| III Simpósio
                                A  Sombra na Política: Corrupção-Causas, Origens e Cura 7 de novembro de 2005
 
 AberturaProfª.Dra. Liliana  Liviano Wahba O III Simpósio do Núcleo de Estudos Junguianos  do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica  realizado em novembro de 2005 aborda um tema de atualidade e relevância, cuja  patologia e efeitos devastadores na sociedade nos obrigam a refletir e a buscar  soluções nos diversos âmbitos de atuação e de conhecimento. Propusemo-nos a  debater a sombra e a corrupção na política aliando o pensamento psicológico com  contribuições de representantes destacados do Direito, da Psiquiatria, da  Administração e da própria Política.
 O cotejo das diferentes perspectivas envolvidas  na aproximação do problema da corrupção, cotidianamente presente na realidade  brasileira, resulta num campo profícuo para o estabelecimento de parâmetros de  reflexão que podem favorecer a ampliação de nosso campo de consciência. O  conhecimento e o reconhecimento da nossa história e realidade é o primeiro e fundamental  ato para que possamos nos apropriar de uma conduta socialmente responsável.
 
 Temos um encontro promissor e enriquecedor iniciado  com a conferência da Profa. Dra. Denise Gimenez Ramos, responsável pela  implantação do Núcleo de Estudos Junguianos e coordenadora do Programa de  Estudos Pós-graduados em   Psicologia Clínica da PUC de São Paulo. O tema abordado por  ela, nesta conferência, é fruto de uma pesquisa sobre os complexos culturais  ativos no povo brasileiro. Este trabalho foi publicado em 2004 nos Estados  Unidos sob a organização de Thomas Singer e Samuel L. Kimbles. The Cultural  Complex: Contemporary Jungian Perspectives on Psyche and Society é uma  importante contribuição de autores junguianos para a compreensão de problemas  sócio-culturais da atualidade. É um privilégio para os profissionais  brasileiros dedicados ao estudo da psicologia junguiana ter a Profa. Denise  Ramos envolvida num projeto desta monta.
 
 No  Simpósio, as áreas da Política, Psiquiatria, Direito Constitucional e  Administração ganham expressão, respectivamente, pelas presenças do Senador  Eduardo Suplicy, do Dr. Carlos Briganti e Dra. Maria Garcia. Agradecemos ao  senador Eduardo Suplicy com sua agenda muito atarefada por estar aqui conosco,  já que está vindo diretamente do aeroporto. A idéia geral do debate é que cada  um vai apresentar uma visão sobre o tema “a sombra na política”, e depois  haverá perguntas do público. Temos à mesa então o senador Eduardo Suplicy, o  professor Carlos Briganti, médico psiquiatra, a professora Denise Ramos, que  realizou a palestra inaugural, e a professora de direito constitucional da PUC  a doutora Maria Garcia. Iniciaremos a mesa com o senador Eduardo Suplicy. Em  seguida, a professora Maria Garcia, professora livre docente da PUC, professora  de direito constitucional e educacional. Ela tem livros importantes publicados  dos quais os mais recentes são: Desobediência  civil, e Os limites da ciência,  da editora Revista dos Tribunais. Finalmente, um amigo da casa, doutor em Psicologia Clínica  pela PUC-SP, Doutor Briganti, médico psiquiatra e psicoterapeuta pela Faculdade  de Medicina da Santa Casa de São Paulo, escritor, autor de diversos livros,  cronista de jornais e revistas, formou centenas de psicoterapeutas no Brasil  desde o NEPP - Núcleo de Estudos em Psicologia e Psiquiatria, Ágora – Centro de  Estudos neo-reichianos, MIP – Movimento Interdisciplinar de Psicossomática e,  em vários outros países, durante os últimos vinte anos, tais como Alemanha,  Tchecoslováquia e Itália.
 
 Corrupção:  sintoma de um complexo?Profª.Dra. Denise Gimenez Ramos
 
 Corrupção como fenômeno comportamental
 Corrupção  pode se analisada de diferentes ângulos, pois é um fenômeno complexo e que  exige para sua compreensão certamente um estudo multidisciplinar.Sabemos  que a corrupção, como parte da rotina do brasileiro, é uma sombra endêmica e  enraizada na cultura.
 
 Corrupção  pode aqui ser definida como “mau uso do poder para auto benefício ou vantagem  para si mesmo. Um poder que pode, mas não necessariamente, residir no domínio  público. Além do dinheiro, o benefício pode tomar a forma de proteção.  Tratamento especial, recomendação, promoção ou favores de mulheres ou homens”.  (Leisinger, 1996)
 Considerando,  portanto, dentro desse enfoque, poderíamos perguntar quais os fatores  psicológicos que poderiam propiciar ou favorecer esse tipo de comportamento  numa cultura. Se for verdade que a corrupção é universal, porque ela é mais  freqüente em determinados países? Quais seriam os fatores propiciatórios desse  comportamento?
 
 Diariamente  lemos nos jornais notícias sobre novos assuntos públicos envolvendo corrupção e  muito freqüentemente novas informações sobre milhões de dólares desviados para  contas privadas em paraísos fiscais. No dia-a-dia, o comportamento transgressor  ou de pequeno suborno atormentam o brasileiro. Alguns, para não parecerem  “bobo”, assumem o papel de “esperto” e corrompem ou aceitam a corrupção como  meio de sobrevivência. Os indignados são considerados “babacas” e raramente  sentem-se recompensados por sua honestidade. Esse comportamento destrutivo  parece tão enfronhado na cultura que já se perdeu a data de sua origem.
 
 Em  2002, numa pesquisa realizada pela Goettingen University and Transparency  Internacional, Brasil foi colocado em 45º lugar numa escala mundial de  corrupção internacional.(2002-Perception Index–Goettingen University and  Transparency International) e em 2005 passou para 62º lugar.
 A  questão é: por que o Brasil sofre tenaz e recorrentemente da praga da corrupção  e da impunidade por parte das figuras públicas de autoridade?
 
 Considerando  a corrupção como fenômeno universal com múltiplas soluções, podemos aqui  refletir sobre a dificuldade de se chegar ao “miolo do problema” e perguntar  quais são raízes desse problema não só moral e ético mas também de  comportamento.
 
 Realmente,  a maioria das pesquisas sobre corrupção centra-se em variáveis relacionadas a  modelos sistêmicos dinâmicos de corrupção, efeitos da corrupção na política,  bem estar, projetos de desenvolvimentos, etc. As causas geralmente se baseiam  em tipos de sistemas legais, na ética, no nível sócio econômico e educacional e  nas formas de contenção e repressão. Quando a questão psicológica é abordada,  geralmente ela refere-se a problemas sociais e educacionais. Na sua maior  parte, os discursos e artigos escritos sobre o assunto, têm um tom moralista e  apontam a ganância econômica e a falta de ética, como as grandes motivadoras  desse mal. É surpreendente a falta de pesquisas em psicologia que analisem  profundamente os determinantes inconscientes dessa patologia. Os poucos trabalhos  encontrados centram-se no estudo da criminologia, da delinqüência, das questões  de poder e nos mecanismos sócio-patológicos.
 
 Portanto,  uma das tarefas principais deste ensaio é descobrir o fio condutor de como a  corrupção foi estabelecida no solo brasileiro.
 
 Como  veremos, a corrupção, não é somente uma questão de ética ou ganância, mas  também um sintoma patológico na identidade coletiva e no Brasil origina-se  provavelmente num complexo de inferioridade.
   A. Descobrindo o conflito original  Na  ocasião da comemoração dos 500 anos de fundação do Brasil (ano 2000) inúmeros  debates, artigos e livros vieram à tona, na tentativa de explicar o que é a  identidade brasileira. Num país de vasta extensão territorial e formado por  três raças distintas (indígena, branca e negra), com correntes imigratórias  inclusive japonesas e coreanas, falar de identidade é um assunto bastante  complicado. Ao rever a literatura mais significativa, um tema ressalta e abre  caminho para nossa investigação: o sentimento implícito de inferioridade ou o  que alguns chamam de “complexo de cucaracha”  ou de “latino americano subdesenvolvido”.
 Embora  nem sempre explicitamente verbalizado, podemos facilmente observar no  cotidiano, na literatura, nos mitos, filmes e programas de TV, exemplos desse  sentimento de inferioridade, principalmente quando o brasileiro classe média se  compara com o estrangeiro.
 
 Seria  então a corrupção um comportamento compensatório a esse sentimento de  inferioridade marcante?
 
 Seria  a corrupção uma forma de burlar a lei e autoridade por parte daquele que se  sente infantil, fraco ou impotente para contestá-la abertamente?
 
 Com  essas questões em mente e com base em estudos psicológicos, sociológicos e  textos jornalísticos, três vertentes foram tomadas:
 
 1) observações de campo;
 2) pesquisa junto a colegas de profissão,(queria  me assegurar se minhas
 percepções e observações coincidiam ou não com ao do meu grupo de
 referência);
 3) pesquisa  bibliográfica, (que poderia ou não confirmar a intuição).
   I. Primeiras observações  Os brasileiros de acordo consigo mesmo:
 É  corrente entre a classe média paulistana, e talvez pudesse generalizar – entre  a classe média brasileira - a constante referência a adjetivos desairosos em  relação à própria nacionalidade. Anedotas e casos são contados na televisão  brasileira e no dia-a dia denegrindo a imagem do brasileiro. As comparações com  os povos do “primeiro mundo” são constantes, retratando o brasileiro como  incompetente, ignorante, malandro e corrupto.
 
 Dois  fatos recentes corroboraram para minhas afirmações, ambos acontecidos no  aeroporto ao chegar de uma cidade européia:
 
 - Só no Brasil mesmo! Temos que dar toda a volta em vez de seguirmos reto! Hei  terrinha de gente burra... Grita de modo estridente uma jovem brasileira  saindo do avião. A passageira em questão reclamava de ter que andar não mais do  que 100 metros  até as escadas rolantes que a levaria para o saguão do aeroporto. Outros  acenavam com a cabeça, aparentemente concordando com a jovem irritada.
 
 Nota:  a passageira acima, sem reclamar, tinha andado cerca de 1500 metros até o  portão de embarque pelos longos corredores de um aeroporto europeu, onde as  esteiras estavam paradas.
 - Puxa, mas que fila! É um absurdo termos que fazer fila, nem sequer esses  caras (policiais) sabem organizar uma fila para ver os passaportes! O passageiro reclama de ter que mostrar seu passaporte para os agentes  federais, embora a fila fosse rápida. Passávamos direto pelo agente federal,  que mal olhava a fotografia. Em menos de 15 minutos estávamos livres.
 
 Nota:  é altamente provável que esse mesmo senhor ao chegar na Europa, após uma longa  e cansativa viagem noturna, tenha ficado no mínimo (como fiquei) umas duas  horas na fila de checagem de passaporte. Nenhuma cadeira ou qualquer conforto  era oferecido, enquanto passavam direto, sem fila, os passageiros sorridentes  da comunidade européia.
 
 Duas  cenas rápidas e ao mesmo tempo bastante reveladoras.
 
 O  brasileiro recém-chegado do “primeiro mundo” rejeita sua pátria, ressentido  inconscientemente das diferenças e por vezes do tratamento discriminador a que  fora sujeito. Sem se dar conta, imita o “superior”, repetindo a discriminação,  agora tendo a si mesmo como agente. As duas observações escolhidas são  corriqueiras e fazem parte da experiência de um bom número de brasileiros.
 Piada  corrente presente na internet e contada com freqüência (uma colega  norte-americana contou-me que numa visita ao país ouviu a mesma de dois guias  durante sua estadia).
 
 “Dizem  que, quando Deus criou o mundo ouviu uma série de reclamações. Habitantes de  outros países disseram que Ele tinha sido injusto criando o Brasil como uma  terra rica, dotada de extraordinária beleza. Um país banhado eternamente pelo  sol, que ademais não tinha furacões, nem tempestades, neve, terremotos,  desertos ou animais ferozes. ‘Isto não é justo’, disseram em coro para Deus.  Mas, Ele calou a inveja dos reclamantes, replicando: ‘É! Mas esperem para ver o  tipo de gente que eu vou colocar lá”.
 
 Essa  anedota supõe uma relação inversa entre cultura e natureza. Isto é, quanto mais  pródiga a natureza, menor o esforço de trabalho e daí a degeneração humana.
 “O  Brasil não tem jeito” ou o “Brasil não é um país sério” (frase originalmente  atribuída ao General francês De Gaulle) ditas em momentos de crise revelam que  há até uma certa uma vergonha de ser brasileiro.
 
 Outra  frase famosa é a do escritor Nelson Rodrigues: “O brasileiro continua sendo  aquele Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. A nossa tragédia é que  não temos um mínimo de auto-estima”.
 
