| IV Simpósio
                               O Corpo e a Psique na Arte Brasileira10 de novembro de 2006
   AberturaProfª.  Dra. Denise Ramos e Profª. Dra. Liliana Wahba A motivação do tema do presente Simpósio foi  trazer a Arte Brasileira em contato com a Psicologia e permitir uma leitura da  criatividade do artista e de sua obra.
 Os estudos modernos de psicossomática deixaram  de lado a cisão corpo e psique, ainda que não se tenha resolvido a maneira como  essa junção se realiza. No entanto, a linguagem da emoção e das imagens funde  corpo e psique de modo compreensivo por meio do símbolo.
 A arte manifesta-se via expressão simbólica e  nos oferece uma visão orgânica e emocional do mundo no qual nos inserimos com  nossa expressividade integral.
 
 Quando nos debruçamos sobre uma obra, aquilo que  olhamos nos transforma e, em nós, é refletido, mobilizando a fantasia, as  idéias, os sentimentos, assim como o gesto, o movimento, a tensão e todas as  sensações corporais abrangidas.
 
 O diálogo da arte, entre artista e espectador,  entre a obra e seu criador e o público, mobiliza a psique e o corpo  indissolúveis, um organismo que se expressa.
 
 Compreender os símbolos e sua riqueza, a sua  expressividade material e espiritual, significante e palpável é nosso intuito  ao reunir as pessoas que aqui apresentarão suas reflexões.
 
 De diferentes áreas do conhecimento, cada  apresentador revela um novo ângulo que permite ampliar nossa percepção sobre  esse fenômeno psique/corpo, certamente um dos mais intrigantes desafios para o  século XXI. Veremos quão complexa é a transdução de sentimentos e sensações  profundas presentes numa pintura,numa música. Talvez na falta de um raciocínio  acadêmico, técnico, seja a arte o lugar no qual essa relação pode se expressar  com mais vigor, verdade e autenticidade.
  
 Imagens da anima nas canções de Antonio Carlos Jobim
 Prof.  Dr. Durval Luiz de Faria
 Introdução  Nossa pesquisa, nos últimos anos, tem se  referido à questão da masculinidade e, especificamente, a da paternidade como  um dos aspectos do ser homem (FARIA, 2003). Temos tentado também, juntamente  com outros autores, (SOUZA, 1994; LAMB, 1986) apontar que a paternidade é um  lugar onde começou a emergir o ensaio de um novo tipo de homem que pode estar  se configurando a partir das últimas décadas do século XX e atualmente.
 Uma das questões mais complexas que discutimos  em nosso doutorado (FARIA, 2001) foi a dificuldade dos homens de assumirem  aquilo que lhes é estranho, em especial aquilo que é considerado feminino em  suas vidas: assumir os afazeres cotidianos, o cuidado e a relação de intimidade  com os filhos e com a companheira.
 
 Mais  ainda, com o estranho que se apresenta em si mesmo: as emoções, o irracional, a  expressão dos sentimentos, o que o faz, muitas vezes, não se relacionar  conscientemente com estes estados psíquicos, mas deixar-se levar por eles, não  raro sendo possuído por mal-estares, humores e fortes emoções que o atormentam.
 
 Esta ausência de contato com o mundo emocional,  de imagens e representações profundas faz com que se desenvolva uma área  conflitiva na experiência masculina, na qual o eu e o inconsciente podem estar  muito polarizados, daí decorrendo ansiedades, angústias, dificuldades de  relacionamento, e outras.
 
 Jung denominou essas vivências como  manifestações da anima, termo retirado do latim que significa alma. A anima, no  entanto, não pode ser confundida com a alma religiosa, embora contenha  implicações com a experiência religiosa.
 
 A anima,  no decorrer do pensamento de Jung, como nos aponta Hillman (1995), vai tendo  conotações múltiplas. Não se trata de um conceito, mas de um símbolo; abre-se  para múltiplas significações, desde a contraparte psicológica e sexual do ser  masculino, até Eros, a capacidade de vincular-se, o sentimento, o feminino.
 
 A anima, como arquétipo, é um dos elementos do  inconsciente coletivo e dinamizadora da consciência e do ego. Ela se expressa  de forma individual, quando emerge para a consciência do ser humano por meio de  fantasias, sonhos e manifestações do inconsciente, mas se expressa também de  forma coletiva, por meio dos mitos, das lendas, contos de fada e da obra de  arte.
 
 A anima apresenta um caráter histórico, pois ela  se expressa ou ela se constrói no mundo, no “vale de fazer alma”, como refere  Hillman (1984) e não nas alturas espirituais. No âmbito coletivo ela está  ligada à alma de um povo, de uma cidade, de uma nação, aquilo que lhe dá as  principais características e sem as quais ele não se discrimina de outros  povos.
 
 Nesta pesquisa pretendemos trazer o tema da  anima e de como ela se expressa nas questões de gênero e especificamente na  masculinidade. Muito se escreveu sobre este assunto, desde as obras de Jung  (1984, 2000), Hillman (1995), Sanford (1987), etc. Neste trabalho gostaríamos  de pesquisar o relacionamento entre o homem e a anima, dentro do encontro  amoroso, utilizando as canções brasileiras como objeto de investigação, nas  quais poderemos verificar esta relação, ouvindo a voz e a posição masculinas.
 
 Escolhemos, neste estudo, pesquisar a obra de  Antonio Carlos Jobim. Este músico e compositor, talvez o maior de todos os  nossos compositores de música popular, apresenta uma obra vasta e complexa na  qual identificamos uma preocupação com nossos problemas e desafios. Sendo um  dos artífices do movimento da bossa-nova, no início dos anos sessenta, Jobim,  juntamente com seus parceiros – Vinícius de Moraes, Newton Mendonça, Chico  Buarque, entre outros –, ajudou a criar uma nova linguagem musical para a  música popular brasileira, sendo também, em muitas músicas, letrista.
 
