| AS HEROÍNASLiliana Liviano Wahba
 
 
 Introdução
 O significado do mitologema do herói e da heroína  para a psique refere-se a comportamentos representativos de um enfrentamento,  seja este de ordem moral, intelectual, emocional. O ciclo heróico retrata uma  saga que objetiva a conquista de um bem, de uma finalidade que ultrapassa as  ações do cotidiano à procura de soluções que o ser humano comum não consegue  alcançar. Seja via enfrentamento de um perigo e ameaça iminente, de uma  necessidade de superação e de atinar com novos parâmetros na vida, de uma  empreitada rumo ao desconhecido, sempre acompanhada da coragem de lançar-se, de  transcender as normas convencionais e de confiar na liberdade de ser.
 Nos  mitos e  lendas o herói e a heroína são freqüentemente protegidos por deuses favoráveis;  no entanto, também sofrem a perseguição de deuses contrários e hostis.
 Cada ação, tesouro, bens conquistados, assim como os  elementos protetores ou negativos, constituem símbolos cuja mensagem aponta  para o desenvolvimento interior.
 
 As heroínas
 Descreveremos a seguir algumas heroínas procurando  decifrar suas mensagens simbólicas. Pode-se vivenciar emocionalmente o que  essas heroínas representam em diferentes momentos da vida.
 Mais do que procurar uma tipologia, de quem  representa o quê para um tipo específico de personalidade, ajuda pensar que  cada heroína tem facetas com as quais podemos nos identificar em determinada  fase da vida, quando um enfrentamento se apresenta, quando uma mudança difícil  requer coragem e segurança.
 Um elemento comum das heroínas a seguir descritas é que  elas desafiarão um padrão vigente, serão desobedientes àquilo que delas se  espera. Se não o fizessem, a tarefa heróica seria truncada ou jamais se  iniciaria. Veremos como o padrão patriarcal da cultura, entendido como o  domínio do poder masculino, da lei e da norma, sem diálogo de opostos e  contemplação de diferenças, é confrontado.
 Outro elemento essencial é a coragem, seja ela  física, de luta, ou de acreditar em princípios e se pautar por eles,  contestando o poder que se lhes contrapõe.
 Cabe à mulher trilhar o seu percurso  desvencilhando-se de projeções que a sociedade lhe impôs, tais como sua  natureza maternal, a doçura feminina, a incapacidade de um pensamento original,  a sexualidade domada. Cabe-lhe também o desenvolvimento - parte de sua natureza  - da inteligência, da indagação, da capacidade de trabalho, assim como do  cuidado materno.
 Os mitos, de origem arquetípica, revelam as distintas  facetas de ser que extrapolam aquilo que se privilegia ou desenvolve em  determinada época e cultura. A apresentação a seguir é um esboço que permite  múltiplos desdobramentos.
 
 HEROÍNAS GUERREIRAS
 
 Hipólita
 Rainha das Amazonas, as guerreiras que lutavam contra  os homens e defendiam seu território, arqueiras certeiras e exímias com  cavalos. São devotas à deusa Ártemis, a virgem assassina e protetora, que mata  com suas temíveis flechas. Essa deusa da fertilidade e da fecundidade possui um  duplo aspecto: divindade da floresta, protetora das Amazonas e de seus  escolhidos, deusa dos partos, e também guerreira que amedronta.
 Hipólita tinha um cinto que lhe foi presenteado pelo  deus da guerra, Ares, e uma das tarefas do herói Heracles era se apoderar deste.  Ela se prontificou a entregá-lo a ele, mas devido a uma intriga de uma deusa,  Heracles foi levado a acreditar que era uma traição e assim matou a corajosa  rainha e tirou-lhe o cinto.
 Hipólita representa, assim, a mulher que possui o  poder, já que o cinto representa poder e elemento de ligação, engajamento, e se  prontifica a entregar sua autossuficiência para viver o amor. O ato de Hipólita  foi consciente e, como muitas mulheres, é fadada às vezes à entrega errada e sofre  uma traição. Heracles não estava à altura da grandeza da rainha e ela pagou com  a vida. Devemos lembrar que o mito traz um ensinamento, pelo qual mulheres  traídas, identificadas à corajosa rainha, hão de encontrar o refúgio de não  serem as únicas que se deixaram enganar, para poder prosseguir a cavalgada após  a queda. Ou seja, a heroína não vence todas as batalhas, até morre, assim como  nos sentimos morrer após uma grave desilusão.
 
