A iniciativa de criação da Comissão da Verdade da PUC-SP Reitora Nadir Gouvêa Kfouri – CVPUC, como visto, partiu de um grupo de professores atentos ao debate nacional que, em parte, se desenvolvia em razão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade criada em 2011, que considerou que a PUC-SP, além de uma honrosa trajetória de resistências, também tem importantes contribuições a fazer na reconstituição da verdade e da memória dos anos em que o país viveu baixo o obscurantismo de uma ditadura militar.
Como se sabe, a PUC-SP também sofreu graves violações aos direitos humanos cometidas pelo regime militar e especialmente alguns episódios não só constituem eixos para a recuperação da história da PUC-SP, para a reconstituição do modo como as universidades foram atingidas pelas leis de exceção da ditadura, como também para ilustração da história do país deste período que, quase sempre, é contada sem enfrentar corajosamente fatos que marcaram as diversas etapas do período 1964 – 1988. Os principais episódios que marcaram a história da PUC-SP, e do país, neste período foram:
• o crescimento do movimento estudantil em 1968/69 que teve na PUC-SP um dos seus principais centros, assim como o assassinato de cinco de seus estudantes;
• o acolhimento de professores cassados ou aposentados compulsoriamente e alunos perseguidos e/ou expulsos, sobretudo da USP, assim como de outras universidades e instituições públicas do país;
• a contratação de perseguidos políticos que saíam das prisões ou que regressavam do exílio;
• a realização da 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, em julho de 1977, proibida em outras universidades por ter se tornado um fórum de denuncias dos atos da ditadura;
• a invasão do campus Monte Alegre por forças policiais do Estado após a realização do proibido III Encontro Nacional de Estudantes, em setembro de 1977;
• a realização do I Congresso da Anistia, em novembro de 1978;
• a convocação pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo de ato público, em agosto de 1980 no Teatro da Universidade Católica – TUCA, em protesto aos atentados terroristas da extrema direita no período final da ditadura;
• e as ocorrências de dois incêndios do teatro TUCA, o segundo com fortes indícios de ser criminoso, entre outros eventos.
Uma vez esboçado o projeto da CVPUC, esse grupo de professores procurou instâncias superiores da PUC-SP em busca de suporte institucional, mediante a apresentação deste projeto ao Conselho Universitário - CONSUN, em sua reunião do dia 27 de abril de 2013. A criação da Comissão da Verdade da PUC-SP foi aprovada, unanimemente, por aclamação.
Após a aprovação do CONSUN, a Secretaria Executiva da Fundação São Paulo e a Reitoria, por meio do Ato Conjunto 02/2013, de 10/05/2013, formalizaram a existência e o funcionamento da CVPUC, denominando-a Comissão da Verdade da PUC-SP “Reitora Nadir Gouvêa Kfouri”.
Conforme estabelece o próprio Ato de sua criação, a CVPUC desenvolveu seus trabalhos em colaboração com professores, funcionários, alunos e ex-alunos; em parcerias com outras Comissões da Verdade, nacional, locais e setoriais; em colaboração com entidades de defesa dos Direitos Humanos e com todos aqueles comprometidos com os seus objetivos que tratam de examinar e esclarecer as graves violações aos direitos humanos e as ações de resistência que ocorreram na Universidade, no período 1964 - 1988. Assim, os seus eixos de trabalho foram os seguintes:
• violências da ditadura praticadas contra a comunidade da PUC-SP tais como perseguições a professores, funcionários e estudantes; os assassinatos e desaparecimentos de membros de sua comunidade; a invasão policial do campus da Monte Alegre para repressão do III Encontro Nacional dos Estudantes que aí se realizava e os incêndios do Teatro da Universidade Católica - TUCA;
• ações de resistência institucional e da comunidade em episódios como os do movimento estudantil da PUC-SP; criação e trajetória de lutas das associações dos professores, APROPUC, e dos funcionários, AFAPUC; acolhimento de professores cassados e alunos expulsos de outras universidades; assim como acolhimento da 29º reunião da SBPC, proibida em outras universidades, e do I Congresso da Anistia;
• levantamento e disponibilização de pesquisas e estudos desenvolvidos na PUC-SP sobre a ditadura;
• e a criação de um site/memorial permanente para disponibilização pública das pesquisas, depoimentos e material coletados no desenvolvimento dos trabalhos da CVPUC.
A Comissão é composta por sete professores, um deles membro honorário, e um representante da Fundação São Paulo, mantenedora da Universidade, indicados a seguir.