 Teve formação erudita e recebeu influência de  Debussy, Stravinsky e especialmente, Villa Lobos (SOUZA, 2003), além da música  norte-americana, especialmente do jazz e dos compositores ligados à cena  musical americana. Jobim é considerado um inovador na música popular  brasileira, marcadamente no tratamento harmônico das canções, além de ser um  criador incomparável que levou a nossa música a um lugar ímpar em todo o mundo.
 
 Suas canções alcançam ao mesmo tempo a  simplicidade e a complexidade que nos leva a profundidades sonoras e  literárias. Elas atingem e expressam a alma brasileira, com temas que  evidenciam os sentimentos, o encontro amoroso, o lugar privilegiado da  natureza, o mistério da vida. Em Jobim podemos talvez penetrar melhor nos  ambientes da anima, onde a racionalidade pouco pode fazer além de entrar em  contato e investigar cada detalhe.
 
 Cada canção pode ser um convite a uma  compreensão profunda e simbólica daquilo que contém. Por todas essas razões  consideramos as canções populares do músico como um excelente meio de  investigação da anima. Neste encontro tentaremos nos aproximar de uma delas.
   O chamado: “As praias desertas”  A canção “As praias desertas”, de autoria de  Antonio Carlos Jobim (letra e música), foi gravada pela primeira vez por  Elizete Cardoso em 1958, no disco Canção  do amor demais. Este disco passou a ser antológico, em função de nele  aparecer pela primeira vez a batida da bossa nova, no violão de João Gilberto.  O disco também consagra a dupla Antonio Jobim- Vinícius de Moraes, naquilo que  foi sua produção mais significativa – as músicas que falam do amor e suas  circunstâncias.
 Canção do amor demais é um título que fala  por si mesmo e pretende realçar os vários aspectos e vicissitudes do amor. Nele  estão presentes duas canções de Jobim (letra e música) – “As praias desertas” e  “Outra vez”. Eis a letra da primeira canção:
 AS  PRAIAS DESERTASAs praias desertas continuam
 Esperando por nós dois
 A este encontro
 Eu não devo faltar
 O mar que brinca na areiaEstá sempre a chamar
 Agora eu sei que não posso faltar
 O vento que venta lá fora
 O mato onde não vai ninguém
 Tudo me diz
 Não podes mais fingir
 Por quê tudo na vida
 Há de ser sempre assim
 Se eu gosto de você
 E você gosta de mim
 As praias desertas continuam
 Esperando por nós dois....
 
 
 A canção se inicia com um som de flauta  sugerindo o vento, seguido pelos violinos que promovem um clima de suspense ou  de desconhecido. Aparece um solo de trompa, tendo ao fundo a entrada das  cordas, com destaque para o contrabaixo e o violoncelo, que anunciam uma  amplidão, como se estivéssemos num lugar ermo e infinito.
 A primeira fase deste samba-canção mostra, desde  o início, o cuidado com que o compositor trabalhava a junção de música e letra:  “As praias desertas continuam” apresenta uma melodia composta de duas únicas  notas, sendo que a segunda aparece desde a segunda sílaba até o final do  excerto acima destacado, reforçando a idéia do ambiente monótono e de sua  continuidade, praticamente inexplorada pelo homem.
 
 Quem quer que já esteve numa praia deserta  ficará tomado pela pujança da natureza, pelo barulho constante e cíclico das  ondas, pelo vento e por toda uma energia primitiva que pode habitar o lugar. A  conclusão do primeiro verso “esperando por nós dois”, mostra um desenho ondular  da melodia, que parece sugerir o movimento eterno das ondas.
 
 Ao lado desse contorno da natureza, tão bem  expresso musicalmente, a canção diz que “as praias desertas continuam esperando  por nós dois” e que “a este encontro não devo faltar”. Aqui aparece a idéia de  que as praias desertas esperam a presença do sujeito e este se coloca como  alguém que deve estar lá.
 
 No entanto, as praias não se referem a um lugar  fortuito, mas que têm uma função – a de chamar, de atrair. Ela é a sede de um  encontro, ou, em outras palavras, ela é o espaço do encontro, podendo ser vista  como uma ponte para ele. O ambiente aqui não aparece desvinculado do encontro,  mas como intrínseco a esta experiência: a praia chama.
 
 Encontro do sujeito com quem? Em primeiro lugar  com o mar, que, brincando na areia, está sempre a chamar, já que agora o  sujeito sabe que não deve faltar. O chamado do mar induz no protagonista uma  responsabilidade, uma urgência, corroborada pelos sinais, o vento que venta lá  fora, o mato onde não vai ninguém, tudo lhe diz que não pode mais fingir.
 
 O fingimento aludido nos diz que este é um  fingimento não para os outros, mas aquele que ocorre para si mesmo: há uma  realidade maior que precisa ser reconhecida, um chamado da profundidade, da  totalidade que ultrapassa e chama o eu, ao compromisso. O chamado do mar nos  avisa que algo desconhecido e profundo poderá se dar.
 
 Em “a este encontro não devo faltar”, a melodia  sugere uma idéia importante, que não estaria tão evidente se o poema fosse  desacompanhado de música. Eis a força da canção: no final da frase, a conclusão  da última nota/sílaba em movimento ascendente (para o agudo) sugere uma dúvida,  uma atmosfera interrogativa quanto à convicção do personagem em relação ao seu  dever de não faltar ao encontro. Parece haver uma hesitação do personagem  frente a este dever.
 