 Brunhilda
 Esta é uma complexa heroína que também irá morrer. Observa-se  que a morte mitológica não se interpreta simbolicamente somente como fracasso,  mas como o sentimento imbuído de quem vivencia esse mito: a morte representa o  fim de algo, de um estado de consciência.
 Brunhilda é a principal das Valquirias da mitologia nórdica,  intrépidas guerreiras - filhas do deus supremo Wotan -, que levam os heróis  escolhidos que sucumbem em batalha para a vida eterna do Valhala, ao lado do deus.  Preferida do pai, ousa rebelar-se contra ele e desafiar seus veredictos por  achá-los injustos. Um novo ciclo se anuncia com a descoberta da verdade por  parte de Brunhilda. É castigada duramente e condenada à mortalidade já que,  como filha de Wotan, era imortal.
 É também condenada a permanecer em sono prolongado em  uma rocha rodeada de círculo de fogo, até que um homem ousasse desvirginá-la. O  herói Siegfrid terá essa coragem, apaixonado pela bela Brunhilda. No entanto,  depois de viverem um amor intenso ele viaja e a esquece. Apesar de ser vítima  de uma poção do esquecimento, não deixa de representar a mulher abandonado pelo  amado.
 Brunhilda simboliza a integridade e a heróica missão  de conduzirmos metas apesar de sermos limitados e finitos. Ela segue a verdade  interior, contesta o poder paterno e os dogmas e prefere ser fiel a si mesma.  Entrega-se ao amor por inteiro e essa capacidade de doação da heroína não mede  vantagens ou lucros. A heroína guerreira, a filha do pai, transforma-se em  heroína do amor e da verdade.
 
 HEROÍNAS DO AMOR
 
 Ariadne
 É filha do rei Minos e irmã do Minotauro, metade  touro e metade humano, ao qual entregavam jovens em sacrifício. Vivia no  labirinto de onde ninguém conseguia sair. Quando Teseu, o herói grego, foi enfrentá-lo,  Ariadne se apaixonou por ele e, desafiando o pai, lhe entregou um novelo de  fios para encontrar o caminho de volta. Teseu matou o Minotauro e sua promessa  de casar com Ariadne foi desfeita, já que a abandonou no caminho de volta a  Atenas em uma ilha. O deus Dioniso, deus do vinho, do êxtase, se apaixonou por  ela, e tiveram quatro filhos formando um casal.
 Ariadne é outra heroína traída, e representa aquela  que contesta as convenções e papéis tradicionais familiares para seguir o amor  e amadurecer como mulher. Apesar de traída por Teseu, o encontro com Dioniso  simboliza uma mulher que conseguiu realizar suas paixões, gratificada pelo deus  da sensualidade, da dança, da alegria de viver. Muitas mulheres permanecem  rigidamente atreladas a papéis e expectativas sociais e não descobrem o  feminino sensual escondendo sua vitalidade.
 
 Hipermnestra
 Era uma das filhas do rei Danaó que fundou a cidade  de Argos e que tinha 50 filhas: as Danaides. Inimigo de seu irmão gêmeo, o qual  tinha também 50 filhos, promete desposá-las com eles, mas teriam que matar os  maridos na noite de núpcias. Todas assim o fazem a não ser Hipermnestra, que  poupa o marido. O significado de seu nome é a que reflete, tem medida,  moderação. O pai a prende, em julgamento, e é liberada por uma corte de deuses  que admitem o valor de seu ato justificado pelo amor.
 Esta heroína também representa a contestação de  normas patriarcais impostas, que fazem com que a mulher nutra ódio pelo homem,  o agrida, por permanecer fiel à imagem paterna sem poder crescer como mulher  independente. É interessante avaliar o símbolo do castigo imposto às irmãs, que  devem preencher eternamente um tonel sem fundo, ou seja, elas jamais saciam  suas paixões, permanecem em estado de secura e sede, em carência emocional e  afetiva. Seria a sina de mulheres insatisfeitas, que sonham com amores  impossíveis e se apaixonam sem concretizar relacionamentos. A heroína, aqui,  escolhe seus atos e tem coragem de ir até o fim em nome de sua escolha.
 
