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Acima, Sem Título (s.d.),
de Arthur Bispo do Rosário:
peça em plena sintonia com questões
estéticas contemporâneas


O artista redentor
Ordenação e Vertigem, programa multidisciplinar em torno de Arthur Bispo do Rosário, prova a coerência e a atualidade de uma obra bordada na solidão de um manicômio
Por Gisele Kato

Quando conversava com os visitantes da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde ficou internado de 1939 a 1989, Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) dizia que era obrigado por “uma voz” a produzir os mantos, estandartes e assemblages que ia acumulando, e que, se pudesse, “não fazia nada”. Endereçava as peças a Deus, à Virgem ou a uma das estagiárias da clínica, Rosângela Maria, eleita a sua namorada. Para entrar em seu quarto, exigia que se acertasse a cor de sua aura. Azul, na maioria das vezes. Antes, porém, do longo e definitivo recolhimento no hospital psiquiátrico, foi marinheiro e pugilista. A biografia é tão fascinante que desafia uma História da Arte pensada para apontar as criações de valor independentemente de seus autores. A desejada separação entre vida e obra, no entanto, torna-se difícil quando se sabe que a linha azul dos bordados de Bispo do Rosário vinha de seu próprio uniforme de interno. Ou que a maior parte das peças seriam levadas por ele ao Reino dos Céus. Soma-se à tentação de uma trajetória pessoal tão surpreendente o fato de que Bispo nunca se viu como artista, nunca se ligou a uma escola de artes plásticas, nunca chegou a ter de fato contato com outras manifestações artísticas e, mesmo assim, fez arte. E arte em plena sintonia com as questões contemporâneas.

A iniciativa intitulada Ordenação e Vertigem, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo até 12 de outubro, volta-se justamente para essa percepção, procurando avançar no processo de reconhecimento da produção de Bispo do Rosário, um esforço bastante recente, iniciado nos anos 80 e firmado com a mostra organizada em 1990, no Museu de Arte Contemporânea da USP, na Cidade Universitária. Depois dessa individual, as obras já participaram da Bienal de Veneza de 1995, integraram coletivas em Buenos Aires, Nova York, México, e, neste mês mesmo, estão também no Jeu du Paume de Paris, sob a coordenação de Daniel Abadie. “Para a França foram as peças mais exuberantes, os mantos, por exemplo. No CCBB-SP, exibimos as criações que ressaltam sua confluência com outros artistas e conceitos como o colecionismo e as apropriações”, diz Jane de Almeida, que, junto com Jorge Anthonio e Silva, assina a curadoria-geral de Ordenação e Vertigem. A programação estende-se para diversas áreas, com curadorias específicas: Agnaldo Farias para as artes plásticas, Rubens Fernandes Junior para fotografia, Carlos Augusto Calil para cinema, Arrigo Barnabé para música e Vera Sala para a dança.

Todos os segmentos que compõem a iniciativa, distribuídos pelos três andares do centro e também pelo subsolo, trabalham com a mesma proposta, fugindo de qualquer montagem mais ilustrativa em torno da obra de Bispo. Jane de Almeida e Jorge Anthonio e Silva evitam o ponto de vista desenvolvido por Nise da Silveira no Museu do Inconsciente, que defendia a prática artística entre os internos de manicômios como um meio de recuperação. “Fugimos a todo custo dessa vertente junguiana, interpretativa. Não queremos fechar as possibilidades de sentido dos elementos postos nas obras, remetê-los sempre a um dado da história de vida de seu autor”, diz a curadora-geral. O sergipano de Japaratuba dissolve ainda outro paradigma incômodo para a História da Arte: “Estamos sempre tomados pelo tal ‘demônio das comparações’, tentados a descobrir a alteridade das obras, a separar originais e cópias. Bispo mostra-nos que não há um original. Trabalhou sempre alheio a todo o circuito”. O título da grande exposição que toma todo o CCBB-SP, constituindo o maior programa já realizado pela instituição paulista, destaca justamente esse corte que Arthur Bispo do Rosário provoca na forma como se costuma apreciar arte.