 Segundo  Kujawski (2001), há uma certa obsessividade no Brasil quanto a uma própria  incompetência coletiva, com um misto de auto desprezo e falta de  informação.“Esse sentimento nacional de inferioridade resulta, de imediato, da  nossa comparação com as nações desenvolvidas, ressaltando nossos reiterados  fracassos econômicos, nossa instabilidade políticas, atraso tecnológico e  desigualdades sociais. No entanto, as verdadeiras raízes dessa auto-abjeção  coletiva, dessa vergonha generalizada de ser brasileiro remontam às nossas origens  históricas”.
 Os brasileiros de acordo com os estrangeiros:Embora  não caiba aqui um estudo sobre a imagem do brasileiro no exterior, algumas  observações são pertinentes à medida que foram incorporadas mais ou menos  conscientemente pela cultura. F. Pike (2001), no seu artigo sobre mitos e  estereótipos norte-americanos sobre a América Latina mostra que enquanto os  Estados Unidos são geralmente relacionados à cultura, a América Latina liga-se  à natureza. Na América do Norte temos o símbolo do Tio Sam, homem branco,  lutador inveterado que subjuga a selvageria e a natureza. Do outro lado, temos  as figuras de negros, índios, crianças, mulheres e pobres, seres, portanto,  incapazes de dominar a natureza representando a América Latina. A fixação  desses estereótipos presentes até hoje, provavelmente alcançou o seu auge  durante a política da Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt entre os anos de  1933 e 1945. Na época, os cartunistas norte-americanos costumavam fazer  caricaturas de seus vizinhos do sul como um povo sonhador e despreocupado com o  trabalho, sugerindo claramente uma inferioridade latino-americana.
 Nessa  trilha, os estúdios da Walt Disney criaram um personagem chamado Joe Carioca  (durante a Segunda Guerra Mundial) que contracenaria com o Pato Donald representando  os brasileiros. Ele é personificado como um papagaio (sem fala própria) frágil  e desajeitado, preguiçoso e covarde, que compensa seus fracassos com fantasias  megalomaníacas.
 
 Mais  recentemente (2002), o canal de televisão americano Fox, retratou num desenho  animado, uma família americana, os Simpsons, que vem para o Brasil procurar um  garoto da favela carioca com quem a filha mais velha se correspondia pela  internet. Ao chegarem, ficam sabendo que o garoto está desaparecido, então a  família decide iniciar uma busca para encontrar o pobre menino brasileiro  abandonado que precisa ser salvo pela família americana.
 
 Temos  assim, um Brasil retratado como o país da malandragem ou da bandidagem, um país  que apesar de suas inúmeras riquezas naturais tem uma sociedade corrompida e  dominada pela criminalidade, fragilizada pela pobreza e pela carência  econômica. Mais uma vez, as projeções dos estrangeiros sobre o Brasil fixam-se  em um recorte depreciador, e também distorcido culturalmente, pois o Rio de Janeiro  é aí representado como a terra do mambo, da rumba e da conga.
 
 Destaco  aqui duas afirmações de estrangeiros, que sintetizam inúmeras outras  recolhidas:
 “Os  brasileiros são muito bons, muito criativos. O problema é que sofrem de falta  de auto-estima”. Martin  Sorrel. (famoso empresário inglês, dono inúmeras agências de publicidade e  empresas de marketing e pesquisa multinacionais). (Revista Veja, 8 de Maio,  2002)
 
 “O  Brasil quase perdeu a identidade....Acha que só o estrangeiro tem a solução. O  Brasil tem muitos recursos...É preciso recuperar a auto - estima. Passei 40  anos estudando o Brasil, especialmente essa coisa de pessimismo e otimismo.  ....Aquela coisa de dizer que o Brasil não dá.” T. Skidmore. (sociólogo  americano e autor de vários livros sobre o Brasil) (Jornal: O Estado de São  Paulo, 6 de outubro, 2002).
   II. Pesquisa sociológica e antropológica  Uma  pesquisa (SEBRAE, 2002) realizada por 25 especialistas de diferentes áreas das  ciências humanas com o objetivo de definir um “perfil” da brasilidade compreendida  como o conjunto dos traços peculiares ao estilo cultural, estético e  comunicativo dos brasileiros vem reforçar essas observações. Embora o estudo  tivesse sido encomendado por empresas de exportação, e, portanto tinha por  objetivo relacionar particularmente as características que poderiam oferecer, a  uma empresa que as levasse em consideração, uma vantagem competitiva tanto no  plano de marketing, como na penetração dos mercados internacionais. Nesse  estudo, interessantes qualidades psicológicas foram ressaltadas. Sintetizando  os resultados, encontrou-se que atualmente os principais pontos fortes do  Brasil, em ordem decrescente de importância, são os seguintes:
 1. pluralismo racial e cultural;
 2. os elementos culturais provenientes de  tradições e experiências de vida autenticamente populares;
 3. a alegria e o otimismo;
 4. as características pluralistas e sincréticas  da cultura;
 5. a ênfase nos relacionamentos pessoais;
 6. a hospitalidade e a cordialidade; e
 7. a criatividade.
 Os  principais pontos fracos do Brasil são, em ordem decrescente de importância:
  1. a falta de auto-estima, a valorização apenas  do que vem de fora.2. a falta de confiança nas autoridades e no  governo, que se reflete na desconfiança geral em relação às
 empresas públicas;
 3. um  certo desprezo em relação a questões técnicas;
 4. a idéia de malandragem como necessidade de  tirar partido de tudo, sobretudo dos mais humildes;
 5. a escassa divulgação do trabalho cultural  brasileiro em todos os setores;
 6. personalismo arrogante que se coloca acima da  lei;
 7. a convicção de que todo mundo engana só para  ganhar mais dinheiro;
 8. a ignorância como “profissão de fé” (“se eu  consegui ganhar dinheiro sem ler único um livro, então...”);
 9. a desonestidade em nome da família e dos  amigos; e
 10. a falta de compromisso em relação a  acordos firmados.
 
 Uma  das conclusões mais significativas foi que o contato com as chamadas culturas  desenvolvidas muitas vezes incrementa o sentimento de inferioridade. Nesse  sentido, existe no Brasil uma forte e infundada crença de que aquilo que vem do  exterior é sempre melhor. Os autores consideram ainda que a falta de  informações continuará a reforçar essa tendência ao desprezo pelo que é  brasileiro e à valorização do que está fora. Eles concluem que os brasileiros  são, também, vítimas de um latente complexo de inferioridade. A criatividade é  vista como “malandragem” ou “jeitinho”.
                                 Com  efeito, podemos observar que o fato do brasileiro não perceber a dimensão de  seus próprios valores culturais tem levado ao aprofundamento de uma marcante  falta de confiança em si próprio, com o risco de se percorrer um caminho  inverso que seria o da supervalorização. Isto é, poderia haver uma rápida  enantiodromia, onde o nacionalismo desmedido levaria a uma perigosa inflação do  ego coletivo.
 A  pesquisa é concluída com uma ênfase na necessidade de se realizar um trabalho  de sensibilização que tenha por objetivo reforçar o valor da criatividade e a  consciência das qualidades específicas a respeito da própria cultura.  Entretanto, sabemos que o ponto de equilíbrio quanto à própria imagem não pode  ser obtido somente pelo reforço dos valores positivos. Sem um trabalho de  consciência da sombra coletiva, isto é, sem a análise do complexo de  inferioridade mais uma vez observado, qualquer trabalho que se apóie somente no  nível educacional será pouco eficaz.
   III. Pesquisa com os analistas  Com  a finalidade de identificar as percepções relativas ao complexo cultural  brasileiro, foi realizada uma pesquisa entre os analistas e estudantes (n=144)  junguianos membros das duas sociedades de analistas filiadas à International  Association for Analytical Psychology, a Sociedade Brasileira de Psicologia  Analítica e a Associação Junguiana do Brasil.
 A  pesquisa compreendeu o envio de uma questionário com questões referentes a  comportamentos sintomáticos presentes no cotidiano sócio - cultural brasileiro  e a forma como esses comportamentos se manifestam na sociedade e na cultura  (mitos, contos, ditos populares, arte etc.).
 Uma  das questões solicitava aos respondentes que vendo o Brasil como um paciente,  procurassem identificar quais seriam o(s) complexo(s) que estariam por trás  desses sintomas. E por fim, foi perguntado se o analista teria identificado em  si mesmo, quando em viagem ao exterior, a emergência de algum sentimento  peculiar em razão do contraste experimentado e no caso afirmativo qual a  cultura e os sentimentos percebidos.
 
 Foram  obtidos 33 questionários (32 analistas e 1 estudante) de volta. O baixo número  de respostas deveu-se,segundo os colegas, à dificuldade das questões. Alguns  consideraram que cada questão deveria ser respondida com uma tese ,outros  disseram que precisariam de muito tempo ou de uma pesquisa de campo e, portanto  se abstiveram de responder. Um analista disse que a primeira reação foi a de  que : “não entendi nada , sentia-me muito estúpido, entretanto voltando para  o título me dei conta que essa inferioridade ou resistência diante de coisas  muito abstratas poderia ser o complexo falando em primeira instância  (interpretação de minha própria contra transferência)”.
 
 Como  veremos, essa confissão inicial revelará o principal sintoma da sociedade  brasileira aqui detectado. E, o resultado do questionário, apesar da  resistência, mostra dados interessantes que corroborarão com as observações de  campo e com material bibliográfico levantado.
 
 As  respostas foram divididas em 6 grandes categorias:
 
 1. Sentimento  de inferioridade.
 2. Transgressão  de leis e corrupção
 3. Ausência  de heróis
 4. Narcisismo,  exibicionismo, permissividade excessiva.
 5. Puer  aeternus
 6. Tipologia
 
    
                                Categoria 1 – Sentimento de InferioridadeNessa  categoria houve uma unanimidade: 100% dos respondentes descreveram  comportamentos típicos e freqüentes que se referem à : baixa auto estima do  brasileiro; dependência; insegurança ; desvalorização do folclore e de sua  expressão mítica; piadas contra si mesmo (contra brasileiro); falar mal do  próprio país - Brasil (freqüentemente comparando-o negativamente a outro país  do hemisfério norte); desconsideração ou desvalorização com a língua (no que se  refere a vocábulos de origem indígena) e supervalorização da língua  estrangeira; vergonha de sua origem quando não-européia; busca e super -  valorização da ancestralidade européia; vergonha de ser brasileiro;  sentimento de impotência e de incapacidade; sentimento de ser eternamente  “colônia” não tendo desenvolvido uma cultura de elite; desvalorização dos  governantes e dos sistemas operacionais “na Europa tudo funciona”, “só no  Brasil acontecem essas coisas”, sensação que no Brasil ainda tudo está por  ser feito, inveja do nacionalismo do estrangeiro (um grupo de negociadores  norte-americanos uma vez afirmou que era fácil negociar com os brasileiros  porque eles não disputavam seus direitos nem defendiam sua terra); aceitação da  classificação de país do terceiro mundo, terceira classe, ainda (eternamente)  em desenvolvimento.
 
 Outro  aspecto dessa categoria que aparece em grande número de resposta (90%) é a  super valorização do estrangeiro e de produtos do exterior. Ao achar tudo que  tem e faz inferior, o brasileiro típico tende: a imitar o estrangeiro, a super  valorizar qualquer produto exterior e a ter grande abertura para qualquer  produto material ou cultural do exterior.
   
                                Categoria 2 - Transgressão de leis e corrupçãoOitenta  por cento dos respondentes descreveram comportamentos referentes ao que é  chamado no Brasil de “lei de Gerson”. Gerson foi um famoso jogador de futebol  que nos anos setenta fez uma propaganda de cigarros associando a marca que  fumava ao comportamento de esperteza, dizendo que ser esperto é “tirar  vantagem de tudo”. Foi surpreendente o efeito dessa propaganda na ocasião e  mais surpreendente ainda que passados vários anos a “lei de Gerson” ficou sendo  conhecida como o comportamento do malandro- vencedor. Demorou um certo tempo  para que essa propaganda fosse considerada anti–ética, mas até hoje fala- se do  indivíduo de caráter duvidoso , como seguidor da lei de Gerson, por vezes  havendo uma certa ambigüidade entre a admiração pelo malandro - esperto e a  crítica moral. Nessa categoria entraram também o comportamento de burlar leis (há  leis que pegam e leis que não pegam) e impostos (porque são injustos ou porque o dinheiro vai para o bolso dos políticos). Dar propina, não  obedecer à hierarquia, corromper e ser corrompido passam a ser então uma  conseqüência . Em várias respostas, os analistas consideram o comportamento  corrupto associado ao sentimento de impotência. Ao sentir que não tem poder  para mudar seu status ou para mudar os estado de direito, o único mecanismo  percebido para se sair do estado de vitimização é aliar-se aos corruptos.  Tornar-se um deles diminui a impotência e a frustração.
 Categoria 3 - Puer aeternusSetenta  por cento dos respondentes consideraram que a falta de limite, o prazer de  desrespeitar os sinais de transito, a falta de compromisso e a impontualidade  legendária seriam um tipo de protesto infantil contra o excesso de  autoritarismo. O desrespeito às leis estaria aqui vinculado à fraqueza frente  ao poder patriarcal, exercido negativamente, isto é, as leis vistas como  “babacas” ou injustas e a desobediência vista como “esperteza” ou a superação  da autoridade.
 Categoria 4 – Ausência de heróisSessenta  por cento dos respondentes fizeram referencia à ausência de heróis míticos e  históricos na cultura brasileira. Alguns consideraram essa ausência como um  fator que dificulta o desenvolvimento da identidade nacional e colabora com o  sentimento de inferioridade
 Categoria 5 - Narcisismo, exibicionismo, permissividade excessivaHouve,  nessa categoria, menor unanimidade, com cerca de 30% das respostas referindo-se  a comportamentos que talvez pudessem ser considerados como mecanismos  compensatórios aos sintomas acima descritos. A grandiosidade das festas  folclóricas (Boi-bumbá, no nordeste) e do Carnaval (em todo país) poderia apontar  um desejo de superação dessa inferioridade.
 
 Categoria 6 – TipologiaVinte  por cento dos analistas apontaram para a questão tipológica como geradora de  conflitos. Os brasileiros com a tipologia sentimento extrovertido sentiriam -  se inferiorizados quando julgados por membros de cultura de tipologia  pensamento introvertido.
 
 Esses  resultados coincidem com as observações do teólogo Frei L.Boff (2002) que fala  que o brasileiro sofre de um “complexo de coitadinho” e de Dias & Gambini  (1999), que ao analisar a formação da identidade brasileira, dizem que o  brasileiro sofre de um complexo de inferioridade decorrente da falta de  consciência sobre si mesmo.
 