 No entanto, esta dúvida desaparece no final da  estrofe seguinte. Após uma breve descrição do “mar que brinca na areia” e da  força de seu chamado – “está sempre a chamar” –, o personagem tem a certeza de  que não pode faltar ao encontro. Em “a este encontro eu não posso faltar” a  melodia termina de forma decisiva, em movimento descendente, em direção ao  grave, o que mostra um sujeito persuadido a comparecer ao encontro.
 
 Aqui aparece a idéia de que o movimento de ir e  vir do mar sugere o chamado para o encontro que está sempre presente, embora, a  cada momento, possa se apresentar de maneira diferente.
 No entanto, algo detém o sujeito, uma visão ou  uma crença, que aparece na interrogação: “Por que tudo da vida tem que ser  assim”, “se eu gosto de você e você também gosta de mim”. Apesar do amor  presente do protagonista, há como um destino nefasto, que impede a realização  do encontro. Embora desponte o amor pelo outro, aparece a impossibilidade deste  amor, movida por uma força desconhecida.
 
 Aqui vemos que o amor ocupa o centro da cena e  que ele é o alvo da procura do sujeito. Ainda não é, no entanto, o momento  certo para o amor, embora o chamado exista (as praias esperam). Assim, embora  tudo esteja preparado para que ele aconteça, a praia como intermediadora e o  mar como fonte profunda e inesgotável da possibilidade de amar, há um  impedimento que barra a disposição dos amantes.
 
 Podemos notar também que na frase “se eu gosto  de você e você gosta de mim”, a força da melodia torna a colocar o texto em  dúvida, pois o final ascendente sugere uma incerteza no que diz respeito à  crença do sujeito em ser amado.
 
 Alguns compassos se seguem, nos quais se destaca  o piano que realiza uma progressão harmônica, que funciona como uma ponte para  retornar ao tema e à tonalidade do início da canção. Reaparecem a flauta e a  trompa, seguidas de um acorde dissonante ao piano, que sugere algo inacabado e  não resolvido.
 
 Embora o chamado das praias não tenha sido  atendido, por impossibilidades obscuras, ele permanece. O final da canção (as praias desertas continuam esperando por  nós dois) mostra que o chamado da praia é contínuo. A canção termina como  começou, evidenciando que o convite para o encontro está sempre presente e é  sempre uma possibilidade.
   Comentário Jobim nos mostra que “as praias desertas” não  são apenas um acidente geográfico, mas um símbolo. Em seu nível coletivo, não  encontramos em nossa pesquisa uma simbologia para “praia” ou “praia deserta”,  mas podemos imaginar que a praia, psicologicamente, pode representar uma  instância psíquica de conexão entre o sujeito e o outro, quer este outro seja o  mar ou a amada. O mar está também sempre a chamar; assim, as praias desertas  podem representar uma condição para se alcançar o chamado do mar, elas  reverberam este chamado.
 As praias são feitas de areia, que podem ser  entendidas, segundo Chevalier e Gheerbrant (1988), como um símbolo de  quantidade e, na tradição xintoísta, de abundância. Ela é purificadora, como a  água, e abrasiva, como o fogo. Passível de penetração, ela se molda e, neste  aspecto, é um símbolo da matriz, do útero, do repouso, da segurança e da  regeneração.
 
 O deserto pode ser entendido como o lugar do  eremita, da vida interiorizada. Jesus sofreu suas tentações no deserto e os  eremitas sofreram os assaltos dos demônios (desejos). Também pode significar um  tempo de errância antes do encontro com a Terra Prometida (os judeus erraram  pelo deserto durante quarenta anos), um lugar de espera e de reflexão, de  pôr-se à prova na solidão.
 Emerge então a idéia da praia deserta como um  lugar onde pode se estar só para meditar ou juntos para o encontro, a  intimidade, a proximidade. Sentado na beira da praia e olhando o mar, nosso ser  se despe da racionalidade e nos faz entrar em contato com nossos sentimentos,  imagens e o que for para emergir. É um dos lugares do imprevisível.
 
 Storr (1996) assinala que a solidão pode ser um  recurso valioso de crescimento, pois abre a possibilidade de aceitação dos  sentimentos, da perda, e nos coloca em contato com a imaginação. Mas, como  colocamos a questão da solidão se estamos falando do encontro?
 
 Diríamos que estar na praia deserta é uma  pré-condição para o encontro. E podemos entender este encontro na canção de  duas formas: o encontro com o mar, o outro interior (e aí entraríamos numa  dimensão mais subjetiva da imagem) ou um encontro com o Tu, o parceiro amoroso,  numa perspectiva objetiva.
 
 Hillman (1985) assinala que o encontro com outro  ser humano – seja ele amigo, paciente, amante – implica duas direções: a vertical,  que aprofunda à nossa vida interior e a horizontal, que se estende em direção  ao outro. Quanto mais profundo formos conosco, mais cresce a possibilidade da  profundidade no encontro com o outro.
 
 Neste sentido, tudo conspira para que o encontro  se realize: “o vento que sopra lá fora, o mato onde não vai ninguém”. Para  Chevalier & Gheerbrant (1988, p. 935) o vento é sinônimo de sopro, do  Espírito e do “influxo espiritual de origem celeste”. Este também é o  significado que Jung lhe dá (1984).
 O vento, soprando, traz todos os odores, os bons  e os fétidos; na sua função benfazeja, afasta as nuvens carregadas e faz nascer  a luz. Na tradição bíblica o vento é o sopro de Deus: “ordenou o caos  primitivo; animou o primeiro homem” (CHEVALIER & GHEERBRANT, p. 936). São  manifestações do divino, que comunica suas emoções, desde a doçura até a  cólera.
 