 Psiqué
 O mito de Eros e Psique influenciou romances e  histórias. Psique, etimologicamente, é sopro, principio vital, alma. Além da  mulher, seria nossa alma em busca de amor.
 O mito conta que Eros se apaixona pela jovem e  belíssima mortal, tão bela quanto a mãe dele, a deusa do amor Afrodite, que tem  ciúmes de sua beleza. Eros a leva a um palácio no qual à noite deita com ela e  se entregam ao amor, mas ela não pode vê-lo. De dia, Eros desaparece. Até que  Psiqué lhe descobre o rosto e Eros foge.
 Psiqué, desesperada, parte em busca do amado e  implora a Afrodite que a poupe. A deusa lhe dá quatro tarefas impossíveis de  serem cumpridas por uma mortal. Cada vez Psiqué pensa em se matar, mas conta  com ajuda de seres que lhe mostram como cumprir as tarefas, ou a realizam. São  estes, as formigas, um caniço, a águia do deus supremo Zeus e uma torre. A  última tarefa consistia em trazer o fluído da beleza imortal em uma caixa;  curiosa e desejosa de possuir tal fluído, Psiqué abre a caixa e cai em sono  profundo, o sono da morte. Finalmente, Eros a salva e ela é levada ao Olimpo,  onde tem com ele sua filha.
 Este belo mito mostra a transformação da paixão em  amor, e os tributos a serem pagos à deusa do amor que, como deusa, pouco se  importa com os mortais; ou seja, a paixão tem seus perigos e precisa de  discriminação e de ajuda de elementos profundos do inconsciente em parceria com  o ego para transformá-la: as fantasias, produções de afeto e de pensamento  espontânea e não controladas pela vontade, que habitam nossa psique. O desafio  é entrar em contato com esses elementos e produções do imaginário, sem ser sobrepujado  por eles, mas tentando uma conciliação e integração. Psiqué falha no final e é  salva, mas suas tarefas anteriores produziram efeito, já que o deus Eros  abandona a mãe e a assume como esposa. O amor transforma Psiqué mulher, assim  como nossa psique é revitalizada por ele. A heroína supera o desejo suicida, ou  de desistência, sentimento recorrente quando algo parece impossível de se  atingir. A ajuda vem de fora e de dentro, desde que saibamos dialogar com  nossas imagens internas.
 
 AS HEROÍNAS DA  INTEGRIDADE
 
 Ifigênia
 Esta é uma heroína sacrificial, oferecida por seu pai  o rei Agamemnon em sacrifício à deusa Ártemis para que o vento soprasse  novamente e os navios guerreiros pudessem partir da Grécia. A tragédia de  Sófocles mostra sua saga. No altar do sacrifício é poupada e substituída por  uma corça, ou ursa, e se torna sacerdotisa da deusa. Apesar de ser levada  obedientemente ao sacrifício, ela aceita seu destino, pois, se não pode  mudá-lo, pode cumpri-lo de modo pessoal. Aceita corajosamente o que os deuses  lhe impõem.
 É difícil compreender tal ato como heróico,  parecendo, à primeira vista, uma passividade às leis absurdas de dominação e  poder. O mito precisa ser compreendido de múltiplas formas. Se, de um lado  importa à mulher desafiar o autoritarismo com leis enrijecidas e o pai que as  representa - como visto nas outras heroínas - há situações que não permitem uma  mudança no momento, ou que trazem uma inevitabilidade contra a qual a luta  desgastaria sem resultados. A atitude mais sábia seria a de esperar, e contar  com ajuda de nossa inspiração interior e criatividade, seja para ter coragem de  superar uma dor, seja para encontrar um rumo novo. No caso de Ifigênia, foi o  de sacerdotisa da deusa da natureza selvagem. Saber diferenciar quando o  desafio e a luta são o melhor caminho heróico ou quando se impõe a espera, é  uma tarefa, por si, heróica.
 
 Antígona
 Uma grandiosa heroína também da tragédia de Sófocles,  aparece em dois momentos importantes do relato. É filha de Édipo e acompanha o  pai, que se cegou, no exílio, conduzindo-o. Com ele fica até sua morte. A  cegueira de Édipo após a tragédia de ter esposado sua mãe e ter com ela filhos,  representa a sabedoria que se volta para a reflexão, longe dos afazeres  mundanos; aqui Antígona é guia e companheira do pai redimido e sábio, após  assumir suas culpas e inconsciência anterior.
 Posteriormente, há uma luta de poder entre seus  irmãos Etéocles e Polinice, na qual ambos morrem em batalha. Mas Polinice é  proibido de ser sepultado pelo rei, o que constitui enorme transgressão e  ofensa à alma do falecido. Antígona, sabendo que será por isso condenada à  morte, joga terra no corpo do irmão, purificando-o. O rei a condena à morte.
 Esta heroína nos ensina algo fundamental em uma época  na qual impera a hipocrisia, o poder sem escrúpulos e sem princípios éticos.  Ela resgata com sabedoria e integridade a ética e os valores que se fazem  ausentes perante o domínio do poder arbitrário. Tem coragem de enfrentar a  morte para realizar o ato digno e vai atrás da verdade, desafiando convenções.  Essa busca fundamental é por nós às vezes esquecida, seja por acomodação, ou  por receio de não saber como proceder. Morrer, no mito, simboliza a morte de  algo habitual, assim como deixamos morrer o velho para obter o novo que se  apresenta. Antígona serve de inspiração nos dia de hoje, quando as verdades se  camuflam em palavras de ordem de diversas naturezas, enganosas e venenosas.
 
 Referências
 ALVARENGA, M.Z. De Atená a Brunhilda. Anais do IV Congresso Latino-americano de Psicologia Junguiana.  Punta del Este, 2006. p. 151-4.
 BRANDÃO, Junito S. Mitologia  grega. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.
 ZOJA, L. Against Ismene: is reductionism a Western plague? Junguiana, n. 21: 99-109,  2006.
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