 Poderíamos,  portanto, afirmar que os analistas identificaram por unanimidade um complexo de  inferioridade que apresenta vários sintomas, predominantemente: baixa auto -  estima e vergonha da identidade cultural. Os comportamentos patológicos de  corrupção, malandragem e desobediência a leis poderiam ser conseqüência desse  complexo de inferioridade.
 
 Tendo  em vista essas observações e o resultado da pesquisa algumas reflexões são  necessárias na tentativa de explicar a origem desse sentimento e procurar o  conflito original, subjacente e formador dos sintomas acima descritos.
   B. Possíveis causas do complexo de inferioridade  Na  busca do conflito básico que possa dar origem a esse complexo, a história da  construção da nação brasileira é bastante reveladora, pois podemos considerá-la  decorrente de uma situação traumática com duas vertentes principais: a  colonização e a escravidão. Entretanto, no próprio mito de origem do Brasil,  uma das bases em que se estrutura a identidade coletiva, percebemos a presença  de uma pesada projeção a qual sociedade brasileira até hoje “esforça-se” para  manter, quando se torna, por exemplo, “o país do carnaval”. Seria o Brasil um  paraíso tropical?   - Mito de origem: o Brasil e o paraíso: projeções medievais sobre a terra desconhecida.  Segundo  a analista junguiana, os mitos de criação são os mais importantes em várias  sociedades. Eles são o ensinamento essencial nos rituais de iniciação.
 Se  a pergunta “de onde eu vim?” pode gerar ansiedade, o mito que a responde dá  significado e eixo à existência. Repetido em momentos de crise, o mito de  criação restaura a identidade e recupera a auto-estima. Se transpormos a  questão mítica ao mito histórico fundante do Brasil, várias características  saltam à vista revelando desde o início uma problemática até hoje não  resolvida.
   - O nome  A  princípio, os portugueses batizaram a terra recém-descoberta de Terra de Santa  Cruz, ato, que segundo alguns estudiosos, já constelava no inconsciente  coletivo o desejo de domínio e depois a quase extinção das populações nativas,  submetidas à força ao credo cristão (Gambini, 2000). “Os descobridores  transportaram a cruz através do oceano e a fincaram em terra fresca, mas nunca  foram capazes de carregá-la sobre os próprios ombros... Os europeus deixaram  que os índios carregassem a cruz, enquanto se entregavam”... “à plenitude de  sua ganância na zona franca ao sul do Equador” (Gambini, 2000, p. 42). 
 Entretanto,  com o passar dos anos, o nome Brasil passou a predominar e até hoje sua origem,  tem sido assunto de inúmeras discussões. As grafias mais antigas, como “Ho Brasile” e “O’Brasil”, demonstram tratar-se de um nome celta, cujo sentido  seria “Terra dos bem-afortunados”, “Ilha da Felicidade” ou “Terra Prometida”,  já que a raiz bres, em  irlandês, significa "nobre, sortudo, feliz, encantado". Esse nome  aparece em mapas anteriores ao descobrimento do nosso país e certamente  conviria bem a uma ilha imaginária a oeste do mundo conhecido, na mentalidade  medieval (Funari, 2002). Outros defendem que a palavra brasileiro designava a  pessoa que morava na terra da árvore cor de brasa (vermelha), madeira que na  época era bastante exportada para a Europa.
 
    - O Brasil no imaginário medieval.  O  fato é que a referência ao espaço do Brasil como Jardim do Éden, como  “possessões maravilhosas” povoa na época o imaginário europeu. Podemos  inclusive encontrar imagens fantasticamente positivas ou terrivelmente ameaçadoras  sobre os novos espaços na literatura que procurava atribuir uma identidade  característica ao país (Oliveira, 2000).
 Em  geral, as novas terras são apresentadas como o abrigo de uma natureza ainda  intocada, a terra-virgem, e são descritas pelos portugueses como um universo  perigoso, luxuriante, soberbo, avassalador e misterioso. Um lugar para ser  explorado e desfrutado (Oliveira, 2000; Gambini, 2000).
 A  cartografia e os textos dos séculos XV e XVI revelam o encontro de duas  civilizações e marcam diferenças que irão se confirmar ao longo dos séculos.  Mesmo o uso do termo “descoberta” para uma terra habitada por milhões de  pessoas (calcula-se entre 6 a  12 milhões) e mais de mil etnias, já é bastante controvertido. (Brito,2001)
 
 Mais  ainda, a construção do mapa mundial a partir da lógica do colonizador que cria  o conceito de dois mundos, o velho e o novo, o explorador e o explorado. Na  época, a legalidade da exploração baseava-se no conceito que o que estava no  novo mundo era inferior.
 
 Ventura  (1991) aponta para a ambivalência do discurso europeu que oscila entre a imagem  positiva da felicidade natural, a inocência dos habitantes da terra americana e  a condenação dos seus costumes bárbaros. Esse autor ressalta ainda a presença  de um discurso negativo sobre o homem e a natureza da América, o que permite a  legitimação da expansão européia de uma forma tão invasiva e desprovida de  qualquer consideração quanto ao estado das coisas nas terras recém descobertas.  A tese da degeneração dos animais, das plantas e do homem latino-americano,  assim como a tese da juventude do continente abrem espaço para a ação  civilizatória do homem branco. Uma ação que visava exclusivamente à exploração  e se fazia cega às riquezas culturais das populações nativas.
   II. Primeiros habitantes  Discutia-se  até mesmo no início da conquista, se os nativos tinham ou não “alma”. E, apesar  do decreto papal que afirmava que os índios eram humanos, nas práticas sociais  de poder afirmava-se que os nativos além de ter uma estrutura biológica diferente  dos europeus, pertenciam a um nível inferior . Essas imagens configuraram  profundamente um complexo cultural,uma matriz de idéias e um conjunto de  imagens, de valores,de símbolos, de atitudes, de práticas sociais, que  continuam presente no nosso inconsciente coletivo.
 Ainda,  o fato de que não se pode remeter o nascimento do Brasil a civilizações  pré-colombianas de enorme qualidade e longevidade, como é caso do México e no  Peru, vem a favorecer ainda mais a negação da existência das diversas culturas  indígenas de milhões de nativos que habitavam o Brasil no século XVI, levando a  formação de uma identidade brasileira que nega sua origem.
 Desse  modo, a cultura indígena brasileira nunca foi integrada à origem mítica ou  histórica da nação. Pelo contrário, permanece isolada e protegida em  territórios longínquos. Não há registro de mitos e de heróis indígenas que  tenham sido assimilados no processo de formação da cultura brasileira.
   III. A implantação da colonização Primeiros colonos À  medida que Portugal nunca teve a intenção de estabelecer uma nova nação, mas  somente apossou-se das novas terras movido pelo desejo de enriquecimento, a  atitude dos colonizadores foi basicamente a de um extrativismo imediatista e  predatório ao que o país foi sujeito durante séculos (Oliviera, 2000).
 Segundo  DaMatta (1993), a história econômica do Brasil trás uma representação da  natureza que fundamenta a aventura pessoal caracterizada por extrema  individualidade e pelo anarquismo pecaminoso. E é no ciclo do extrativismo  predador que se reproduz o modelo da sociedade de origem.
 Enquanto  que nos EUA os primeiros colonizadores tinham como objetivo constituir uma nova  nação guiada por princípios éticos e religiosos, no Brasil os primeiros  colonizadores vieram com a única intenção de buscar riquezas e levá-las para o  rei que delas necessitava para saldar a dívida de Portugal com a Inglaterra.  Nesse sentido, a intenção de se produzir nas novas terras um espaço habitável,  cujas riquezas e maravilhas naturais pudessem ser integradas à vida civilizada  do europeu, e na quais estes poderiam estabelecer uma nova nação nunca foi  verificada ao longo da história da dominação do território brasileiro. Pelo  contrário, conta-se que os primeiros imigrantes foram dois degredados,  abandonados na costa brasileira quando as embarcações de Pedro Álvares Cabral,  descobridor do Brasil, regressavam a Portugal para levar notícias da Terra de  Santa Cruz.
 Os  primeiros colonizadores das terras brasileiras- vassalos do rei de Portugal,  vieram sozinhos, deixando para trás a família e os amigos. Queriam somente  explorar as novas terras e voltar ricos para seu país. Eram desprovidos de  virtudes econômicas, de espírito público e autodeterminação política. Não se  fixaram nos territórios percorridos e despovoaram mais do que povoaram.  Enquanto os primeiros povoadores norte-americanos juraram constituir-se em um  corpo civil e político, adotando formas de trabalho estáveis, realizando a  conquista da terra e estabelecendo vilas e cidades, os europeus deslocaram-se  para o Brasil na qualidade de conquistadores e mais tarde tornaram-se  contrabandistas de ouro e pedras preciosas.
 
 Portanto,  a diferença básica entre os dois processos de ocupação territorial é que o  imigrante que foi para os Estados Unidos teve a intenção de se tornar  americano, de pertencer a uma nova religião, a uma nova pátria. Já o filho do  português nascido no Brasil (o mazombo) reivindicava o nascimento no reino. Era  um bastardo, abandonado pelo pai europeu e rejeitado pela tribo da mãe. Para se  fazer português era preciso que ele fosse estudar em Coimbra. Seus olhos  estavam voltados para Portugal e mais tarde para Paris. Era um europeu  extraviado. Este português nascido no Brasil, este brasileiro sem sentimento de  “pertencimento”, era um ser contraditório, um ressentido que não tinha a  capacidade de ter dignidade, patriotismo, compostura, decência, vida limpa,  honestidade, grandes propósitos, altas e nobres intenções.
   Escravidão  A  outra vertente do trauma na formação da identidade brasileira, como já foi  dito, é a escravidão que junto com a colonização leva a “uma dominação quase  absoluta, em que todo poder de decisão é abolido e as pessoas são até reduzidas  ao estado de coisa – marcando mais um trauma na formação da identidade  brasileira”.
 O  negro é trazido ao Brasil para realizar o exaustivo trabalho braçal necessário  ao funcionamento das plantações de cana-de-açúcar. Ao chegarem na colônia, as  famílias de escravos eram separadas e distribuídas de forma a se desagregar as  populações que falavam um mesmo dialeto. Deste modo, a ação do colonizador  sobre o escravo impunha, inclusive, uma ruptura dos laços culturais atados pela  língua nativa.
   Sem guerras – Sem heróis  O  nacionalismo brasileiro não foi marcado por episódios de luta e empreendimentos  grandiosos que mobilizassem emocionalmente seus habitantes, como foi o caso em  diversas nações européias. O nacionalismo brasileiro é fruto da ocupação  territorial e da nostalgia das origens dos diferentes povos que compõem o  Brasil. “No fundo ainda perdura no inconsciente coletivo brasileiro um  sentimento resmungão, produto do poderoso genocídio contra índios e negros que  os portugueses e a classe dominante do Brasil perpetraram ao longo dos tempos”.Assim,  não se forma no Brasil o mito do herói ou da heroína. Embora a mitologia  brasileira seja rica em simbolismo indígena, caboclo e africano, não há uma  personalidade que represente um herói nacional.
 
 (É  importante também aqui lembrar que principalmente a partir do século 19, houve  grandes correntes migratórias para o Brasil, sobretudo de espanhóis, italianos,  judeus, alemães, árabes e japoneses. Esses povos se estabeleceram trazendo seus  costumes, princípios e valores e marcaram fortemente a cultura brasileira.  Praticaram no Brasil seus mitos, tradições e uma ética há milênios desenvolvidos.  Vemos inclusive com freqüência o recurso da busca da identidade no avô europeu  sendo usado como motivo de orgulho e de diferenciação. Entretanto, como esses  valores são multifacetados pelas inúmeras características desses diferentes  povos que compõe o país, eles não formaram uma identidade coletiva harmônica.  Os valores positivos e morais trazidos por esses imigrantes são vividos mais no  plano individual e familiar e não no coletivo nacional.)
   Conclusão  A  hipótese da existência de um complexo de inferioridade na cultura brasileira  foi confirmada pelas três abordagens aqui utilizadas. Tanto as observações de  campo quanto à pesquisa social e a opinião dos analistas foram homogêneas na  descrição de comportamentos mais ou menos conscientes, que invariavelmente  revelam um sentimento profundo de menosprezo e abjeção em relação a si mesmo.As  conseqüências deletérias desse auto - desprezo refletem-se em várias áreas,  dentre elas na produção intelectual e econômica, assim como na perpetuação de  desigualdades sociais, no caráter excludente da estratificação social (em  relação ao índio, ao negro e à população pobre em geral) e nas questões éticas.
 
 Na  busca do conflito original, que estaria no cerne desse complexo de  inferioridade, destacamos alguns fatores principais presentes na formação do  país: mito de origem, projeções estrangeiras, escravidão e colonização. Vimos  também como o trauma do nascimento repete-se compulsivamente em vários tipos de  comportamento, destacando-se aqui o da corrupção.
 
 O  mito das terras parasidíacas é reproduzido pelos corruptos na permissividade  generalizada, no menosprezo da legalidade e no gosto pela desobediência civil.  Meira Penna,ao descrever os países tipologicamente, coloca o Brasil na  categoria onde “tudo é permitido, mesmo o proibido”, comparando-o, por  exemplo, com a Inglaterra onde “tudo é permitido, menos o proibido”.
 