 Já o mato está associado ao simbolismo da  vegetação; o vegetal pode ser relacionado ao caráter cíclico de toda a  existência: nascimento, maturação, morte e transformação. Essencialmente  relacionado à Mãe Terra, a vegetação é um símbolo do desenvolvimento e “das  possibilidades que se atualizarão a partir do grão, do germe; e também a partir  da matéria indiferenciada que a terra representa” (CHEVALIER & GREERBRANT,  1988, p. 933).
 
 Apresenta-se então um cenário onde as praias  desertas estão no centro do chamado; elas são o centro e ao redor delas tudo  conspira para que o protagonista realize o encontro: o aspecto espiritual, o  terreno e as possibilidades da profundidade. O sujeito está às portas deste  encontro, ele não pode mais fingir para si mesmo da necessidade do apelo.
 
 No entanto, o impedimento aparece como a força  de um destino funesto (por que tudo na vida tem que ser sempre assim?), no  qual o amor não pode ser vivido, tanto em âmbito interno, quanto externo.
 As praias desertas ainda não puderam exercer sua  função maior: uma força de conexão entre o sujeito e o outro, entre o eu e o  Tu. Aqui levantamos a hipótese de que as praias desertas podem estar  simbolizando a anima como função de relacionamento entre o sujeito e o Self,  tal como Jung coloca.
 “O encontro com a anima leva logicamente a uma  expansão da nossa esfera de experiência. A anima é um representante do  inconsciente e, assim, uma mediadora” (JUNG, apud HILLMAN, 1995)
 Nesta frase Jung estabelece o lugar da anima:  ela não deve se interpor no relacionamento amoroso, mas colocar-se como uma  função de relação do ego masculino com o inconsciente, fonte da criatividade.
 
 Na canção, não pode haver um encontro com o  outro, pois as possibilidades criativas e prospectivas da anima ainda não foram  reveladas e desenvolvidas na consciência.
 
 No relacionamento amoroso muitas vezes  encontramos possibilidades construtivas que apontam o caminho de um encontro  profundo, mas estas possibilidades ainda não podem se tornar conscientes e  concretizadas. Embora o Self apresente os sinais por onde possa fluir a energia  criativa, muitos impedimentos detém o sujeito.
  
 Autoria na arte contemporâneaProfa. Dra. Christine  Greiner
 A questão da autoria na arte contemporânea é um  tema que tem suscitado muitos debates. O principal motivo é a descentralização  dos processos de criação que, não raramente, passaram a acontecer em grupo,  levando em consideração todos os integrantes da experiência. No caso da dança, a situação é exemplar. A  soberania do coreógrafo ou do maître de balé foi substituída por  criações partilhadas que observam e valorizam o modo como um corpo se apresenta  em cena e se movimenta, deflagrando inevitavelmente autorias múltiplas que  partem da singularidade de cada intérprete-criador e de suas narrativas  autobiográficas. Além disso, a presença dos dramaturgos da dança que ajudam a  pesquisa do processo, criando pontes com outras áreas de conhecimento como a  filosofia, a ciência e outras linguagens artísticas, também passa a ser  bastante valorizada.
 
 A narrativa corporal parece ter ganhado  complexidade e, quando se fala em narrativas do e no corpo, não se trata do  relato explícito de fatos específicos ou da construção de depoimentos com  começo, meio e fim. O modo de organização da cena, através da relação  corpo-ambiente, relata histórias não propriamente contadas pelo sujeito-ator,  mas reveladas no trânsito com o espectador. É nesta conexão que a narrativa  contemporânea se organiza de maneira cada vez mais radical.
 
 Apesar de, em certa medida, toda dança e todo  teatro compartilharem esta natureza singular, uma vez que é o corpo que  constrói a cena, algumas experiências explicitam de maneira mais clara e  surpreendente essa possibilidade. É quando a presença de um modelo dado a priori se enfraquece e a pesquisa de linguagem toma rumos diferentes.
   Fragmentos da história da autoria nas artes do corpo Desde o final da década de 50 até o começo dos  anos 70 do século passado, cinco exemplos marcaram a história da dança, da  performance e do teatro pela mudança radical de procedimentos para lidar com  parâmetros bem estabilizados até então. A primeira foi protagonizada pela dupla  Merce Cunningham e John Cage que discutiu a dança como um evento, sempre  irrepetível, a lógica do acaso para criação, a espacialização do tempo e a  autonomia entre dança, música e cenografia. 
 Como uma  espécie de dissidência desta experiência, entre as décadas de 60 e 70, alguns  artistas, também em Nova   York (como Yvone Rainer e Steve Paxton) vão propor a  improvisação como ponto de partida para criação, dançarinos como “pedestres”,  pontes entre a dança e outros universos de conhecimento como as artes marciais  (especialmente o ai ki dô), o abandono do palco italiano como espaço soberano  para apresentações de dança, assim como a possibilidade de entender o corpo (e  não apenas a dança) a partir de diferentes mapas de anatomia e fisiologia, na  conexão com o que se chamará de educação somática. O traço performativo passa a  ser um aspecto muito discutido. Afinal o que restava diante do desaparecimento  da ação?
 
 Isso foi muito importante para identificar que o  movimento não acontece apenas a partir do movimento que se vê, mas começa bem  antes nos primeiros acionamentos perceptivos do corpo em um ambiente e  permanece depois no corpo do outro. Esse jeito de organizar o movimento dentro  do corpo é absolutamente singular. Tece a autoria de histórias que muitas vezes  não se sabe contar, mas que se constituem nas obras e, especialmente, no corpo.  O reconhecimento deste fenômeno fez com que muitos desses coreógrafos mudassem  os seus procedimentos de criação e também da formação de dançarinos.
 