• Dr. Antônio Carlos Malheiros
Faculdade de Direito - Departamento de Direitos Difusos e Coletivos
• Profa. Dra. Heloísa de Faria Cruz
Faculdade de Ciências Sociais - Departamento de História
• Profa. Dra. Leslie Denise Beloque
Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais - Departamento de Economia
• Profa. Dra. Marijane Vieira Lisboa
Faculdade de Ciências Sociais - Departamento de Sociologia
• Profa. Dra. Rosalina de Santa Cruz Leite
Faculdade de Ciências Sociais - Departamento de Política Social e Gestão Social
• Profa. Dra. Salma Tannus Muchail
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes - Departamento de Filosofia
• Dra. Ana Paula Albuquerque Grillo
Representante da Arquidiocese de São Paulo - Fundação São Paulo
• Prof. Dr. Edênio dos Reis Valle - Membro Honorário
Faculdade de Ciências Sociais - Departamento de Ciência da Religião
Além disso, considerando que a CVPUC também tem por objetivo o desenvolvimento de atividades pedagógicas no interior da Universidade, agregou em sua composição 10 estudantes da PUC-SP – selecionados mediante Edital Público para um programa especial de bolsas de pesquisas vinculadas à Comissão – para, de um lado, incorporar estudantes às atividades realizadas, às pesquisas e ao debate dos fatos e processos deste período e, de outro lado, realizar pesquisa de Iniciação Científica tendo em vista os temas do plano de trabalho da Comissão.
Assim criada, a instalação oficial da Comissão aconteceu em 06 de junho de 2013, em uma cerimônia com expressiva participação de estudantes, professores, funcionários; representantes da sociedade civil e dos principais movimentos populares e de Direitos Humanos, tais como a Comissão Nacional da Verdade; a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva; a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Movimento dos Familiares de Desaparecidos, entre outras entidades e autoridades. Mais que tudo, foi uma cerimônia permeada de justas e simbólicas homenagens: desde o local físico de realização do evento, o teatro Tucarena, passando pelo nome atribuído à Comissão, Reitora Nadir Gouvêa Kfouri, até a gratificante presença de convidados especiais e da comunidade puqueana.
No dia 16 de outubro de 2013 a Comissão da Verdade da PUC-SP firmou convênios de parceria com a Comissão Nacional da Verdade e com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, instalando em seguida, no mesmo dia, sua Primeira Sessão Pública, no Auditório Paulo Freire, para apresentação à comunidade de seu Plano de Trabalho.
No desenvolvimento de seus trabalhos, a CVPUC promoveu inúmeras atividades no interior da Universidade, assim como organizou ou colaborou em atividades da sociedade civil, tais como debates em colégios da periferia, na constituição da rede das Comissões da Verdade Universitárias, contribuição para a redação do capítulo sobre as Universidades no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, entre outras. A relação das atividades da CVPUC encontra-se adiante, neste Relatório; relação esta que remete, também, a relatórios de outras Comissões, entidades, depoimentos, acessos a links, sites e textos escritos por protagonistas desta história.
E, por fim, destaque-se que a escolha do nome da CVPUC foi uma homenagem à Professora Dra. Nadir Gouvêa Kfouri, primeira reitora, no Brasil, indicada pelo voto direto da comunidade acadêmica, assim como a primeira mulher reitora de uma Universidade no país e de uma Universidade Católica no mundo.
Dar o seu nome à CVPUC foi uma forma de tornar vivos não só a sua presença, como também a sua opção, sem tréguas, por uma pedagogia democrática e emancipadora.
A fim de manter acesa a lembrança de Nadir Gouvêa Kfouri e/ou traze-la ao conhecimento das novas gerações, segue-se a sua biografia escrita pelas Professoras Mariângela Belfiore Wanderley e Raquel Raichelis, em 2011, para a Revista Serviço Social & Sociedade com o título Nadir Kfouri, patrimônio do Serviço Social brasileiro e da PUC-SP.
É com profunda emoção que ocupamos este espaço da Revista Serviço Social & Sociedade para prestar uma homenagem a Nadir Kfouri, um dos maiores legados do Serviço Social brasileiro e da PUC-SP.
Em um número de julho de 1984, do Porandubas, jornal interno da PUC-SP à época, uma longa entrevista intitulada "Dia simplesmente" marcava o fim de seus dois mandatos como reitora dessa Universidade. [Vários] anos se passaram desde então e a marca de nossa querida reitora está indelevelmente "inscrita" na história da PUC-SP.