 Dessa  forma, o mito fundante edênico colabora para o estabelecimento de um sentimento  de inferioridade desde os primórdios da formação da cultura brasileira, uma vez  que o único valor atribuído às novas terras e seus habitantes paira em torno da  sensualidade, da atratividade carnal e das riquezas da natureza. E como,  segundo padrões civilizatórios vigentes, o que é da natureza é inferior ao que  é produzido, pois os recursos da natureza estão aí para serem colhidos e  independem de trabalho ou de esforço criativo, aparentemente não há saída para  a inferioridade. Como vimos, inúmeras projeções dos estrangeiros, desde o  século XVI até a presente data, confirmam essa imagem. E o pior é que o  brasileiro, na busca de uma identificação positiva, assimila a projeção,  incorpora-a como sua e a reproduz em sua própria terra. Repete-se, assim, um  mecanismo neurótico na tentativa de se achar uma solução para esse dilema.
 
 Alguns  autores chegam mesmo a propor que o sentimento de inferioridade possa ser  sobrepujado com a valorização crescente da ecologia e dos recursos naturais,  onde o Brasil seria pródigo. No entanto, esta aparente nova atitude estaria  apenas reproduzindo mais uma vez o mito do paraíso tropical: Brasil, o  exuberante e cordial país do carnaval. As qualidades intelectuais, o avanço da  tecnologia brasileira, ou mesmo a capacidade do brasileiro de encontrar  soluções racionais para seus problemas, por exemplo, não são reconhecidos como  marcas nacionais.
 
 Assim,  parece haver uma certa cegueira quanto ao reconhecimento da produção cultural e  científica coletiva. (Ou então seria o outro pólo, o da superioridade, que não  permitiria aceitar uma produção normal, condizente com as características  específicas do país? É provável, aqui, que um mecanismo compensatório leve a  ponderar apenas “o melhor” ou “o nada”, desconsiderando as infinitas realidades  intermediárias.).
 
 A  esse fator, acrescesse a estruturação dos arquétipos parentais, onde temos a  imagem de um pai europeu, recém saído da idade média, que tem como únicos  objetivos à exploração e o rápido enriquecimento. Fascinado pela nudez e pela  liberdade das indígenas, o europeu reprimido abusa da ingenuidade da população.  A mãe índia dá a luz a uma criança bastarda que é abandonada pelo pai e  rejeitada pela tribo materna. O mesmo problema se repete na formação do  mestiço, que corresponde a 38% da população brasileira segundo o censo de 2000  (IBGE). Em sua origem na história, o mestiço é fruto da lascívia e da violência  do senhor do engenho contra a mulher escrava. A imagem do mestiço como filho de  um pai abusivo tem seus reflexos mais evidentes no preconceito e na contundente  estratificação social vigente no Brasil.
 
 Portanto,  a incapacidade de se basear nas figuras parentais, para se criar um ideal de  desenvolvimento ou uma identidade condizente com a realidade produtiva  brasileira, gera vergonha e mantém engessadas as articulações de um  nacionalismo saudável. Tanto a vergonha quanto ao desamparo indica aqui um  outro sintoma do mesmo complexo de inferioridade.
 
 Alguns  fogem da vergonha incorporando e reproduzindo o pai-bandido, assumindo uma  persona bravata e arbitrária do tipo “comigo ninguém pode”, nem mesmo a lei.  Reproduzindo inconscientemente o comportamento exploratório, imediatista e  mercantilista paterno, o corrupto usa a terra e seu ambiente de modo  predatório. Nada é para ser fixado ou produzido. Ele não respeita nem a  história, menos ainda, suas construções. O objetivo é “tirar vantagem”, “ser  esperto” – criar uma falsa superioridade.
 
 Os  discursos moralistas são engolidos pelo complexo paterno negativo e, portanto,  são ineficientes. Não há nenhuma estima verdadeira pelo pai, tampouco há  auto-estima suficiente para assimilar qualquer proposta meramente educativa ou  moralizadora.
 
 A  busca de uma saída para esse impasse também é dificultada pela ausência do mito  do herói, como precursor do desenvolvimento egóico e modelo no processo de  individuação. Como sabemos, o herói tem como tarefa contestar a ordem vigente e  promover a assimilação de novas forças arquetípicas na consciência coletiva.  Numa cultura patriarcal, ele contesta o pai e impõe novos valores, os quais  foram conquistados pelo herói em resultado de seu próprio esforço.
 
 Mas,  como contestar um pai abandonador que não reconhece o filho? Um pai  desconhecido, que nem sequer pôde um dia ter sido admirado. Diferentemente do  colonizador inglês, louvado e respeitado pelos norte-americanos, o pai  português é motivo de escárnio. São abundantes no país as piadas que, num claro  mecanismo compensatório, retratam o português como um ser inferior, estúpido e  incompetente. Ao ridicularizá-lo, o brasileiro sente-se superior e ao mesmo  tempo nega qualquer possibilidade de tomá-lo como modelo de figura paterna.
 
 O  afeto ausente no pai é procurado na repreensão em figuras de líderes políticos  autoritários e corruptos, mas que através de seu “protecionismo afetuoso”  inibem a queixa ou o comportamento de um possível denunciante.
 
 Como  reclamar daquele que abusa do poder, mas estende a mão e protege? A história é  plena de exemplos de como regimes ditatoriais preencheram a lacuna do pai  ausente. Nesse sentido, o poder político imposto pela força, pelo pulso firme e  repressor pode ser mais “afetivo” do que certos regimes democráticos, onde o  afeto tem de ser deslocado dos complexos parentais para um comportamento de  alteridade. “Na democracia o afeto é baixo, pois não há um pai todo poderoso  que vai cuidar das carências do povo”. (Janine)
 
 A  opção pela democracia e pela igualdade engendrada pela razão é difícil de ser  mantida num povo carente de identidade parental. A criança abandonada tem  irmãos abandonados, que se aliam na sombra contra o pai ausente - recorrendo à  malandragem e ao clientelismo na ausência de poder para enfrentar o pai.
 
 Busca-se  tirar vantagem em todas as situações possíveis, ao invés de se obedecer a  imparcialidade da lei, cuja missão, ao menos na doutrina, é assegurar valores  civis e morais com eqüidade. Enredar conluios que lesam o pai (projetado no  governo ou na Lei) é uma das únicas saídas encontradas por aqueles que se  sentem impotentes. (A outra seria, uma união saudável entre os irmãos, vivendo  numa sociedade de alteridade).
 
 O  complexo de inferioridade aqui ativa também a polaridade negativa do puer  aeternus e cria a imagem de um país eternamente jovem, cheio de riquezas e  belezas tropicais. A ilusão do puer é de que amanhã certamente será  magicamente melhor que hoje. Essa ilusão foi fortemente impressa na cultura  brasileira da década de 70 no bordão nacionalista “o Brasil é o país do  futuro”. A crença implícita neste lema revela uma promessa enganosa  dissolvida em uma profissão de fé.
 
 A  falsa impossibilidade de realização no presente e a falta de conhecimento  daquilo que constitui a força do brasileiro neste exato momento são sintomas do  complexo de inferioridade, compensados por fantasias de grandiosidade e  comportamentos espúrios. O filho bastardo, ilegítimo, reproduz a ilegitimidade  pela oscilação entre baixa auto-estima e fantasias maníacas, expressas na  grandiosidade de projetos governamentais e em gigantescas festas carnavalescas,  por exemplo. Assim, cria-se um círculo vicioso, onde a impossibilidade de  realização das fantasias megalomaníacas faz crescer o sentimento de  inferioridade, favorecendo a baixa auto-estima.
 
 Cabe  aqui lembrar que a corrupção como sintoma de um complexo cultural, nesse caso  de inferioridade, embora afete a todos os brasileiros, não é um comportamento  expresso ou aceito pela maioria. Ela é um sintoma de uma patologia da cultura,  um distúrbio e um sofrimento para os brasileiros, à medida que todos são mais  ou menos atingidos por ela, mas, de modo algum, é um comportamento aceito pela  maioria. Pelo contrário, grupos em diferentes instâncias, desde grandes  instituições educacionais às organizações não governamentais têm discutido o  assunto, principalmente procurando medidas educadoras e coibitivas.
 
 Como  vimos, entretanto, sem a consciência dos fatores inconscientes que geram essa  patologia, os esforços públicos e privados terão um efeito somente repressor,  e, portanto, serão temporários. Pois, como vimos mecanismos históricos  repressivos causaram uma “amnésia sistemática” das qualidades positivas,  criando uma identidade fictícia de difícil superação.
 
 Portanto,  uma verdadeira mudança só ocorrerá com o enfrentamento doloroso do conflito  inicial e com o suportar consciente da tensão entre as polaridades  inferioridade - superioridade. E, a opção pela integridade dependerá, em boa  parte, da força do ego coletivo e de sua coesividade frente à ansiedade que a  consciência do conflito central pode provocar, num estado de vigia constante.
 Dessa  forma, a assimilação consciente do conflito original, não é somente um  sofrimento, mas é o caminho da cura, à medida que pode permitir a liberação de  grande energia e a constelação de novas forças na Consciência coletiva  brasileira..
 
 Com  a auto-estima resgatada, não haverá lugar para a corrupção como sintoma  patológico de um complexo cultural. Ela ficará restrita somente ao conflito  consciente entre o bem e o mal. Mas, isso já é outra história.
 
 PS As referências aqui citadas encontram-se no livro:  Singer,T. &  Kimbles,S.. The Cultural Complex: Contemporary Jungian Perspectives  on Psyche and Society: Routledge. London.  2005.
 
 Ética e corrupção no BrasilSenador Eduardo Suplicy
 Achei muito interessante o convite que vocês me  fizeram para dialogar com psicanalistas junguianos sobre o tema “a sombra na  política”, e sobre as questões relativas ao problema da ética, da corrupção no  Brasil. E confesso que embora conheça o que seja psicanálise, fiz psicanálise  com, por exemplo, doutor Bernardo Blay Neto, quando bem mais jovem, e com  diversas outras pessoas, algumas de excepcional talento e muito respeitadas na  psicanálise; fui casado com a Marta que é psicanalista, de Jung conheço  relativamente pouco. Para estar aqui li dois artigos de uma revista que não  conhecia “Viver, mente e cérebro”.  Ainda não li toda a revista, mas vou fazê-lo. Li o artigo do professor Carlos  Amadeu Botelho Byington, e o da professora Denise Ramos. Fiquei muito  interessado em saber mais a respeito de Jung e da professora Denise Ramos, que  falou de seu artigo sobre esses complexos culturais que acabam causando um sentimento  de inferioridade nos brasileiros; da supervalorização daquilo que é estrangeiro  em detrimento do produto nacional, e das atitudes auto-depreciativas presentes  em piadas, a falta de valorização de tudo que tem contribuído em grande parte  para a tolerância com a corrupção, com a quebra da lei, com o favoritismo, e  outros comportamentos, principalmente por parte de pessoas públicas e  autoridades. Comecei a pensar nessa conclusão e lembrei-me que problemas de  corrupção estão ocorrendo aqui e nos países mais desenvolvidos. Outro problema  sério refere-se à necessidade das autoridades sempre dizerem a verdade, sempre  serem honestas, inclusive no que diz respeito às questões de vida e morte dos  povos. 
 Nesse  sentido, estamos vendo o presidente da nação mais poderosa do mundo, que nos  visitou ontem, deparar-se com o problema da evidência de que ele e os órgãos de  inteligência dos Estados Unidos faltaram com a verdade no que diz respeito à  principal ação americana, de repercussão mundial, que foi a guerra no Iraque  para derrubar Saddam Hussein, em 2003, cuja justificativa foi o fato dele  possuir armas de destruição em   massa. Agora tomamos conhecimento que esse fato não  corresponde à verdade. Ou seja, os Estados Unidos promoveram uma guerra de  extraordinária repercussão que resultou em muitas mortes: até agora 26 mil  pessoas morreram, sendo mais de dois mil norte-americanos. Essas mortes  ocorreram desde quando o presidente americano anunciou o fim da guerra, quer  dizer, a guerra não acabou. Então, eu queria dizer, já que estamos num ambiente  de psicanalistas, que fiz análise com a doutora Virginia Bicudo, nos últimos  anos de sua vida. Quero, com isso, dizer que conheço um pouco do que seja  psicanálise, mas não conheço a psicanálise junguiana e tenho enorme vontade de  aprender. Essa foi uma das razões porque aceitei o convite para estar aqui com  os senhores e senhoras.
 
 Teria  aqui disposição em falar, horas e horas, sobre as coisas que têm ocorrido no  Brasil, mas vamos selecionar algumas. Primeiro, em maio último, passei por uma  situação de grande dificuldade porque, nesses vinte e cinco anos de existência  do PT, partido do qual sou fundador, pela primeira vez fui instado a fazer algo  diferente da recomendação da direção nacional, bem como da recomendação da  bancada de senadores que, por sete a seis, dos treze membros, recomendou que  não assinássemos o requerimento da CPI dos Correios. No dia 25 de maio deste  ano, escrevi ao presidente Lula e depois lhe expliquei: pelo seu bem, do nosso partido, da nossa história, da nossa nação, eu  resolvi assinar o requerimento de CPI. Isso me causou alguns problemas  dentro do partido, mas o PT tem alguns marcos que caracterizaram a nossa  história, como a luta pela democratização ao lado de outros partidos. A partir  dos anos 80, o PT foi o partido que mais lutou pelas eleições diretas para  prefeito das capitais, para governador, para presidente da república, enfim,  considero ter sido o partido mais atuante na campanha pelas Diretas Já. Fomos nós que iniciamos a  campanha pelas diretas já, a qual todos abraçaram depois.
 