 No Japão, os anos 60 e 70 são marcados pelo  movimento angura (palavra japonesa para underground) que na sua  diversidade de experimentos em dança, teatro, performance, artes plásticas,  fotografia e cinema, repensa os modelos tradicionais do teatro japonês  (sobretudo o nô), os locais de apresentação, os treinamentos corporais nascidos  de módulos de movimento (kata), a noção de adaptabilidade de um mesmo movimento  em corpos diferentes (propondo a impossibilidade da imitação e da repetição) e,  principalmente através do butô, questiona o entendimento do corpo e da dança  como algo pronto, produto de um meio ou de um sujeito, afirmando a sua natureza  processual, inacabada e informe. A chave dos procedimentos de criação passa a  ser a metamorfose e a mudança de estados corporais ao invés da passagem de um  módulo de movimento (ou passo de dança) a outro.
 
 A quarta experiência que eu gostaria de lembrar  acontece também em torno dos anos 70, na Alemanha, e tem como ponto de partida  a pesquisa de Pina Bausch. Pina, como é mais conhecida entre dançarinos, propõe  como procedimento de criação coreográfica um método que parte da elaboração de  perguntas para seus atores-dançarinos, tendo em vista organizar a cena a partir  das respostas de cada um e não de seqüências coreográficas pré-estabelecidas.  São narrativas reais, mas muitas vezes fictícias, e que acabam conferindo ao grupo  uma nova história misturada com o lugar de onde nascem.
 
 Isso porque,  principalmente nos últimos quinze anos, as produções de Pina têm uma  preocupação específica em explorar diferentes culturas a partir de viagens de  pesquisa com toda a companhia. O texto que se constrói no corpo é também aquele  de um lugar e não só a narrativa dos sujeitos.
 
 Por fim, vale a pena lembrar do que se  convencionou chamar de mímica contemporânea ou teatro físico. Com raízes  importantes em experiências dos anos 20 e 30, sobretudo a partir das pesquisas  de Jacques Copeau no Vieux Colombier, de Jean Louis-Barrault e de Étienne  Decroux, tais experiências mudaram os modos de entender a organização de  metáforas corporais e a relação entre o dentro e o fora do corpo, o modo de representação  dos objetos e ações realizadas no mundo por um sujeito. Em interlocução com  treinamentos de clown que usam humor e improvisação e, algumas vezes,  com o teatro da crueldade de Antonin Artaud – que identifica a crueldade com a  dor do conhecimento e não necessariamente com o sangue derramado –, estes  artistas elaboraram procedimentos de criação teatral nascidos do corpo e não do  texto. O ponto de partida da fala seria a palavra encarnada, o grito e o  silêncio que significam.
 
 Todos esses movimentos transformaram a cena  artística no Brasil também, onde podem ser observadas diversas familiaridades  de pensamento com estas experiências, mesmo sem que seja estabelecida uma  relação de causa e efeito ou, necessariamente, de “influência”.
 
 Em termos de dança e teatro eu não gostaria de  estabelecer como parâmetro para a discussão da autoria a identificação  necessariamente pareada entre os movimentos internacionais e as ressonâncias  entre nós, mesmo porque em muitos casos isto não é possível. A breve história destas  experiências deve ser entendida aqui como uma referência de quando e como a  dança e o teatro abriram caminhos para as narrativas autobiográficas do corpo  tendo como ponto de partida a pesquisa que não apenas pensa sobre o corpo mas  faz o corpo pensar recriando, a cada vez, a sua história.
 
 No Brasil, entre os grupos de teatro algumas  experiências me chamam a atenção em termos de narrativas autobiográficas como a  do Teatro da Vertigem e a apropriação do cruzamento das histórias dos lugares,  comunidades e sujeitos. O Lume de Campinas, desenvolveu nos últimos vinte anos  um treinamento de mimese corpórea que partiu sempre da experiência pessoal, em  interlocução próxima com o universo do teatro físico, passando por treinamentos  fortemente marcados pela pesquisa de Egenio Barba, do Odin Theater. Em termos  históricos, há diferentes períodos. Em torno dos anos 50, o EAD (Escola de Arte  Dramática) em São Paulo  e o Teatro Tablado no Rio (de onde saiu Hamilton Vaz Pereira, criador em 72 do  grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone) começaram a chamar a atenção para a  importância do papel do ator na criação cênica. Era na singularidade do corpo  do ator e não apenas no texto teatral e na direção cênica que o pensamento  teatral da época se organizava. Zé Celso Martinez e Denise Stocklos marcam a  história do teatro no Brasil, apropriando-se de um tempo diferente,  presentificado e que se apropria e perverte o corpo cotidiano. Sem falar em  outros nomes pioneiros que a partir dos 80 iniciaram suas produções como Luis  de Lima, Ricardo Bandeira, Luis Otavio Burnier (criador do Lume), Denise  Namura, Fernando Vieira, Eduardo Coutinho, Luis Lois e Alberto Gauss.
 
 Em termos de dança no Brasil, historicamente, os  anos 70 e 80 também são marcantes. Em 74, Célia Gouvêia estréia o Teatro de  dança, em São Paulo,  após ter voltado da Escola Mudra de Béjart, Klauss Viana recebe o Molière pela  preparação corporal de atores para a peça Roda-Viva e começa a se destacar  trabalhando com vários atores e dançarinos no país. No ano seguinte, Marilena  Ansaldi estréia Isso ou Aquilo apresentando um novo jeito de propor uma aliança  entre dança e teatro a partir de forte presença autobiográfica. Em 79, Takao  Kusuno apresenta Corpo 1 e, assim como Klauss, começa a trabalhar com vários  artistas propondo uma conexão não explícita com o butô japonês na busca de uma  narrativa autobiográfica do corpo em ambientes específicos, sem necessariamente  o “contar histórias de um sujeito” como um relato consciente e intencional.
 