Retoma-se brevemente traços de sua biografia publicados na referida entrevista. É Nadir nos falando de si, de sua família, de suas escolhas, de sua experiência de vida como assistente social, educadora e cidadã inserida radicalmente em seu tempo.
Nadir Gouvêa Kfouri nasceu em Avaré, em 19 de dezembro de 1913, numa família de origem libanesa de seis filhos. A família mudou-se para São Paulo quando ela tinha 14 anos. Seu pai, Salomão Kfouri, comerciante, foi um homem trabalhador que ganhava bem, mas, com família tão grande, precisou contar com o trabalho de seus filhos. Trabalhando desde os 18 anos, Nadir dizia aos 70 anos: tenho uma longa vivência de assalariada. Relembra o pai como alguém que exerceu grande influência sobre ela. Mesmo sem nunca ter frequentado a escola, falava e escrevia corretamente em português, francês e árabe e gostava muito de literatura. Com ele aprendeu o amor pelos livros. Nadir viveu rodeada de livros, lia vários ao mesmo tempo, em português e inglês, literatura clássica, grandes escritores contemporâneos. Ler era seu entretenimento preferido, nas suas palavras: quando estou lendo sou uma excelente companhia para mim mesma, me distraio muito, gosto de ler...
Fez toda a sua formação em escolas públicas: Escola Caetano de Campos, Instituto de Educação da Universidade de São Paulo (cursos de aperfeiçoamento pedagógico), que muito contribuíram para sua formação profissional. Participou intensamente de movimentos da Ação Católica. Dizia ela: aí fui me inflamando por essa sede de justiça, que trago em mim até hoje. Se tivéssemos que escolher uma única característica de Nadir Kfouri, diríamos que é exatamente essa busca de justiça que a conduziu em cada um de seus passos e, certamente, foi um dos motivos que a fez optar por cursar Serviço Social na primeira escola brasileira. Fez parte da 1ª turma, juntamente com Helena Junqueira e Luci Montoro [esposa de Franco Montoro, posteriormente governador do Estado de São Paulo].
Seu registro no Conselho Regional de Assistência Social é de número 26. Formou-se em Serviço Social em 1938. Seu trabalho de conclusão de curso foi sobre os Educandários da Capital, em que mostrava o absurdo de uma disciplina rígida, numa total ausência de relacionamento pedagógico com as crianças e adolescentes.
Tem início uma rica vida profissional como assistente social e educadora.
A partir de 1940 foi professora na Escola de Serviço Social, então agregada à PUC-SP. Viajou aos Estados Unidos como bolsista de pós-graduação na National Catholic School of Social Service, em Washington. Fez apenas os créditos, pois precisaria de mais tempo para elaborar a tese, porém, em suas palavras, a Faculdade precisava de mim, e então voltou para assumir a Vice-Direção, em 1947, e a Direção, em 1951.
Foi também diretora e assistente social da Legião Brasileira de Assistência — LBA em São Paulo e da Secretaria do Bem-Estar Social do município de São Paulo.
Nadir formou gerações de assistentes sociais, deu cursos em todo o Brasil e em países da América do Sul. Como perita das Nações Unidas, deu aulas em escolas sediadas em Madri e Barcelona. Da Espanha voltou apaixonada, como ela mesma dizia: não é preciso dizer por que a gente se apaixona pela Espanha. O espanhol é cheio de vitalidade e ao mesmo tempo tem grande sentido de tragédia, que se vê em Garcia Lorca.
Em 1970, a Escola de Serviço Social passou a integrar a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, em 1972, Nadir se tornou Diretora do Centro de Ciências Humanas, cargo do qual se demitiu por discordar da forma como o desdobramento daquele Centro – que naquele tempo englobava também os cursos de Ciências Jurídicas e Econômicas – foi conduzido pela Reitoria e pelo Conselho Universitário.