 O  segundo foi a luta por ética na política. No primeiro semestre de 92, certo dia  após a entrevista de Pedro Collor de Melo nas páginas amarelas, da revista Veja, com a qual fiquei impressionado,  liguei para o José Dirceu, então deputado federal, e fomos conversar com Pedro  Collor, que nos atendeu no hotel Macksoud  Plaza, aqui em   São Paulo. Conversamos por cinco horas. Ficamos tão  impressionados que, juntos, escrevemos, na minha casa, logo a seguir, o requerimento  solicitando a instalação de uma CPI para investigar os atos praticados por PC  Farias no Governo Federal. Isso acabou resultando na campanha por ética na  política, o movimento dos jovens de rostos pintados nas ruas para dizer que não  era possível mais aquele tipo de procedimento, que acabou resultando na queda  de Fernando Collor naquele ano. E sempre lutamos por transparência, para que as  pessoas pudessem agir com muita sinceridade.
 
 O  terceiro pilar da nossa história foi a luta pela realização da justiça. Sobre  isso eu vou deixar para depois.
 
 Gostaria  também de lhes falar um pouco, pois não sei se os junguianos conhecem, em breve  todos os junguianos terão direito de partilhar da riqueza da nação através de  uma Renda Básica de Cidadania.
 
 Como é o seu nome? Lídia, você sabia disso? Não  conhece a Renda de Cidadania? A Lídia quando saiu de casa hoje o fez pela  janela? Por onde? Saiu por onde de casa? O mestre Confúcio no livro das explicações  e das respostas 520 anos antes de Cristo disse que a incerteza ainda é pior que  a pobreza, e pode alguém sair de casa senão pela porta? Dei o nome ao meu livro  de Renda da Cidadania - A saída pela  porta para demonstrar que, se desejarmos de fato erradicar a pobreza  absoluta, construir uma nação justa e civilizada, e assegurar que todas as  pessoas possam ter o direito à dignidade e a liberdade real é a Renda Básica de  Cidadania que deverá ser implementada no Brasil associada a outros  instrumentos, que também são importantes: a reforma agrária, o estímulo às  formas corporativas de produção, o micro-crédito, a agricultura familiar, a  educação, a expansão de educação básica, educação pública, e assistência à  saúde pública. Uma solução tão de bom senso quanto sairmos de casa pela porta.  Então, gostaria de lhes explicar o que é isso se tempo houver depois.
 
 Mas,  é claro que como será a forma de diminuir, minimizar a corrupção, isso que tem  afligido o país, o PT? Acabo de chegar de Assis, onde estava com o Presidente  da República, e o presidente estava sob o impacto da entrevista que acabara de  conceder ao programa Roda Viva e que poderemos assistir hoje à noite. Ele fez  algumas observações sobre o que lhe perguntaram. Muitas foram as questões sobre  o José Dirceu, em que medida ele sabia do que havia acontecido, ou se ele havia  observado a não existência de provas sobre qualquer ato que pudesse ser  caracterizado como corrupção, se sabia do mensalão, e assim por diante.
 
 Com  respeito a esse assunto, é muito importante a iniciativa que vocês estão tendo.  A minha convicção é de que a maior parte do povo quer viver todo dia da maneira  mais sincera e honesta possível. Todos nós queremos ensinar aos nossos filhos e  filhas a procederem sempre sem mentir, agindo com honestidade, orientando para  que ninguém seja roubado, ninguém seja desrespeitado em seus direitos. A grande  maioria do povo quer que as coisas aconteçam. Claro que muitas vezes alguns são  até instados por uma questão de sobrevivência a tomar o caminho que não seja  nesse sentido.
 Posso  perguntar aqui quantos assistiram “Cidade de Deus”. Levantem a mão, por favor.  Praticamente todo auditório assistiu, e coloco isso como uma ilustração  importante. Os personagens do “Cidade de Deus” são pessoas que vivem numa  situação na qual a dificuldade de sobrevivência é de tal ordem, que quase não  há alternativa senão aquela na qual as crianças se tornam “aviõezinhos” de  quadrilha de narcotraficantes, as meninas eventualmente têm de vender o seu  corpo, e assim por diante, como meio de ajudar no orçamento da família. Essa é  uma questão importante e que precisa ser resolvida com os instrumentos de realização  de justiça, como a Renda de Cidadania.
 
 Outro  aspecto refere-se àqueles que, tendo oportunidade, acabam agindo de maneira  incorreta e, às vezes, até para enriquecer e tirar proveito das condições que  acontecem. O prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen, em Desenvolvimento como Liberdade tem um capítulo extremamente interessante  que trata do combate à corrupção. Ele nos coloca questões tão importantes sobre  o tema.
 
 Até recomendei ao presidente Lula que lesse esse livro, especialmente o  capítulo sobre a escolha social, que aborda uma inscrição colocada nas pedras  na China antiga em 122 AC na qual o  problema é apresentado da seguinte maneira: se  o instrumento de medida é verdadeiro, ou seja, se o instrumento de medida que  se coloca na madeira for retilíneo, então a madeira sairá reta não por causa de  um esforço especial, mas porque aquilo que faz a madeira ficar reta faz com que  isso de fato ocorra. Como se chama esse instrumento da construção? A  plaina. Se a plaina for reta, então a madeira sairá reta porque a plaina é  reta. Da mesma maneira se o chefe de uma organização, o chefe do poder  executivo, ou pode ser o chefe da organização junguiana, ou da PUC, se o chefe  da organização é sincero e correto sempre, então aqueles que servem neste  governo e que procuram agir com correção, e que gostam de agir com correção,  vão fazer da mesma maneira. E aquelas pessoas que tentariam se aproveitar de  cada situação em proveito próprio tendem a se inibir, a se afastar. Por outro  lado, se o chefe da organização começa tomar atitudes que permitam a uns e  outros se aproveitarem, então o que acontece? Normalmente aqueles que procuram  agir com correção tendem a se inibir e se afastar, e as ratazanas é que se  aproximam. Acho que esse é um ensinamento muito adequado e que, quem sabe, se  case aqui com os propósitos do que vocês estão nos convidando a refletir.
 
 Tem  um outro tema que gostaria de lhes transmitir que é o direito de reeleição.  Nós, do Partido dos Trabalhadores, fomos muito críticos no direito de reeleição  quando o presidente Fernando Henrique Cardoso o propôs em 95/96/97. Naquela  oportunidade me dei conta de que o presidente Fernando Henrique tinha como um  dos seus autores preferidos Alexis de Tocqueville, que em a “Democracia na América” tem uma passagem  formidável sobre o direito de reeleição, na qual ele observa que seria de bom  senso um povo que tivesse tido um governante excelente e que amasse esse  governante pudesse reelegê-lo. Isso seria de bom senso. Mas, o coloca, será que  as vantagens do direito de reeleição não seriam sobrepujadas pelas desvantagens  do direito de reeleição? Tocqueville demonstra que nas democracias quando  existe o direito de reeleição – em seu livro ele se refere aos Estados Unidos –  muitas vezes acontece do chefe de Estado e daqueles o cercam colocarem o  objetivo de reeleição como seu objetivo maior. Ou seja, o presidente e seus  auxiliares começam a se utilizar do Estado em proveito próprio, usando  inclusive de meios ilícitos para garantirem a reeleição.
 
 Quer dizer, assistimos muitos episódios durante a votação do  direito de reeleição que não foram inteiramente investigados porque se evitou a  instalação de uma CPI com essa finalidade. Foi noticiado, inclusive, que teria  havido a compra de votos, o que agora deverá ser objeto de investigação da CPMI  instalada no Congresso. Mas, tenho certeza, não será tão fácil encontrar as  provas. Alexis de Tocqueville  recomenda a não existência do direito de reeleição, pois ela pode ter  contribuído para que muitos desses episódios tenham acontecido no Brasil recentemente.  Se ocorrer de novo uma votação extinguindo o direito de reeleição votarei  favoravelmente. Aliás, votei contra tal instituto. Muito obrigado.
 
 Uma análise da teoria da corrupção do Estado de John DobelProfª. Maria Garcia
 Boa noite a todos. Cumprimento  a todos, mais especialmente aos participantes deste painel, com o prazer de  rever o senador Eduardo Suplicy. Estivemos recentemente num painel na OAB e por  isso é um prazer revê-lo, Senador, e ouvir a sua fala agora, muito inspiradora,  muito aprofundada. Devo iniciar, então, com um aspecto constitucional e  político deste painel sobre a corrupção. E vou colocar algumas idéias a partir  de uma “teoria da corrupção”. É uma obra pouco conhecida do cientista político  norte americano, John Patrick Dobel, que nos anos 80 publicou essa teoria. E é  interessante também, observando as palavras do senador Suplicy de que  efetivamente o Brasil não é detentor único da existência de corrupção. A  corrupção é inerente ao ser humano, e no campo político existe em todos os  países. O grande problema da corrupção é o nível que pode atingir quando ela toma  o próprio Estado, e se estende para a sociedade, e os cidadãos em geral. O problema da  corrupção é como combatê-la. É aí que se vê que o Brasil não é o único detentor  de corrupção. É abrir o jornal e verificar como isso se dissemina pelo mundo.  As pessoas e a sociedade corrompendo-se mais, ou menos, com os problemas agora  da globalização financeira que realmente está alterando muito a nossa vida  nacional e internacional. O problema é então, eu vou repetir, como combater a  corrupção uma vez que ela existe. Então vou me utilizar dessa teoria do John  Patrick Dobel, com os pontos básicos que ele coloca, para uma reflexão comum.  Ele parte de cinco postulados, ou cinco proposições. Na sua teoria, propõe  algumas idéias sobre a corrupção e depois dá uma receita sobre a corrupção. A  primeira idéia que expõe é a seguinte: certos padrões de lealdade moral e de  virtude cívica são necessários para manter uma ordem política justa, eqüitativa,  e estável. Então é preciso haver padrões de lealdade moral e de virtude cívica  abarcando, portanto, os dois ângulos da pessoa. O ângulo pessoal e o ângulo  político, da cidadania. Então ele diz: a privatização das preocupações morais,  ou seja, atentar para os interesses particulares em primeiro lugar, e a  decorrente ruptura da lealdade e da virtude cívica são os atributos cardeais de  um Estado corrupto. Segunda proposição: a grande desigualdade de riqueza,  poder, e status geram a corrupção sistemática de todo o Estado. O que é que  gera? A grande desigualdade de riqueza, poder, e status. Aí ele comenta: os  membros das classes mais altas sacrificam a sua lealdade civil básica para  ganhar posições ou mantê-las. E a desigualdade estabelecida solapa a lealdade e  o bem estar do cidadão, em   geral. Então o exemplo quem dá é a classe mais alta. Terceira  proposição: essa mudança de qualidade moral combinada com a permanente  desigualdade gera grupos, gera facções, as quais usurpam funções políticas e  governamentais de importância vital. Então, as facções geradas pela mudança da  qualidade moral e cívica, a existência de facções, fazem com que esses grupos,  essas facções passem a ocupar, ele diz “usurpar” funções políticas e  governamentais. Quarta proposição: O conflito de facções, porque certamente  elas vão lutar. Se elas querem “usurpar” posições de poder e posições  governamentais vão lutar entre si. O conflito dessas facções e a contínua  desigualdade que não parou de crescer, estendem a corrupção a toda a cidadania.  A violência torna-se o substrato dominante de todas as relações, em casa, fora  de casa, na escola, na rua, a violência toma conta das relações sociais. E o  discurso político fica reduzido a uma repetição sem profundidade. Você lê o  discurso político, e você vê que ele se repete, ele é transparente, ele é sem  profundidade, o que quer dizer que são ditas sempre as mesmas coisas,  procurando convencer. A função pública, a lei, a justiça, tornam-se  instrumentos dos grupos, das facções, e das classes. A população destituída e  as classes altas tornam-se cada vez mais polarizadas, ou seja, as pessoas  destituídas e as classes altas tornam-se cada vez mais distante uma da outra.  Não há uma classe intermédia. A grande pobreza, e a grande riqueza. A sociedade  gira num inquieto círculo de restaurações e reformas. É reforma da educação,  reforma do sistema eleitoral, reforma política, e a sociedade gira num círculo  inquieto de tentativas abortadas de reformas rumo à alienação, à violência e à  anarquia institucional cada vez maior. Nós não estamos falando do Brasil. Nós  estamos falando de uma teoria da corrupção. Resta ver em que medida nós estamos  caminhando para isso, ou não. Isso se adapta a qualquer país. Por fim ele  propõe a socialização da educação, da vida familiar, da religião, e classe  militar, que sustentam os valores comunais, e a lealdade. Às vezes até mesmo depois  da corrupção do processo político. Ele chama essas estruturas de “estruturas  primárias”. Efetivamente a socialização da educação o que é? O acesso de todos  à educação em todos os níveis. A socialização da vida familiar. O acesso de  todas as pessoas a uma família, ainda que seja uma família adotiva ou substituta  mantida pelo Estado. Abaixo as Febem’s. O que a pessoa precisa é de ter uma  família. Também a socialização da religião. Foi dito aqui pela profa. Denise  Ramos que em várias épocas, por exemplo, na formação dos Estados Unidos a religião  foi um fator muito importante. E também a socialização dos militares. É  interessante falar disso, causa um certo mal estar, mas basta lembrar que os  nossos jovens que estão nas ruas, que estão na violência, se estivessem no serviço  militar, aprendendo até, para obter um meio de vida seria muito interessante.  Tirar a juventude da rua e colocar na vida militar, no serviço militar onde  aprendem, podem aprender a virtude cívica, e até aprender uma profissão, ou  permanecerem na carreira militar que sempre foi desde a história mais antiga o  esteio do Estado. Infelizmente a história brasileira recente faz-nos desconfiar  desse fator que Dobel entende como uma estrutura primária da sociedade, e que  deveria ser estimulada. Então ele diz: a corrupção final do Estado envolve o  fracasso dos cidadãos em apoiar voluntariamente essas estruturas primárias. A  crise da família, o problema militar no Brasil, a crise da religião ou de um  esteio moral, e o problema da própria educação à qual nem todos têm acesso  ainda, no Brasil, apesar do que manda a Constituição que diz que a educação é  um direito de todos e dever do Estado e da família, com a colaboração da  sociedade, que somos nós. Qual é a receita? Então ele apresenta aqui quatro pontos  que eu vou citar rapidamente. Primeiro, a corrupção faz parte da condição  humana. E a prática política honesta exige estruturas destinadas a limitar, desencorajar  e canalizar essas tendências de corrupção. Isso já foi visto aqui na palestra  da profa. Denise Ramos. É preciso uma reação contra essa corrupção inerente à  condição humana. Segundo: e o Senador Suplicy falou do filme Cidade de Deus que mostra perfeitamente como já desde a primeira formação, esses meninos e  essas meninas estão sujeitos à corrupção. A comunidade deve concentrar-se na  educação a fim de encontrar lealdade nas relações dos cidadãos entre si e criar  uma disposição inicial aos interesses do bem comum. Quem pode fazer isso, e  somente pode fazer isso é a educação. É minha opinião pessoal também. A  participação política continua o processo da educação e contribui para a  estabilidade do regime. Então vem a participação política, a democracia participativa.  Ela vai continuar a obra da educação que abrange desde as crianças até os  jovens universitários e vai contribuir para a estabilidade do regime, no caso,  o regime democrático. Finalmente, é absolutamente necessário que sejam impostos  limites severos à acumulação de riquezas, e ao privilégio hereditário. Dobel  diz que devem ser impostos limites severos à acumulação de riquezas. É  inadmissível num país como o Brasil os grandes níveis de miséria, e os grandes  níveis de riqueza por poucos detentores da riqueza nacional. E por fim, o  privilégio hereditário. Isso realmente é um elemento da ideologia socialista, a  questão do privilégio hereditário, do direito à herança. Muita gente não gosta  da idéia, mas é claro que também é algo que precisa ser revisto. Ou, pelo  menos, o imposto das grandes heranças que isso ainda não veio ao Brasil que é  um derivativo, um paliativo, mas que ainda não é o fim do privilégio  hereditário. Toda a dialética da injustiça e da corrupção começa com essa  desigualdade. A corrupção do Estado, e a corrupção dos indivíduos andam lado a  lado, portanto, é preciso rever essa questão da corrupção, porque a corrupção  da sociedade é a corrupção do Estado e do indivíduo como foi dito aqui, aquele  indivíduo que engana, aquele indivíduo que mesmo morando na favela se ele abre  ali um botequinho, uma quitandinha, ele vai roubar no peso, ele vai roubar no  preço também, porque a corrupção se dissemina por toda a sociedade. Vou ler por  final um texto antigo, mas que pode se aplicar perfeitamente à atualidade.  “Todas as crises que pelo Brasil estão passando, a crise política, a econômica,  a financeira, não são mais do que sintomas de um estado mais profundo, uma  suprema crise, a crise moral, a crise ética”. Ruy Barbosa, nos idos do século  XIX. Portanto, uma fala perfeitamente atual. Muito obrigada.
 