 O movimento de criadores-intérpretes de certa  forma atualiza algumas das questões destes pioneiros através das obras de  Umberto da Silva, Ana Mondini, Mariana Muniz, Vera Sala e Helena Bastos que  produzem entre o final dos 80 e os 90 muitos trabalhos que, assim como havia  acontecido no teatro com a valorização dos atores, passam a reconhecer que o  dançarino não é apenas um fazedor de coreografias criadas pelo coreógrafo, mas  é também um criador. Na segunda metade dos 90, surgem na cena novos criadores. Em São Paulo, Marta Soares,  por exemplo, combina uma experiência de dança contemporânea americana e butô  japonês, mostrando uma familiaridade com a pesquisa singular de Marilena  Ansaldi, uma vez que aparece em suas obras um traço autobiográfico explícito,  seja qual for o tema abordado e os personagens com que dialogam.
 
 No Rio de Janeiro, Dani Lima, Fred Paredes e  Claudia Muller indagam o que poderiam ser novas territorialidades do corpo e do  lugar onde estão. E no campo da busca de uma identidade cultural ambivalente,  Leticia Sekito, Angela Nagai e Emilie Sugai, Valeria Vicente, Angelo e Catarina  trafegam nos entre-lugares, construindo mapas simbólicos, deslocamentos. Em  todos esses casos é a presença do corpo que garante a autoria, o traço  autobiográfico.E quanto mais essa presença do corpo não está norteada por um  modelo dado a priori, e sim fruto de uma investigação in vivo,  mais autoral será o trabalho. O traço contemporâneo que garante maior  complexidade aos processos criativos é que, não raramente, essa autoria é uma  autoria partilhada no sentido de que cada intérprete colabora com parte da obra  e esta é reorganizada a cada encenação, a partir da presença em cena.
   Debate  Profa. Denise Ramos: Pelo que eu entendo  você está dizendo que esse momento que estamos vivendo seria uma evolução da  dança clássica, e para onde estamos caminhando na sua visão? A dança clássica  vai desaparecer ou não? Profa. Christine Greiner: De maneira alguma! O  bom é que nada desaparece, há pessoas que continuam fazendo balé, dança  moderna, dança-teatro etc. Só aumenta a diversidade, mas não é para desaparecer  nada. A minha filha é uma bailarina convicta. No Japão continuam existindo as  danças clássicas japonesas, o shimai do teatro nô, o butô que é uma experiência  dos anos 60 e assim por diante. O fato de essas experiências terem entrado em  evolução, não significa que elas eliminam as outras, o que acontece é que não é  só o passado que muda o presente,o presente também muda o passado, então quando  a gente olha o passado a gente também vê aquelas outras experiências de uma  forma muito diferente, do que se via antes. Profa. Liliana Wahba: Eu me lembro daquele  episódio que eu já contei a vocês, do Nelson Leirner, artista plástico que na  bienal, acho que nos anos 70, levou um porco empalhado num tipo de gaiola e foi  aceito. Depois ele enviou uma carta perguntando qual o critério para a  aceitação de uma obra, aquele porco engaiolado é considerado arte?Quer dizer, é uma performance sem dúvida, a  contestação política do Nelson ao  fazer esse ato, mas de novo me pergunto, todo gesto de performance, é arte?
 Profa. Christine Greiner: Essa pergunta é muito  difícil de responder sem risco de generalizações, porque tem muita bobagem que  se faz em nome da “performance”. Eu diria que há uma diferença fundamental que  só se percebe na hora em que se assiste a experiência. Por exemplo, um homem nu  joga a tinta vermelha de uma bacia em cima de si mesmo. O espectador pode  observar aquilo e pensar “que bobagem, o que eu tô fazendo aqui?” Ou pode ver  uma pessoa completamente ensangüentada, trabalhando com o mesmo material e  aparentemente fazendo a mesma ação. A chave que garante uma ou outra situação é  o “como é feito” e não propriamente “do que é feito”. Platéia: Você poderia falar  algumas palavrinhas sobre a arte conceitual? Profa. Christine Greiner: O artista que trabalha  com arte conceitual precisa achar uma estratégia pra conseguir se comunicar.  Não é da natureza da arte ser uma experiência velada, hermética. É importante  ter a generosidade de compartilhar o conceito, senão o processo fica  interrompido. Não se trata de fazer concessões, mas de achar estratégias de  comunicação para iluminar a vida. Esse é o papel da arte. 
 Anita Malfatti e as metamorfosesProfª. Dra. Liliana  Liviano Wahba
 São Paulo, com 300.000 habitantes, a cidade  continua em construção.
 Abrem-se ruas e grandes avenidas, expandem-se  construções governamentais, palacetes e bangalôs. Pequenas fábricas estão  ativas.
 
 Não é mais o burgo quase colonial de 1889 e a I  Guerra desperta sentimentos nacionalistas. São Paulo investe nas Artes.
 
 A jovem pintora Anita Malfatti, após um ano e  meio em Nova York,  inaugura sua exposição em 12 de dezembro de 1917 na rua Líbero Badaró, no 111:  Exposição de pintura moderna: Anita Malfatti.
 Assim, a pintora trazia o estímulo para um  Brasil voltando sua face para a modernidade. Criou uma obra inusitada no meio  nacional que despertou a mudança para a arte moderna no Brasil, com a Semana de  Arte Moderna de 1922, em   São Paulo.
   O espírito modernista  Em 1917 a exposição de Anita Malfatti era o grande  divisor de águas entre a arte nova e os conservadores. 
 Após a primeira individual de 1914 a imprensa reagira  fracamente. Falou-se de “algo novo”, “uma arte adiantada para o meio”,  estranhando certas “violações” dos padrões acadêmicos, particularmente da  pintura feminina, a “crueza” e a “força” masculinas. (Batista, 1985, p. 47) A  arte despertava pouco interesse, havia poucos museus, raras publicações. O Rio  de Janeiro era o pólo cultural do mundo artístico, ali estava a Escola Nacional  de Belas Artes privilegiando o ‘belo’ e o realismo: “Pairava uma sensação de  perenidade, de imobilidade na criação”. (Batista, p. 47) Com Anita, a arte  moderna chegava ao Brasil por ruptura, não por evolução.
 