Em 1976 assumiu a função de Reitora da PUC-SP, por indicação do então Grão-Chanceler D. Paulo Evaristo Arns, que precisou interceder junto ao Papa Paulo VI para quebrar o tabu de ser a pioneira entre as mulheres a ser indicada para esse cargo em uma universidade católica. Ela mesma nos contou que, chamada por D. Paulo, foi cheia de argumentos para não aceitar o convite. Porém D. Paulo não lhe deu muita chance de argumentação e disse-lhe: já sei de todos os seus argumentos. Mas sei que seu nome tem boa aceitação na comunidade Este é o Ano Internacional da Mulher e gostaria muito que na Reitoria da PUC-SP estivesse uma mulher. Iniciava-se assim sua trajetória como reitora. Em 1980 é reeleita pelo voto direto da comunidade puqueana para mais um mandato. Era a primeira vez que a PUC-SP elegia seu reitor através de eleições diretas, fato que inaugurava este procedimento democrático na universidade brasileira. Suas palavras expressam o que esta experiência representou para ela:
A lição que recebi é de como é difícil a prática democrática Eu me considero uma mulher democrática e estou convencida de que a democracia se aprende vivendo ... Somos um povo com pouca vivência democrática [...]. A lição é esta: a democracia vale a pena, é um desafio, é difícil Requer um esforço de toda hora. A PUC é em si mesma uma alegria para mim... A responsabilidade não me intimida mas a ideia de dominação sempre me foi intolerável. Talvez isso tenha marcado minha reitoria, no sentido de sempre trabalhar em equipe. Formei equipe com pessoas diferentes, porém capazes de trabalhar juntas e encontrar um fundamento que é o projeto educacional da PUC. Se somos educadores, devemos ser capazes de nos relacionar e trabalhar juntos. Exercer o poder numa democracia é assumir a responsabilidade até o fim: é respeitar e exigir respeito. Quando os alunos ocuparam minha sala, fiquei chocada. Foi uma experiência extremamente penosa. Por quê? Pois eu, como reitora, nunca entraria num Centro Acadêmico sem antes avisar... O que me preocupa é que vivemos numa sociedade autoritária e contaminados por ela. Sei que vivemos momentos difíceis de transição de costumes, num mundo extremante violento. Os educadores estão perplexos...
A gestão de Nadir Kfouri enfrentou momentos importantes e difíceis vividos pela PUC-SP no contexto da ditadura. Foi uma defensora da Universidade diante das arbitrariedades da ditadura militar, abriu as portas da Universidade Católica para intelectuais perseguidos, entre os quais Paulo Freire e Florestan Fernandes, e iniciou a reconstrução do TUCA, teatro da PUC-SP, após os incêndios criminosos de 1984.
O episódio de maior tensão foi certamente a invasão da PUC-SP pelas forças policiais comandadas pelo coronel Erasmo Dias, então Secretário de Segurança de São Paulo, que ela enfrentou do jeito que sempre foi: como mulher forte e decidida, coerente com seus princípios de preservação da autonomia universitária, inabalável na afirmação da justiça e do respeito à dignidade humana.
Noticiada amplamente pela imprensa, permanece na memória a cena histórica protagonizada pela reitora, ao deixar o secretário da Segurança de São Paulo, coronel Erasmo Dias, de mão suspensa no ar, ao se recusar a cumprimentá-lo na noite em que a polícia que ele comandava invadiu violentamente a PUC-SP, onde se realizava um encontro para a retomada da UNE, em 1977: não dou a mão a assassinos, disse do alto de sua altiva indignação.
Vale a pena registrar aspectos de sua vida pessoal, que tem como um de seus maiores prazeres a convivência com sua família (tenho uma sobrinhada que é uma beleza); que gostava de viajar, fazer amigos (tenho amizades que vêm da infância e tenho amigos em várias partes do mundo); que gostava de uma cervejinha; que era uma incondicional torcedora do Corinthians e fiel ao cristianismo, que para ela sempre foi um estímulo e uma orientação de vida.
Com estes fragmentos [o objetivo foi] partilhar (...) traços dessa pessoa incomum que foi Nadir Kfouri. Para as novas gerações fica aqui um exemplo de educadora que concebe a Universidade como o lugar por excelência onde se questiona, se exerce a liberdade e se adquire consciência crítica.
Como gestora democrática, ciente de suas responsabilidades, respeitou as diferentes opiniões e propostas, caminhou orientada pela justiça na busca de uma universidade autônoma comprometida com seu tempo.
Este é o legado de Nadir Gouvêa Kfouri, falecida em 13 de setembro de 2011, aos 97 anos. Deixa para a Universidade brasileira, para a PUC-SP e para o Serviço Social brasileiro um enorme legado, expresso, entre múltiplas conquistas, pela construção da primeira pós-graduação em Serviço Social no país.
A ela nossa gratidão, nosso reconhecimento e nossa saudade.