 O caráter do corruptoDr. Carlos Briganti
 Primeiro, gostaria de agradecer ao Núcleo de  Estudos Junguianos o convite, do qual me sinto profundamente honrado. Quando  profa. Liliana Wahba dizia instantes atrás, “eu te apresento como  psicanalista?”, e na seqüência o Senador Suplicy iniciou sua apresentação  dizendo: “conheço muitos psicanalistas!”, isso me transportou a uma  história que eu vivi e gostaria de compartilhar.  Foi  a primeira e única vez que Jacques Lacan veio à América do Sul, em Caracas,  onde aconteceria um Congresso. Lacan nesse congresso, que posteriormente  ficaria destacado e relembrado através de seu discurso introdutório. Ele frente  ao público constituído por muitos destacados psicanalistas lacanianos  brasileiros, uma quantidade enorme de psicanalistas argentinos, a maioria  lacanianos, alguns venezuelanos, também psicanalistas lacanianos. Eu estava lá,  curioso, sem ser lacaniano ou freudiano ou junguiano. Não consegui, até hoje,  ser devoto. 
 Estava  com alguns colegas psicanalistas lacanianos brasileiros e argentinos no  auditório, e Jacques Lacan tomando a palavra inicia mais ou menos assim “...  fui informado que havia muitos psicanalistas lacanianos na América Latina, e  como não era lacaniano, gostaria de aproveitar a oportunidade para conhecer  alguns, para saber do que se tratava “isso”. Haveria algum psicanalista  lacaniano na platéia?” O silêncio como resposta. Eu tive um acesso de  angústia, o riso como expressão desta, e nesse instante para a minha sorte, Dr.  Lacan muito próximo à platéia, ria e disse uma frase que, acredito, tenha  tocado a maioria, “- Que todos saíssem da é-cole dele!”, escola dele. Da  escola dele, e do “cole”, ou seja, “do rabo dele!” Provavelmente, porque sabia  o que significava os “seguidores” de qualquer coisa escondidos em sua é-cole.  Eu acredito ser importante atentar a isso neste momento de nossa apresentação a  fim de não corremos o risco de confundir o individual com o coletivo expresso  em partidos, seitas.
 
 O  risco é a possibilidade do se fanatizar “nisso”, sejam seitas ou  partidos, abandonando ou deixando ao lado a reflexão individual, um dos  possíveis caminhos em direção a alguma “razão”. Às vezes, a própria história  que vivemos, sem nos apercebermos, nos induz a esta perda de identidade,  constituindo uma falsa identidade que acreditamos, quando em verdade nos  aproximamos da identidade de um rebanho de seguidores ou fanáticos.
 
 Daí  utilizar a metáfora do Senador “- conheço muitos psicanalistas!” e  roubando sua apresentação: “- conheço muitos políticos!”. Isso expressa  o vazio do indivíduo em sua subjetividade e estabelece uma crença: a do  conhecer o individuo através do rebanho. Ledo engano.
 
 Essa  mesa foi muito feliz em sua constituição no instante em que ela se articula de  forma interdisciplinar: por meio de um empresário, uma professora de direito,  psicanalistas, um político, e um médico psiquiatra. Escapamos dessa forma do  rebanho do mesmo ou de uma reunião de especialistas, que é o mesmo que um  aglomerado do nada ou da não criatividade.
 
 Eu,  como psiquiatra acostumado a ouvir histórias, e por alguma razão ainda  desconhecida, continuo gostando de ouvi-las. Sob esse hábito pesquiso as  histórias das palavras. Toda palavra carrega uma identidade construída, uma  biografia. Uma das melhores formas de tentar conhecer alguma coisa ou alguém é  através do entendimento e compreensão do percurso da vida deste. Acontece o  mesmo com o significado de cada palavra que carrega uma particular biografia. Corrupção é a junção de duas: Co que é originário do latim cum que  significa contigüidade, companhia, por exemplo, co-autor, co-terapeuta,  co-laborador; corrupto de rumpto, is, etem, ere, que vem do latim que  significa romper, quebrar, partir. Corrupção é o ato de ruptura de uma norma ou  regra ou ética em colaboração com outro ou outros, é impossível a co-rrupção ser exercida por um único ser humano, não é possível ser uma atividade  solitária.
 
 Corrupto  e Corrupção irmãos siameses, exemplo disso: quando nos aproximamos de um  corrupto sua primeira fala o denuncia: “- Eu nunca estive com ele. Eu nunca  falei com ele. Eu não sabia de nada dele”. Porque a palavra indica que há  uma expressão de comunhão. Se nós ficarmos atentos a concretitude do  significado apenas do corrupto ou da corrupção, corremos o risco semelhante das  vítimas daquele maluquinho que frente a um hospital psiquiátrico, portando uma  vara de pescar, anzol e isca, mergulha todas as traquitanas num balde vazio e  aguarda. O psiquiatra chegando ao trabalho olha seu antigo paciente e pergunta  : “- E ai Zé pescando muito?” Ele responde: “- Com você é o sétimo!”.
 
 A  outra biografia que eu gostaria de trazer é sobre a palavra ética. Ética  é uma palavra de origem grega, ethos, que surge pela primeira vez em Ulysses que significa a casa dos animais, mais especificamente do chiqueiro. Ética  significa colocar em ordem a casa dos animais humanos, seguindo princípios  normativos, que o diferenciem dos outros animais. Corrupção de uma ética: a  ruptura dos princípios que constituem nossa casa, ou seja, nossa sociedade.
 
 Transformamos  por meio do corrupto nossa sociedade em chiqueiro. A corrupção é a responsável pela  produção desse estado de “sociedade” emporcalhada que todos aqui presentes  sofremos, de uma forma ou outra.
 
 Está  implícito, uma sociedade é uma construção por meio de passagem lenta e gradual  da partícula “eu” em direção a partícula “nós”. Este processo é dificílimo numa  estrutura social como a nossa que privilegia o ego-ismo, a individualidade.  Ética é sempre comunitária, social, nasceu junto à cidade. “- Eu quero levar  vantagem em tudo!” demanda essas tragédias que constroem nossa atual  historia. A consciência de si somente é possível desde o individuo tomar em si  a consciência da história.
 
 Tomando  consciência de si para construir uma possibilidade de entender o outro. Marx  vai “roubar” esse conceito, e “roubar” é um artifício necessário para a  construção da filosofia, política, história, ciência, porque é dessa forma que  se produz o saber, através da articulação de um conceito em outro, na produção  coletiva da sabedoria, que não possui proprietários, é a expressão do ser  coletivo, da sociedade coletiva, qual um rizoma.
 
 Rizoma  é a palavra “roubada” da botânica, que traduz a maneira pela qual se estruturam  as gramas, as raízes, que ao contrário das árvores, se disseminam, correm numa  plataforma de igualdades e, de tempos em tempos nasce uma nova planta.  Totalmente diferente da verticalidade, expressa pela árvore, onde existe a copa  enorme, o caule, as raízes que reproduzem radículas, sempre, semelhantes às  raízes.
 O  processo que privilegia o indivíduo é direcionado à mitificação da copa da  arvore, semelhante aos regimes que enaltecem o “líder” travestido de valores de  alguns altares quaisquer, demagógicos ou não. É mitificado com a única finalidade  de hipnotizar um pouco mais o povo, cego de todas as misérias. Resta ao povo  cego, olhar para a copa.
 
 Encontra-se  implícito que sociedade é um conjunto de indivíduos que se transforma, pelo  menos a maioria, do “eu” árvore ao “nós” rizoma. É o momento maior da  civilização a aquisição da consciência do “ser coletivo”. Ser cidadão é ser  comunitário, é ser comum.
 
 A  ética sobrevive devido ao nomos ou leis. Recordemos Moisés, que ao se  deparar com um possível fim da sociedade e cultura judaicas, no momento que seu  povo se misturava a uma outra ética, a do Deus Baal, correndo o risco de  desaparecer sob a degradação dos costumes das suas leis transgredidas pelas  orgias, desrespeitos aos genitores. Moisés trouxe a tábua das Leis, ou tratado  de ética social humano.
 
 Em  cada lei existe um pedaço da alma do ser humano, às vezes racional. Inscreve  como primeira Lei: amar a Deus sobre todas as coisas. Sabedor de que, cada  homem elege seu Deus particular: Deus-dólar, Deus-poder, Deus-sexo, Deus-Meu  Deus! As outras leis que todos conhecemos dizem de perto a todos nós: não  caluniar ou fofocar, não desejar a mulher ou homem do próximo, não roubar, não  matar... pedaços de nossa essência.
 
 A  sobrevivência da ethos como a Dra. Maria Garcia trouxe muito bem, só é  possível através da lei. Destaco Heráclito de quem restou 129 fragmentos. Eu  sempre tento trazer esses gregos, sempre referências porque mesmo sem  consciência disso, somos todos gregos: nós pensamos como gregos, temos lógicas  gregas. Destaco uma frase de Heráclito “Ethos anthropos Daimon”,  a tradução: “A ética ou o caráter é o destino do homem”.
 
 A  formação que o individuo recebe da sociedade que ele constrói. O individuo gera  a sociedade que interpreta o indivíduo, que gera a sociedade que interpreta o  indivíduo...
 Como  psiquiatra eu me perguntava: “- Como eu poderia entender caráter,  subjetividade, desde minha prática clínica diária?” A resposta, como  sempre, se encontrava a minha frente. O caráter se expressa, também, através  dos delírios cotidianos, manifestos desde as instituições hospitalares,  organizações psicanalíticas ou partidos políticos.
 
 Mas,  o que é delírio? Delírio é a expressão do imaginário que pretende realizar  desejos. O que é essa coisa: “expressão do imaginário”? É aquilo que ainda não  está resolvido sob a ordem simbólica, inteligível, lógica. E desejo por que?  Porque o desejo é o motor do ser humano. Todo delirante expressa um desejo  dele, imaginário.
 
 Há  trinta anos, nos Juqueris de Franco da Rocha, ou no Manicômio Judiciário havia  sempre dois destaques-ibope, que reproduziam os “melhores personagens”  da sociedade. Eram com ampla maioria de escolha, Jesus e Napoleão Bonaparte. A  Dra. Denise Ramos adoraria fazer um trabalho sobre isso, tenho certeza.  Demandaria um texto competente. Hoje mudou, Jesus continua em alta,  provavelmente, devido à propagação não só da igreja católica como também dos  “partidos das igrejas universais”, acompanhadas de milhares de irmãs igrejas,  que deliram em construir bispos e outras riquezas-dízimos.
 