Pode-se dizer que seu processo criativo decorre de uma obcecada busca por organização. Ele juntava canecas, barquinhos, nomes, vassouras, com uma determinação que acabou por lhe render o diagnóstico da loucura. “Mas a catalogação do mundo surgiu com Aristóteles, decorrente de uma necessidade social, para lidarmos melhor com as informações que circulam no mundo”, diz Jane de Almeida. Exatamente o que fez Bispo, só que ele não aceitou a classificação consagrada pela história e pôs-se a construir uma nova. Dessa forma, a curadoria ressalta que o limite entre a ordem e a vertigem é não só estreito como também quase insignificante em algumas circunstâncias. E apresenta Bispo do Rosário como um grande artista. Um dos maiores do cenário nacional. Espécie de redentor da História da Arte.

Em torno dele, Agnaldo Farias escolheu 12 importantes nomes da produção contemporânea cuja obra prova justamente a atualidade das assemblages feitas na Colônia Juliano Moreira. Na seleção, no entanto, tomou todo o cuidado para que as afinidades entre as criações não encobrissem por demais suas singularidades: “É uma operação que sempre se realiza sob o risco do reducionismo. Arthur Bispo do Rosário não realizou seu trabalho a partir ou contra esta ou aquela obra, esta ou aquela corrente estética, o que não impede que ele surpreenda por sua coerência interna e pelos cristalinos pontos de contato com alguns dos achados estéticos que garantiram ao século 20 sua feição característica”. Isolado, Bispo do Rosário criou peças em suportes inovadores, apropriou-se dos mais variados objetos para tratá-los sob a ótica do colecionismo, da catalogação, da ordenação, como, de certa forma, fazem e fizeram Nelson Leirner, Marepe, Leonilson, Sandra Cinto, Adrianne Gallinari, Marcelo Silveira, Elida Tessler, Lia Chaia, Marcos Chaves, Courtney Smith, Lia Menna Barreto e Martinho Patrício. Entre os artistas reunidos por Agnaldo Farias, há alguns com obras inéditas, como Nelson Leirner e Elida Tessler, que prepararam instalações. De outros, o curador expõe criações conhecidas, como A Ponte Impossível, feita por Sandra Cinto em 1998, ou a última instalação de Leonilson, apresentada em 1993 na Capela do Morumbi, em São Paulo.

Para o segmento de fotografia, Rubens Fernandes Junior convidou Gal Oppido, Eustáquio Neves, Cássio Vasconcellos, Márcia Xavier, Odires Mászlo e Penna Prearo. Com ensaios inéditos, eles procuram causar no espectador um certo “mal-estar inicial, de pura provocação e estranhamento”, como diz o curador. Dessa forma, por exemplo, Cássio Vasconcellos exibe um conjunto de imagens tiradas do helicóptero em uma manhã de Carnaval. Tem-se “a vertigem do vôo e a ordenação das cenas vistas do alto, como um pátio com ônibus estacionados e a rodovia dos Bandeirantes com a saída repleta de carros enfileirados”. Na música, Arrigo Barnabé preparou uma instalação com cem metrônomos que vão reproduzir o Poema Sinfônico do consagrado Gyorgy Ligeti; e, em cinema, entre os cerca de 30 longas e curtas-metragens escolhidos por Carlos Augusto Calil, destaca-se O Prisioneiro da Passagem, dirigido por Hugo Denizart em 1982, que contém imagens do próprio Bispo do Rosário. Ordenação e Vertigem prevê ainda diversas palestras com críticos de arte, filósofos e psicanalistas. O conteúdo todo das discussões, assim como reproduções das obras expostas, será reunido em um catálogo, a ser lançado no dia 30, às 19h40.

Serviço

Ordenação e Vertigem. Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo (rua Álvares Penteado, 112, Centro, SP, tel. 0++/11/3113-3651). Até 12/10. De 3ª a dom., das 12h às 20h. Grátis.

Palestras e debate: dia 16, às 18h30, Loucura, Feminilidade e Criação - Uma Leitura Psicanalítica da Arte, por Joel Birman; dia 17, às 18h30, O Caos e Suas Ordens, por Renato Janine Ribeiro; dia 30, às 18h30, Instalações/intervenções em espaços específicos: convergências e elementos diferenciais, debate com Agnaldo Farias