ele mesmo, foi « feita » por Ele. E assim aparece agora o segundo elemento importante: este Deus ama o homem. A força divina que Aristóteles, no auge da filosofia grega, procurou individuar mediante a reflexão, é certamente para cada ser objeto do desejo e do amor — como realidade amada esta divindade move o mundo  —, mas ela mesma não necessita de nada e não ama, é somente amada. Ao contrário, o único Deus em que Israel crê, ama pessoalmente. Além disso, o seu amor é um amor de eleição: entre todos os povos, Ele escolhe Israel e ama-o — mas com a finalidade de curar, precisamente deste modo, a humanidade inteira. Ele ama, e este seu amor pode ser qualificado sem dúvida como eros, que no entanto é totalmente ágape também.

Sobretudo os profetas Oséias e Ezequiel descreveram esta paixão de Deus pelo seu povo, com arrojadas imagens eróticas. A relação de Deus com Israel é ilustrada através das metáforas do noivado e do matrimônio; consequentemente, a idolatria é adultério e prostituição. Assim, se alude concretamente — como vimos — aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros, mas ao mesmo tempo é descrita também a relação de fidelidade entre Israel e o seu Deus. A história de amor de Deus com Israel consiste, na sua profundidade, no fato de que Ele dá a Torah, isto é, abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a estrada do verdadeiro humanismo. Por seu lado, o homem, vivendo na fidelidade ao único Deus, sente-se a si próprio como aquele que é amado por Deus e descobre a alegria na verdade, na justiça — a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial: « Quem terei eu nos céus? Além de Vós, nada mais anseio sobre a terra (...). O meu bem é estar perto de Deus » (Sal 73/72, 25.28).

10. O eros de Deus pelo homem — como dissemos — é ao mesmo tempo totalmente ágape. E não só porque é dado de maneira totalmente gratuita, sem mérito algum precedente, mas também porque é amor que perdoa. Sobretudo Oséias mostra-nos a dimensão da ágape no amor de Deus pelo homem, que supera largamente o aspeto da gratuidade. Israel cometeu « adultério », rompeu a Aliança; Deus deveria julgá-lo e repudiá-lo. Mas precisamente aqui se revela que Deus é Deus, e não homem: « Como te abandonarei, ó Efraim? Entregar-te-ei, ó Israel? O meu coração dá voltas dentro de mim, comove-se a minha compaixão. Não desafogarei o furor da minha cólera, não destruirei Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou Santo no meio de ti » (Os 11, 8-9). O amor apaixonado de Deus pelo seu povo — pelo homem — é ao mesmo tempo um amor que perdoa. E é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça. Nisto, o cristão vê já esboçar-se veladamente o mistério da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele próprio homem, segue-o até à morte e, deste modo, reconcilia justiça e amor.

O aspeto filosófico e histórico-religioso saliente nesta visão da Bíblia é o fato de, por um lado, nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafísica de Deus: Deus é absolutamente a fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas — o Logos, a razão primordial — é, ao mesmo tempo, um amante com toda a paixão de um verdadeiro amor. Deste modo, o eros é enobrecido ao máximo, mas simultaneamente tão purificado que se funde com a ágape. Daqui podemos compreender por que a recepção do Cântico dos Cânticos no cânone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no sentido de que aqueles cânticos de amor, no fundo, descreviam a relação de Deus com o homem e do homem com Deus. E, assim, o referido livro tornou-se, tanto na literatura cristã como na judaica, uma fonte de conhecimento e de experiência mística em que se exprime a essência da fé bíblica: na verdade, existe uma unificação do homem com Deus — o sonho originário do homem —, mas esta unificação não é confundir-se, um afundar no oceano anônimo do Divino; é unidade que cria amor, na qual ambos — Deus e o homem — permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa só: « Aquele, porém, que se une ao Senhor constitui, com Ele, um só espírito » — diz São Paulo (1 Cor 6, 17).

11. Como vimos, a primeira novidade da fé bíblica consiste na imagem de Deus; a segunda, essencialmente ligada a ela, encontramo-la na imagem do homem. A narração bíblica da criação fala da solidão do primeiro homem, Adão, querendo Deus pôr a seu lado um auxílio. Dentre todas as criaturas, nenhuma pôde ser para o homem aquela ajuda de que necessita, apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves, integrando-os assim no contexto da sua vida. Então, de uma costela do homem, Deus plasma a mulher. Agora Adão encontra a ajuda de que necessita: « Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne » (Gn 2, 23). Na base desta narração, é possível entrever concepções semelhantes às que aparecem, por exemplo, no mito referido por Platão, segundo o qual o homem originariamente era esférico, porque completo em si mesmo e auto-suficiente. Mas, como punição pela sua soberba, foi dividido ao meio por Zeus, de tal modo que agora sempre anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade. Na narração bíblica, não se fala de punição; porém, a idéia de que o homem de algum modo esteja incompleto, constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a sua totalidade, isto é, a idéia de que, só na comunhão com o outro sexo, possa tornar-se « completo », está sem dúvida presente. E, deste modo, a narração bíblica conclui com uma profecia sobre Adão: « Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne » (Gn 2, 24).