 Havia também uma clara distinção entre ‘pintura  masculina’ e ‘pintura feminina’. As artistas mulheres não se dedicavam aos  temas maiores, históricos ou alegóricos e dificilmente à paisagem. A pintura  feminina por excelência restringia-se à temática de retratos, de preferência  mulheres e crianças, cenas domésticas, naturezas mortas, flores. A técnica  devia transparecer delicadeza, suavidade.
 
 Nada da técnica apurada  produzindo a esperada “pintura suave” - era uma pintura mais “crua” do que a  que trouxera da Alemanha. Nada da perspectiva “correta” com colorido “exato”  que imitasse a natureza - eram paisagens e retratos chapados, de planos  superpostos, sem ilusão de profundidade, “sem ar”, e de cores gritantes e  “irreais”. Nada do “Belo”, de temas “agradáveis e bonitos” - eram retratos de  “mau gosto” de O homem amarelo, A boba, ou A mulher de cabelos verdes, e sem a  preocupação com a verossimilhança, inadmissíveis, de construção marcadamente  assimétrica e colorido “cru”. A “força masculina”, que causara estranheza já em  1914, atingira seu paroxismo. Nada da esperada pintura suavemente feminina -  eram telas nem admissíveis na “pintura masculina” de então, e eram inúmeros  desenhos à carvão, principalmente de nus masculinos, também assimétricos e  deformados em suas proporções. Os temas - bastante comuns, à exceção dos  estudos de nus - eram tratados por composições e técnicas desconhecidas e  insuspeitadas no meio paulista e brasileiro. Anita Malfatti rompera com as  regras tácitas da pintura acadêmica e, dentro dela, da “pintura feminina” -  neste aspecto violara mesmo padrões sociais mais amplos, sobre o papel e  atividades próprias de uma senhorita paulista brasileira de 1916. A surpresa e  incompreensão foram inevitáveis. Coisas dantescas. (Batista, 1985, p. 60).
 
 1922 foi o ano chave do Brasil moderno.  Coincidia com o centenário da Independência. Após a I Guerra mundial havia um  questionamento político sobre a dominância das oligarquias rurais. A migração  trazia novos elementos culturais e surgia o Partido Comunista Brasileiro junto  à burguesia industrial em   ascensão. Os valores tradicionais sociais seriam  questionados, o papel e posição da mulher estavam em mudança. Nesse  quadro os representantes artísticos eram modelos de uma nova postura cultural.
 
 Os modernistas de 22 não se consideravam  componentes de uma escola. O que os unificava era o grande desejo de expressão  livre e a tendência para transmitir, sem os embelezamentos tradicionais do  academicismo, a emoção pessoal e a realidade do país. Havia a procura de  liberdade e de expressão plena, libertação dos modelos acadêmicos que se haviam  consolidado entre 1890 e 1920. Retratava-se o mundo cotidiano, moderno, o  nacionalismo pitoresco, com a valorização do prosaico e do bom-humor: a alegria  criadora, o “claro riso dos modernos”. (Candido, 1975, p. 11-17)
 Na Semana de Arte Moderna de 22 houve exposição  de quadros e de esculturas, recitais e conferências, poesias sem métrica. Mario  de Andrade compôs Paulicéia desvairada. Expoentes da pintura foram Anita  Malfatti, Tarsila de Amaral, Emiliano Di Cavalcanti, Vicente de Rego Monteiro,  da escultura, Victor Brecheret. A opinião pública chocou-se e tumultuou, porém  era a efervescência necessária à mudança.
 
 Depois apareceu o movimento Pau-Brasil, chefiado  por Oswald de Andrade, com Tarsila. Havia uma retomada da postura primitivista,  procura de descoberta do mundo, da terra brasileira, da sensibilidade  individual. O movimento antropofágico de 1927 derivou do primeiro e ampliou-se  o sentido mitológico e simbólico. Oswald propagava a atitude brasileira de  devoração ritual dos valores europeus, a fim de superar a civilização  patriarcal e capitalista com suas normas rígidas sociais e repressões. A mulher  adquiria lugar ao lado do homem, com igual liberdade.
   Vida e Obra  Anita Malfatti nasceu em São Paulo em 2 de  dezembro de 1889, filha de um engenheiro italiano e de uma norte-americana de  ascendência alemã, professora de línguas e pintura. 
 Estudou pintura em Berlim, de 1910 a 1913, e expôs sua  primeira individual em São   Paulo em 1914, afastando-se de normas acadêmicas. A crítica  estranhou, mas aprovou brandamente. Depois, ficou uma ano e meio em Nova York, com contatos  intensos com intelectuais e artistas.
 
 Ao retornar, sua obra era considerada feia e  escandalosa pela maioria. Expôs sua segunda individual em dezembro de 1917 a janeiro de 1918, em São Paulo. A reação  do público foi a princípio favorável apesar de estranharem a novidade, mas após  a crítica feroz de Monteiro Lobato (que representava o nacionalismo  conservador, diante do qual se contrapunham os modernistas) a uma arte moderna  que estava entre a “paranóia e a mistificação” (Batista, 1985, p. 68), houve  retração da maioria. Contudo, influenciou jovens artistas como Di Cavalcanti,  Tarsila de Amaral, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, os quais formaram um  grupo que liderou a Semana de Arte Moderna.
 