 O outro “melhor personagem-ibope” em alta é  “Silvio Santos”, esse em contínua ascensão. Napoleão não tem mais lugar,  destronado, sem coroa, não ocupa mais o lugar de “melhor personagem”. Os  “Silvios Santos”, de todos os corredores, não apenas dos hospícios, dizem: “- Quer  dinheiro ou não quer? Vai para o trono ou não vai?” Aliás, não há grande  diferença do que eu ouço e vejo nos corredores dos hospícios do que ouço e vejo  nas falas das CPIs: “Vai ser cassado ou não vai? Vai para o trono ou não  vai?”. “Dança da Pizza ou das cuecas?”. Sempre dá Bingo! Falam, de  maneira fácil, de milhões de dólares. Aqui somos trabalhadores de saúde mental,  funcionários de sistemas médico-psicológico-escravagistas. Lá, por meio das  falas das CPIs me deparo com um outro mundo ético, todos ou “não sabem”,ou,  “não viram”, são todos impolutos, honrados pais e mães de famílias. A  ética do poder não corresponde à ética do mundo do lado de cá. A lei deles não  é a mesma lei para o povo. Ética tripartida: ética política, ética social,  ética religiosa ou admirável sociedade partida ou esquizofrênica.
 
 Há uma corrupção ou divisão ética entre o  público e o privado. Tenho certeza que a maioria dos homens das CPIs são  crentes de algum deus, não matam, não batem em bêbados, devem rezar, tem  família, tem ética privada. No caráter público, a maioria abandona as leis  privadas e se transformam em cidadãos acima da suspeita.
 
 Ética deles ou uma boa parte se transforma em  sócios da Republica. Lá, amigos do rei. Lá, a máxima da ética pública se  concretiza: “Trabalhar ou fazer política?” Vivemos uma gravíssima doença  divisória. Não existem duas Ética.
 
 A população é formada através dos exemplos. O  caráter reproduzido pela mídia. Hoje nós elegemos presidentes que podem ser  qualquer coisa: analfabetos, bebadoso ou qualquer outra coisa. Uma vez que será  produzida a venda de um “produto”. “Presidente-Produto da República”. Elege-se  um Presidente da mesma maneira e talento como se elege um sabonete. Todos os  candidatos, sempre, em fotos rejuvenescidas coladas em outdoors rindo.  Do que?
 
 A televisão, os jornais, as revistas que o  Senador citou e leu, também forjam o caráter ou deformam. “Silvios Santos” como  ícone, e tantos outros iguais a ele, fornecem alienação: sorteios, para todos a  se delirarem milionários, mais bundas morenas, bundas loiras, nos intervalos  dinheiros, nos outros intervalos, que não dão trégua à formação do caráter do  povo surgem as propagandas como a profa. Denise destacou: “- Levo vantagem  em tudo!”; “Skol, Homem, Skol!”; “Marlboro, terra de homens!”; ”Viagara! Levita!  Cialis!”
 
 E nós videotas ficamos calados, passivos,  ouvintes, permitindo a constituição desta caracterologia e com pouca  possibilidade de exercer algum movimento a não ser estes raros, que a Prof.  Dra. Denise corajosa, resolveu realizar.
 
 O corrupto, eu não tenho a menor dúvida  psiquiátrica clínica, é um delirante. Ele procura o desejo inatingível, ele  morre corrompendo. Por que? Porque não tem a possibilidade de incorporar,  introjetar, constituir em si mesmo o que é lei ou o que é limite, o que é sociedade,  o que é o outro. O corrupto é psicopata por que não tem a possibilidade ética  de viver o limite que a lei estabelece. É aquele que não tem compreensão de sua  vida com outros. É aquele que não cria o conceito de responsabilidade, muito  menos a exerce. É aquele que acredita que tudo pode e tudo quer. O corrupto é  aquele que é a própria lei de si mesmo. É aquele que é sócio da República e  vive em outro país. Nada realiza pelo país que adotou muito menos pelo país que  nasceu e vilipendia.
 
 Quando surgem as épocas de eleição ao  cobiçado cargo em que precisa dos votos, e todos sabemos dessas histórias,  recebe beijos dos pobres, e em seguida passa álcool no rosto e nas mãos. Ele só  tem um único projeto psicopático: avançar na coisa pública.
 
 Cada corrupto é semelhante àqueles nazistas de  Nurenberg, que foram julgados e enforcados. Por que eu os comparo aos nazistas  de Nurenberg? Porque produzem no nosso Brasil não somente a miséria, a fome, a  exploração, como campos de concentração de prostituição de todas as idades em  todas as lindas praias de Alagoas, Maranhão, Bahia, Pernambuco, e todas as  outras. Meninas e meninos de nove, dez anos de idade que estão nas infinitas  cidades de deus, destruídas, vendidas, prostituídas. Nos Pelourinhos dos nossos  Brasis falsos turistas ou seja estrangeiros que vem aqui para auxiliar a  destruição do caráter de todas as nossas filhas e filhos de nove, dez, onze  anos. E nós, videotas, não vemos.
 
 A responsabilidade de tudo isso é simples e  fácil de ser deduzida, é elementar aritmética: quando se enfia a mão na caixa  da coisa pública, calcula-se a cada milhão de dólares, como eles facilmente  falam, quantas crianças morrem, quantas escolas não se realizam, quantas  penitenciárias não se constituem, quantas juventudes se deformam, quanta  miséria...Eu também tenho um desejo, para todos os corruptos a lei. Jamais a  pena de morte. A pena de vida.
 Muito obrigado.
 
 Debate  Profª.  Liliana Wahba: Iremos abrir agora o debate. As pessoas podem dirigir as perguntas pelo  microfone ou mandar por escrito.
 Platéia: Boa noite.  Relacionado ao tema da corrupção, eu gostaria de saber como a reforma política,  ao delegar poderes a setores privados, principalmente na área da saúde e  educação, tirando poder financeiro para gerir as coisas de forma direta do  Estado, pode influir na corrupção. Como isso pode evitar que ocorra corrupção  dentro do Estado?
 
 Senador  Eduardo Suplicy: As recomendações que foram feitas são muito positivas. Mas, sobretudo, a norma  da transparência nos atos da administração pública em tempo real constitui uma  das melhores maneiras para prevenirmos os atos de corrupção. No que diz  respeito à reforma política e tudo aquilo que se passou sobre o financiamento  do caixa dois, ainda há três semanas, os doze senadores do PT propuseram à direção  nacional do partido, que a partir de hoje, se registre em tempo real,  diariamente, na rede mundial de computadores, isto é, na Internet, todas as  fontes de receitas e de despesas das campanhas políticas. Também assumimos o  compromisso de não utilizarmos caixa dois.
 
 Tive  uma experiência na Câmara Municipal de São Paulo em 89/90 quando presidi aquela  instituição e coloquei como norma que a melhor forma de prevenir a irregularidade  seria tornar tudo transparente. Por exemplo, as reuniões da mesa diretora eram  transmitidas em tempo real pelo sistema de som da casa. Isso fazia com que  qualquer vereador, ou funcionário pudesse saber o que estávamos decidindo. Naquela  oportunidade, também, resolvi publicar no Diário Oficial o nome e a remuneração  de todos os servidores da Câmara Municipal para a população saber quanto cada  um ganhava. As ex-esposas dos servidores ficaram sabendo quanto eles ganhavam.  Eu falei: isso é mais do que justo, e  é da lei que elas possam ter informações de quanto ganha seu ex-marido. Na ocasião  pedi pareceres a três professores de direito, e os três me disseram que era  normal e justo que fossem publicados àqueles dados, e assim o fiz.
 
 Para  dar alguns exemplos de coisas práticas, a norma de divulgar em tempo real as  fontes de receitas e de despesas já foi aprovada pelo Senado, e foi para a  Câmara dos Deputados. Trata-se de uma proposição instituindo a transparência  das demonstrações financeiras e procedimento de todas as empresas que  transacionam com o governo. Considero tal procedimento muito positivo, pois  tende a inibir práticas ilegais.
 
 E  com respeito ao que fazer mais diretamente com os recursos públicos, o próprio  exemplo da Renda de Cidadania constitui um exemplo nesta direção. A sua  pergunta me dá margem de poder explicar o que representa a Renda Básica de  Cidadania, aprovada pelo Congresso Nacional em 2003 e sancionada pelo  presidente Lula em 08 de janeiro do ano passado, para ser instituída a partir  de 2003 gradualmente, pois seria difícil instituí-la de uma hora para outra.  Mas, qual é a definição da Renda Básica de Cidadania? É o direito de todas as  pessoas, não importa a sua origem, raça, sexo, idade, condição civil, ou mesmo  socioeconômica de partilharem da riqueza da nação através de uma modesta renda,  que na medida do possível, será suficiente para atender às necessidades vitais  de cada um. Isso significa que você também vai receber. Toda e qualquer pessoa  nesta sala quando instituída plenamente. Mas como vai se pagar isso ao Pelé, a  Xuxa, ao Antonio Ermírio de Moraes, a todos nós aqui na mesa mesmo que não  estejamos precisando? Sim. Obviamente o Briganti vai contribuir como eu, para  que todos nós e todas as pessoas na sociedade brasileira venhamos a receber.
 
 Quais  as vantagens desse mecanismo? Estaremos eliminando toda e qualquer burocracia  envolvida em saber quanto cada um ganha no mercado formal ou informal; vamos  eliminar qualquer sentimento de estigma de a pessoa dizer: eu só recebo tanto por isso mereço tal complemento de renda. Vamos  eliminar também o problema da dependência que normalmente ocorre quando há um  mecanismo que diz que se você não recebe até um dado valor você tem direito de  receber um complemento de renda. Daí você acaba criando uma situação em que a  pessoa, o chefe de família diz: eu estou  para iniciar uma atividade de trabalho que vai me dar este tanto, mas se eu  iniciar essa atividade o governo vai tirar isso que estava me dando, então  fica criada uma armadilha do desemprego, da pobreza, e não vou aceitar essa  atividade de trabalho. Se todos receberem uma Renda Básica ao direito da  cidadania então a cada um, a todos, qualquer atividade econômica é onde a  pessoa vai pelo seu esforço, trabalho, talento, criatividade ganhar um extra, e  sempre haverá estímulo para isso. E do ponto de vista da dignidade, da liberdade,  do ser humano, será muito melhor para cada um saber que nos próximos doze  meses, e a cada ano, e com o progresso do país você vai ter aquela renda como  um direito que a ninguém será negado. O professor diz em Desenvolvimento com Dignidade, desenvolvimento para valer deve  significar maior liberdade de opção para toda e qualquer pessoa. Isso se aplica  a todos nós, inclusive para os personagens do Cidade de Deus, ou àquelas  pessoas que muitas vezes são levadas a aceitar uma atividade econômica  humilhante ou que coloca a sua vida em risco, se ela tiver uma Renda Básica de  Cidadania obviamente ela poderá dizer: eu  não vou aceitar essa atividade até que tenha outra que seja mais condigna com a  minha vocação. Portanto, aumenta o grau de liberdade, inclusive o poder de  barganha das pessoas perante as empresas, os patrões, etc. Por outro lado,  muitos aqui podem estar refletindo: mas será que se você garantir uma Renda  Básica para toda e qualquer pessoa não estimulará a ociosidade? O que você vai  fazer com as pessoas com tendência à vagabundagem? Essas são relativamente  poucas.
 
 Em  1918 em Caminhos para a Liberdade, Bertrand Russel propôs o direito de todos receberem o suficiente para sua  sobrevivência, e daí para frente cada um receberia o que fosse necessário, ou  de acordo com seu trabalho, esforço, etc. Ele já observava que todas as pessoas  normalmente têm uma vontade imensa de fazer coisas produtivas, e gostam de  fazê-las. Tantas coisas são necessárias para os seres humanos realizarem, e  normalmente muitas não são remuneradas no mercado como, por exemplo, as mães  que amamentam suas crianças, nós, pais e mães, quando estamos cuidando das  nossas crianças pequenas, cuidando de não se machucarem, de se alimentarem, de  se desenvolverem, ou quando nossos pais e avós são mais velhos e precisam da  nossa assistência, ou tantas atividades que gostamos de fazer para a nossa  comunidade no âmbito da universidade, estamos fazendo, que eu saiba, por livre  e espontânea vontade, voluntariamente gostamos de fazer.
 Viemos  aqui por prazer, por alegria de termos este encontro que para nós está sendo  produtivo. Nas comunidades, nas igrejas, nos bairros, nos clubes, nos partidos  há várias atividades que fazemos voluntariamente. Também há atividades que às  vezes não tem valor no mercado, na hora em que são feitas, mas mais tarde são reconhecidas  como de grande valia. A começar com os exemplos de Van Gogh e Amedeo Modigliani que, quando pintaram as  suas obras, mal conseguiam sobreviver tentando vendê-las. Ambos acabaram  ficando doentes precocemente e faleceram relativamente cedo. Hoje as suas obras  são vendidas por milhões de dólares.
 
 Há  um lugar do mundo onde se instituiu um dividendo igual para todos os seus  habitantes, desde que ali residam há pelo menos um ano. É uma experiência original  e notável que vem alcançando resultados positivos por mais de duas décadas.  Durante os anos 60, o prefeito Jay Hammond, de Bristol Bay, uma pequena vila de  pescadores no Alasca, observou que de lá saía uma grande riqueza na forma da  pesca, mas que muitos de seus moradores ainda continuavam pobres. Propôs,  então, a criação de um imposto de 3% sobre o valor da pesca, que seria  destinado a um fundo que pertenceria a todos. Inicialmente, enfrentou enorme  resistência. Propôs, então, que diminuíssem o valor do imposto sobre a  propriedade, mas, cinco anos depois, acabou ficando com ambos.
 