Aqui há dois aspetos importantes: primeiro, o eros está de certo modo enraizado na própria natureza do homem; Adão anda à procura e « deixa o pai e a mãe » para encontrar a mulher; só no seu conjunto é que representam a totalidade humana, tornam-se « uma só carne ». Não menos importante é o segundo aspeto: numa orientação baseada na criação, o eros impele o homem ao matrimônio, a uma ligação caracterizada pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, é que se realiza a sua finalidade íntima. À imagem do Deus monoteísta corresponde o matrimônio monogâmico. O matrimônio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano. Esta estreita ligação entre eros e matrimônio na Bíblia quase não encontra paralelos literários fora da mesma.

Jesus Cristo – o amor encarnado de Deus

12. Apesar de termos falado até agora prevalentemente do Antigo Testamento, já se deixou clara a íntima compenetração dos dois Testamentos como única Escritura da fé cristã. A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas idéias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos — um incrível realismo. Já no Antigo Testamento a novidade bíblica não consistia simplesmente em noções abstratas, mas na ação imprevisível e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta ação de Deus ganha agora a sua forma dramática devido ao fato de que, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da « ovelha perdida », a humanidade sofredora e transviada. Quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, mas constituem a explicação do seu próprio ser e agir. Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo — o amor na sua forma mais radical. O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João (cf. 19, 37), compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Encíclica: « Deus é amor » (1 Jo 4, 8). É lá que esta verdade pode ser contemplada. E começando de lá, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e amar.

13. Jesus deu a este ato de oferta uma presença duradoura através da instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. Antecipa a sua morte e ressurreição entregando-Se já naquela hora aos seus discípulos, no pão e no vinho, a Si próprio, ao seu corpo e sangue como novo maná (cf. Jo 6, 31-33). Se o mundo antigo tinha sonhado que, no fundo, o verdadeiro alimento do homem — aquilo de que este vive enquanto homem — era o Logos, a sabedoria eterna, agora este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para nós — como amor. A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação. A imagem do matrimônio entre Deus e Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebível: o que era um estar na presença de Deus torna-se agora, através da participação na doação de Jesus, comunhão no seu corpo e sangue, torna-se união. A « mística » do Sacramento, que se funda no abaixamento de Deus até nós, é de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mística elevação do homem poderia realizar.

14. Temos agora de prestar atenção a outro aspeto: a « mística » do Sacramento tem um caráter social, porque, na comunhão sacramental, eu fico unido ao Senhor como todos os demais comungantes: « Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão » — diz São Paulo (1 Cor 10, 17). A união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou tornarão Seus. A comunhão tira-me para fora de mim mesmo projetando-me para Ele e, deste modo, também para a união com todos os cristãos.

Tornamo-nos « um só corpo », fundidos todos numa única existência. O amor a Deus e o amor ao próximo estão agora verdadeiramente juntos: o Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que o termo ágape se tenha tornado também um nome da Eucaristia: nesta a ágape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua ação em nós e através de nós. Só a partir desta fundamentação cristológico-sacramental é que se pode entender corretamente o ensinamento de Jesus sobre o amor. A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo, a derivação de toda a vida de fé da centralidade deste preceito não é uma simples moral que possa, depois, subsistir autonomamente ao lado da fé em Cristo e da sua re-atualização no Sacramento: fé, culto e ethos compenetram-se mutuamente como uma única realidade que se configura no encontro com a ágape de Deus. Aqui, a habitual contraposição entre culto e ética simplesmente desaparece. No próprio « culto », na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar, por sua vez, os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido, é em si mesma fragmentária. Por outro lado — como adiante havemos de considerar de modo mais detalhado — o « mandamento » do amor só se torna possível porque não é mera exigência: o amor pode ser « mandado », porque antes nos é dado.

15. É a partir deste princípio que devem ser entendidas também as grandes parábolas de Jesus. O rico avarento (cf. Lc 16, 19-31) implora, do lugar do suplício, que os seus irmãos sejam informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava necessidade. Jesus recolhe, por assim dizer, aquele grito de socorro e repete-o para nos acautelar e reconduzir ao bom caminho. A parábola do bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37) leva a dois esclarecimentos importantes. Enquanto o conceito de « próximo », até então, se referia essencialmente aos concidadãos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de Israel, ou seja, à comunidade solidária de um país e de um povo, agora este limite é abolido.

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é o meu próximo. O conceito de próximo fica universalizado, sem deixar todavia de ser concreto. Apesar da sua extensão a todos os homens, não se reduz à expressão de um amor genérico e abstrato, em si mesmo pouco comprometedor, mas requer o meu empenho prático aqui e agora. Continua a ser tarefa da Igreja interpretar sempre de novo esta ligação entre distante e próximo na vida prática dos seus membros. É preciso, enfim, recordar de modo particular a grande parábola do Juízo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. « Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40). Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus.


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