|   O CINEMA E OS MODELOS DE EDUCAÇÃO RESILIENTELiliana Liviano Wahba
 O filme que abriu o festival de Cannes este ano,  em cartaz em São Paulo, é La Tête Haute ("De Cabeça Erguida"), dirigido pela também atriz Emmanuelle Bercot. O enredo acompanha o  protagonista Malony que, desde os seis anos até os  dezessete, se encontra sob a guarda intermitente do estado em abrigos para  menores. O pai faleceu quando tinha quatro anos e a mãe, instável e imatura, não  tem condições de cuidar dele nem do irmão menor. Apesar de ter amor pelos  filhos é ambivalente e certamente afigura uma mãe abandonadora. Chega a dizer  para a juíza, referindo-se ao menino de seis anos, que é terrível e  encrenqueiro. Ou seja, caracterizada em sua precariedade e instabilidade  emocional, culpa o outro pelas suas deficiências, ainda que este seja uma  criança pequena. Sem entrar nos pormenores da trama - até para não quebrar a  surpresa do espectador -, importa destacar o papel dado à juíza que acompanha  os jovens sob seu encargo, e ao educador que assume  a tarefa de cuidar dele e de orientá-lo.
 O jovem rapaz tem acessos de agressividade e de  violência incontrolada, e seu futuro parece sombrio; a mãe é totalmente  desamparada e procura se apoiar nele; não há outras figuras familiares de  sustentação. Se a adolescência é um período em que a contestação e a agressividade  são meios de assertividade e de construção de autonomia, em casos como o acima  exemplificado, a irrupção violenta destrói ao invés de possibilitar pontes para  a vida adulta e madura. O rapaz reage a frustrações - cujo limiar é baixíssimo  - com intensa destrutividade. Dependente da mãe que o abandona, desconhece a  estabilidade do amor. Com sensibilidade, o filme mostra como irá descobri-lo  com a amiga e os adultos que se interessam por ele. Trata-se de encontrar modelos de apoio, de  interiorizar uma hierarquia organizacional funcional, única possibilidade de  atuação ética, quando a responsabilidade se contrapõe ao desejo imediatista. O  adolescente amadurece lentamente os centros corticais inibitórios de impulsos  e, quanto menos estrutura ambiental tiver, mas difícil lhe será essa tarefa. Se  houver trauma e violência do ambiente - mau trato, abandono, miséria social  -  a impossibilidade se acentua. Falta a  disciplina legislativa de um bom pai, seja este biológico ou outra figura  paterna positiva. No filme, o educador exerce tal função e, após brigas e conflitos  enraivecidos, estabelece-se um forte vínculo entre ambos, ou seja, o pai foi  restituído, apesar de não substituído. A função da juíza é central no processo  de recuperação do rapaz. Apesar das dificuldades e desânimos com as  recorrências, ela não desiste dele, como a mãe fez. Durante dez anos se mantém  estável, uma figura materna, apesar do curto e esporádico contato. Ele se vê  olhado pela primeira vez e percebe que os outros têm expectativas positivas a  seu respeito, acreditam nele. Parece pouco em circunstâncias tão adversas, mas  funciona. Sem idealismos banalizadores na vida real, há estudos que demonstram  a força estruturante de pessoas que oferecem respaldo e amor, principalmente  confiança, em crianças e adolescentes traumatizados.
 Boris Cyrulnik,  neurologista, psiquiatra e psicanalista, especializou-se no estudo de  resiliência, ele mesmo vítima do nazismo por ser judeu. Em Bordeaux, os pais  foram aprisionados e mortos, e o menino foi criado em lares adotivos.  Cunhou o termo “tutores de resiliência”,  entendendo por resiliência a capacidade de transformar a dor encontrando-lhe um  sentido na narrativa existencial. Quando tal transformação não ocorre, tende a  haver repetição da violência sofrida. Fatores de resiliência são internos -  como uma estrutura saudável de personalidade - e externos, o ponto em questão  aqui. Certamente as primeiras figuras de cuidado e apoio são as parentais, mas,  especialmente quando estas estão ausentes - ex. devido à morte - ou são falhas,  outros podem assumir tal função preponderante de apoio. Uma pessoa que mostre  dedicação, interesse genuíno, amor e respeito pelas qualidades daquela criança  ou adolescente, em uma relação firme e estável, pode se constituir em tutor de  resiliência. Tal função é prioritária dos educadores, ou deveria sê-lo.
 
 Na sociedade  atual, em certos estratos, a figura do pai está enfraquecida ou é ausente, e  muitos jovens encontram seus “pais” na marginalidade, no tráfico de drogas. O  herói é o transgressor social. Haja-se visto que na adolescência, em sua  intensidade de paixões, transita-se entre os limites da vida e da morte e,  associado à falta de maturidade decisória nessa etapa do desenvolvimento, o  jovem volta-se para comportamentos de risco sem controle. Ou seja, a falha do  sistema educacional, a falta de retaguarda oferecida pelos professores - eles próprios  carentes da mesma -, agrava a situação de ausência de perspectiva futura: o  despreparo será intelectual e, mais ainda, cognitivo-emocional. Faltará a esse rapaz  ou garota a capacidade de refletir, de se colocar no lugar do outro, de avaliar  seus limites, e haverá falha na construção de uma identidade autoconfiante, que  possa suportar frustrações.
 
 Mencionando  somente alguns outros filmes que trouxeram essa temática, temos Entre murs (“Entre muros”) ganhador da   Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2008,  do diretor Laurent Cantet, baseado no livro de  François Bégaudeau, escritor e professor, retratando uma  escola de periferia de Paris. Neste, a função de tutor de resiliência mostra-se  difícil e sujeita a oscilações.
 O tema foi retratado, nos Estados Unidos, por Dangerous Minds (“Mentes Perigosas”), de  1995, dirigido por John Smith, que conta a história verídica da ex-oficial Lou  Anne Johnson em uma escola de periferia com alunos contestadores e  desmotivados, recuperados via literatura e, principalmente, pela ferrenha  vontade da professora que não desiste deles e quer ensiná-los  a pensar, compreendendo e criando  metáforas.  Na mesma linha, baseado em  experiência real, teve The Freedom Writers (“Escritores da Liberdade”) de  2007, do diretor   Richard LaGravenese, inspirado no livro da professora Erin Gruwell, que também  empregou a literatura e a narrativa escrita para recuperar seus alunos, de  classe social   menos favorecida.  Em suma, tais filmes, reais ou romanceados,  tratam de um tema fundamental hoje, a importância de estruturar jovens carentes  de apoio e de afetividade antes que desemboquem em caminhos sem retorno. 
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