 Inicialmente,  Hammond pensou em pagar dividendos proporcionais ao tempo de residência de cada  cidadão no estado. Entretanto, um grupo de promotores questionou a  constitucionalidade desse procedimento, que poderia ferir o critério de  igualdade de direitos. Isso levou o governador, em 1980, a enviar nova  mensagem propondo que 50% dos royalties fossem  destinados ao Fundo Permanente do Alasca, instituindo-se um pagamento igual, anualmente,  a todos os habitantes do estado.
 
 Os  recursos assim levantados foram aplicados de maneira transparente, prudente e  responsável, diversificando-se: em títulos de renda fixa, ações de empresas do  Alasca, contribuindo para diversificar a sua economia, dos Estados Unidos,  internacionais, inclusive do Brasil, e empreendimentos imobiliários. Em  dezembro de 2005, a  carteira de ações do Fundo Permanente do Alasca tinha ações de 16 empresas  brasileiras, o que significa que nós, brasileiros, contribuímos para o sistema  lá existente. O patrimônio do Alaska Permanent Fund evoluiu de US$ 1 bilhão, em  1980, para mais de US$ 32 bilhões, em 2005.
 
 Cada  pessoa residente há um ano ou mais no Alasca, entre 1o. de janeiro e  31 de março deve preencher um formulário de uma página informando nome,  endereço residencial e do trabalho, se saiu do estado, o motivo da viagem e  mais alguns dados. O responsável por crianças e adolescentes até 18 anos deve  preencher o formulário por elas. Os dividendos serão recebidos pelo responsável  que, conforme as informações disponíveis, normalmente os deposita em cadernetas  de poupança para que os menores possam usufruí-los mais tarde. Duas pessoas,  também residentes no Alasca, testemunham a veracidade da declaração.
 
 Vamos  supor que a professora Denise Gimenez Ramos estivesse vivendo no Alasca. De 31  de janeiro a 31 de março escreveria: sou residente neste endereço, trabalho  aqui na PUC, se viajei no ano passado foi por tal e tal motivo, duas pessoas  que lhe conhecem diriam que essa informação é verdadeira, poucas informações a  mais, não precisa dizer quanto ganha, e assim na primeira semana de outubro se  estivesse lá residente no Alasca teria recebido nos primeiros anos trezentos,  depois quatrocentos, hoje cerca de mil dólares per capita. Em casa quantos são na sua família? Três. Então teria  recebido neste ano que passou cerca de três mil dólares em casa com o direito  de partilhar o direito da nação. O Alasca distribuiu nos anos 90 por este  mecanismo 6% do seu produto interno bruto para os seus hoje setecentos mil  habitantes.
 
 Qual  foi a conseqüência deste procedimento? O Alasca se tornou um dos estados (norte  americanos) mais igualitários. Portanto, quando a professora Maria Garcia  propõe que uma das maneiras de eliminar a corrupção é, inclusive, diminuindo as  desigualdades, aí está um bom mecanismo para essa finalidade.
 
 Platéia: A  professora Denise receberia três mil dólares?
 
 Senador  Eduardo Suplicy: A família. Mil por pessoa, igual para todos. De um mês a cento e vinte anos de  idade.
 
 Platéia: Ela receberia porque  mora em São Paulo?
 
 Senador  Eduardo Suplicy: Não. Se ela estivesse residindo no Alasca um ano ou mais.
 
 Platéia: Mas, eu  estou passando para cá. Se ela morasse no Maranhão não receberia?
 
 Senador Eduardo Suplicy: Receberia. Pela lei que foi aprovada no Brasil todos os brasileiros virão a  receber. Já foi aprovada a lei. Vai ser instituída gradualmente. Agora, se você  achou boa a idéia prezado Briganti, então pode perfeitamente dizer ao  presidente Lula: institua logo porque diz  a lei: será instituído gradualmente começando pelos mais necessitados. O  bolsa família que hoje beneficia oito milhões de famílias, no ano que vem onze  milhões e duzentas mil, pode ser visto como um passo na direção da Renda Básica  da Cidadania, e essa é a interpretação correta. Com o tempo todos iremos  receber. Quando vai iniciar isso? Quando os psicanalistas e os junguianos, os  lacanianos e freudianos, todos disserem ao presidente: Está na hora de  instituir.
 
 Prof.  Carlos Briganti: Senador,  há pessoas analisáveis e outras não analisáveis.
 
 Senador  Eduardo Suplicy: Foi aprovada a lei. Está aqui no meu livro, pode ler.
 Os  recursos virão a cada ano, e o poder executivo consignará no Orçamento Geral da  União os recursos necessários aos respectivos cortes de despesas e aumentos de  receitas necessários para se prover esses recursos.
 
 O  programa Bolsa Família está se expandindo rapidamente. Já vai de oito milhões  para onze milhões e duzentas mil famílias. Corresponderá a quarenta e cinco milhões,  ¼ da população brasileira em meados do ano que vem. Para que o Presidente da  República, seja o presidente Lula, ou o próximo, ou ele próprio, diga que vai  agora aplicar a lei que ele próprio sancionou depende muito de você chegar para  ele e falar: passe logo do bolsa família  para a Renda Básica de Cidadania. Eu digo você e cada um de nós. Estou  dizendo todos os dias isso, por isso que estou falando disso daqui. É preciso  persuadir a todos. Porque eu já persuadi o Congresso Nacional a aprovar a lei.  Já persuadi o Ministro da Fazenda Antonio Palocci a transmitir ao presidente  que como era gradual seria factível e ele poderia sancionar, e ele sancionou.  Então como é que chegaremos lá?
 
 Profª. Liliana Wahba: Muito  bem, gostaria agora de pedir a cada um dos participantes para encerrar o nosso  debate que apresentou idéias tão ricas e frutíferas. Farei uma pergunta para  cada um deles para fechar a sua fala. Se cada uma das pessoas aqui na mesa,  pudesse implantar, com a ajuda do nosso senador tão simpático e apreciado, se  pudesse implantar uma lei, uma lei que estivesse de acordo com o seu  pensamento, o seu parecer, uma lei que ajudasse a solucionar, a sanar, ou ir a  caminho de uma solução desse problema tão sério e tão grave que nos aflige, que  tipo de lei ou que tipo de medida gostaria de ver acontecer e ser implantada?  Vamos começar pela Denise.
 
 Profª. Denise Ramos: Seria possível a lei de falar a verdade acima de tudo? Falar a verdade sugere  um profundo conhecimento de si mesmo. Na minha palestra, fiz umas breve  reconstrução histórica dos traumas que fundaram a nossa nação. Essa revisão  possibilita a encararmos nossos traumas e sofrimentos de frente, abrindo um  caminho para a cura. A verdade é o começo da cura. Então, a consciência de onde  viemos, de quem somos, a consciência de nossos defeitos e qualidades é o melhor  remédio para a corrupção.
 
 Profª. Maria Garcia:Creio que uma medida eficaz seria conscientizar todas as  pessoas da responsabilidade pessoal. A responsabilidade é pessoal. Não basta  nós dizermos que a sociedade isto ou aquilo, a sociedade somos nós. Eu nunca  fui apresentada à sociedade, eu sempre fui apresentada a pessoas, então eu  creio que se cada um de nós não compactuar com esse estado de coisas que foram  alertadas aqui na aula da professora Denise como cada um de nós é responsável  pelos pequenos grandes atos de corrupção, e isso se alastra. Porque a corrupção  em latim também quer dizer ferrugem, uma coisa que se estraga. E realmente este  é um mal que se alastra pela sociedade. Agora, cada um de nós tem a sua própria  trincheira aqui, na sala de aula, na sua casa, na rua, no ônibus, nunca  compactue com atos de corrupção. Não seja você um agente corruptor. Mas,  trabalhe contra isso nos pequenos atos em que você se demonstre uma pessoa  ética, uma pessoa íntegra, e assim vai se espalhando pela sociedade como a  corrupção se espalha. É uma contra corrupção. Você mesmo é um agente contra corrupção.  Vamos começar por cada um de nós, e isso realmente tem um valor muito grande. E  lutar nossa própria trincheira contra esse estado de coisas.
 
 Prof.  Carlos Briganti: Eu  fui formado médico sobre a pressão da Santa Casa de Misericórdia, com muita  pobreza, recursos escassos, ou seja, a realidade que é outorgada a um Brasil  dos desfavorecidos. Não fui formado na Faculdade de Medicina dos Palácios de Brasília.  Proporia uma lei pela qual estariam obrigados durante trinta dias, vinte e  quatro horas por dia, todos os políticos se instalarem em alguma “Cidade de  deus” do Brasil e trabalharem nos Prontos Socorros, de preferência os infantis.  Eu tenho certeza que os olhos perpetuariam para sempre na consciência de todos  os políticos uma reflexão sobre a realidade miserável da imensa maioria do povo  deste país.
 
 Senador  Eduardo Suplicy: A sua pergunta Liliana, e as respostas dadas pela Denise Ramos, Maria Garcia e  Carlos Briganti, me fazem reforçar o sentido, inclusive das coisas que eu  aprendi nesse breve contato, mas espero aprender muito mais nessas imagens  psíquicas do inconsciente coletivo que constituem um patrimônio comum. Mas, há  três situações que ilustram a importância de se dizer à verdade e de as pessoas  serem responsáveis tal como enfatizou a profa. Maria. Vou aqui exemplificar  isso com a história de momentos cruciais de três chefes de Estado.
 Primeiro,  Richard Nixon, após vencer George McGoen, foi denunciado pelo New York Times  que afirmava que a Casa Branca tinha espionado o edifício Watergate, local onde  se planejou a campanha democrática. Primeiro ele negou e os seus Secretários de  Estado e da Justiça também negaram o episódio. Depois, pouco a pouco, graças às  informações fornecidas pelo chamado garganta  profunda - que este ano revelou a sua identidade, fez com que o presidente  perdesse sua credibilidade. A situação chegou a tal ponto que Nixon foi  obrigado a renunciar.
 
 Segundo  exemplo, Bill Clinton foi reeleito para o segundo mandato, com muito sucesso na  área econômica, Mas, eis que um jornal anuncia que ele estava namorando uma  moça chamada Mônica Levinsky. Sua primeira reação foi: nunca tive sexo com aquela mulher. Ou pelo menos na interpretação  dele. E aconteceu que paulatinamente, a imprensa foi revelando mais e mais os  episódios que envolviam os dois, e então ele refletiu melhor e falou com sua  esposa Hilary e contou toda a verdade. Está tudo muito bem documentado pelo  livro da própria Hilary e no dele, My  Life. Eles dialogaram, e quando o Senado já tinha autorizado que se  começasse o seu impeachment, ele  resolve então falar a verdade: de fato eu  cometi algo que não deveria. Peço perdão a minha mulher Hilary, a minha família,  ao povo norte americano por ter cometido esses atos, e aí como que  percebendo o consciente ou inconsciente coletivo do povo americano, o Senado  resolve permitir que ele conclua o seu mandato e não promove o impeachment.
 
 Terceiro  episódio, em 1969, na República Democrática Alemã depois de quinze ou vinte  anos de nazismo, pela primeira vez em quarenta anos, o parlamento alemão elege  um chanceler de origem humilde, operária, Willie Brant. Foi o primeiro  chanceler da República Federal Alemã que viajou à Alemanha comunista de trem, e  foi aplaudido nas estações. Foi até o cemitério de Auschwitz, na  Polônia, se ajoelhou, e pediu perdão pelas vítimas do Holocausto. Por essas e  outras atitudes foi laureado em 1971 com o prêmio Nobel da paz.
 
 No  início dos anos setenta, a Alemanha estava passando por uma fase de  prosperidade, e eis que em 1974 foi anunciado pela imprensa que o assistente do  Chanceler Brant era um espião da República Democrática Alemã, da Alemanha  comunista. O que faz Willie Brant? Escreve uma carta ao presidente da Alemanha  dizendo, e explica ao povo: eu não sabia  que este homem era um espião. Entretanto, fui eu que o escolhi, e por causa  disso eu renuncio ao meu mandato.
 
 O  que ocorreu com Willie Brant a partir disso? Continuou sendo considerado um  grande estadista. Tornou-se presidente de honra do Partido Social Democrata, e  foi eleito presidente da Internacional Socialista entidade que congrega os  Partidos Sociais Democratas no mundo. Ele também foi eleito representante da  Alemanha no Parlamento Europeu. Faleceu em 1982 aos 78 anos, reconhecido como  um dos maiores estadistas alemão.
 
 Esses  três exemplos nos fazem pensar e refletir sobre a questão de dizer a verdade. E  com respeito a que lei, tinha dito a pouco que toda lei que vai proporcionar  maior transparência na administração, como a que coloca na internet os dados  sobre todos os gastos e concorrências, sobretudo, inclusive gastos unitários  conforme uma proposta do senador João Capiberibe que já foi aprovada pelo  Senado Tudo que gera maior transparência vai resultar em maior verdade e  minimizar os atos de corrupção. Muito obrigado a vocês.
 
 Profª. Liliana Wahba: Muito  obrigado. Eu quero parabenizar a todos pelo encontro de hoje, que começou com  uma brilhante palestra da professora Denise, seguida pelo senador Eduardo Suplicy,  que é reconhecido como um lutador pela ética, pela transparência na vida  pública, e as brilhantes apresentações desta mesa, que seguramente vão  fertilizar as nossas idéias e, quem sabe, contribuir para uma realidade melhor  com a qual nós todos sonhamos e desejamos. Muito obrigado a todos vocês.
    
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