 Anita voltou-se depois para uma arte mais  tradicional, para acabar sua carreira com uma arte primitiva e popular. Morreu em São Paulo, em novembro  de 1964, aos 75 anos.
 
 Era a segunda filha, com um irmão mais velho,  tendo depois outro irmão e irmã. Havia uma lenda sobre seu nascimento: a mãe  contava que, grávida, fora ao mercado e uma aleijada lhe pedira esmola; por não  atendê-la, bateu-a coma mão aleijada e a assustou muito. Anita nasceu com uma  deformação da mão direita. Foi operada na Itália aos três anos e meio; após  muito sofrimento foram retiradas as partes deformadas, mas com seqüela de  atrofia de mão e braço. Aprendeu a escrever e a desenhar com a mão esquerda e  aos 18 anos começou a usar um lenço colorido envolvendo a mão direita, da qual  se envergonhava.
 
 Ela contava que aos 13 anos queria conhecer sua  vocação. Deitou-se nos dormentes do trem e ao ver as cores do trem passando  encima teve uma “impressão de delírio e loucura. Eu via cores, cores e cores  riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina  assombrada. Foi a revelação; voltei decidida a me dedicar à pintura” (Batista,  1985, p.10). Tinha uma personalidade guiada pelo sentimento e emoção, uma  “sensitiva exaltada”, segundo Mario de Andrade.
 
 Aos 17 anos formou-se no Mackenzie College, e em  1910, com 21 anos, foi para a Alemanha e ficou três anos em Berlim, estudando  desenho, gravura em metal e pintura. Eram os anos áureos do expressionismo  alemão e iniciou-se na arte moderna. Conheceu obra de importantes  pós-impressionistas franceses e afastou-se dos padrões da arte acadêmica então  vigentes e os únicos conhecidos no Brasil. A principal liberação dessa época  foi o uso da cor, que se distanciou da cópia natural.
 
 Em maio de 1914 deu-se a primeira exposição  individual em São Paulo.   A crítica estranhou a “crueza” das telas, mas aceitou como  prova de “personalidade artística em formação” (Batista, 1985). No final de  1914, com 25 anos, foi para Nova York onde ficou um ano e meio, estudando com  grande entusiasmo na Independent School of Art do pintor Homer Boss. A escola  era visitada por artistas norte-americanos e europeus refugiados da guerra, e  se discutia pacifismo, arte moderna, cubismo.
 
 Produziu obra numerosa, de  tendência expressionista e influências cubistas. Rompia a tradição clássica, especialmente  nos nus, com planos sucintos e cores chapadas, figuras distorcidas em posições  inesperadas. Era uma pintura rápida e emocional identificada com o  expressionismo nos modelos marginais.
 
 De volta à São Paulo, o tio, que lhe custeara os  estudos, lhe disse: “Isto não é pintura, são coisas dantescas” (Batista, 1995,  p. 5). Decepcionada, guardou suas telas e deu aulas de pintura, aceitando  encomendas. Expôs sua segunda individual de 12 de dezembro de 1916 a 10 de janeiro de  1917, causando impacto e escândalo na provinciana e acadêmica São Paulo.  Monteiro Lobato atacou-a veementemente e escreveu no jornal o artigo “Paranóia  ou mistificação”. Despertou, porém, a atenção e admiração de Mario de Andrade,  Di Cavalcanti e Oswald de Andrade, grupo que cresceu até eclodir a Semana de  Arte Moderna de 1922. Mario de Andrade tornou-se seu mais íntimo amigo até a  briga e separação da qual ela não se refez.
 
 Entrou num período de dúvidas, apesar da  convicção inicial. Em 1920 preocupava-se só com uma boa realização plástica,  produzindo uma arte moderna mais intimista e moderada no estilo. Participou da  Semana de Arte Moderna. De 1923   a 1928 permaneceu em Paris com uma bolsa do governo  paulista. Realizou uma nova individual em 1929 e lecionou no Colégio Mackenzie,  sendo a pioneira no ensino mais livre de arte para crianças.
 
 Em 1930 teve a fase de retratos mais realistas e  promoveu organização de coletivas. Em 1937, com 48 anos, integrou-se à Família  Artística Paulista, grupo de pintores mais tradicionais, também conhecidos como  Grupo Santa Helena, dos quais participavam Volpi, Bonadei, Clóvis Graciano.
 
 Após a II Guerra deu-se sua terceira mudança,  marcada pelas mortes de Mario de Andrade, em 1945, e de sua mãe, com quem  morava, em 1952. Anita afastou-se do meio artístico, entrou em reclusão sem  pintar durante três anos, e mudou-se com a irmã para o interior, apoiando-se  cada vez mais na religião.
 
 Aos 55 anos começara a pintar dentro de uma arte  primitiva e popular: cenas ingênuas, procissões, festas, crenças populares. Nos  anos 40 voltava às paisagens, e as cores que tinham se esfumaçado retomavam a  alegria, as paisagens enchiam-se de gente: “A figura humana parecia ir saindo  de seus retratos para ser vista à distância, numa coletividade - nada mais do  que pequenos pontos integrados aos outros elementos do universo” (Batista,  1985, p.146). Em 1948 ela respondia pela primeira vez - trinta anos depois - a  Monteiro Lobato: “Não são nem nunca fui paranóica ou mistificadora” (Batista,  1985, p. 147). Segundo a biógrafa teria acabado sua polêmica entre moderna e  acadêmica. Em 1949 foi feita uma primeira retrospectiva de sua obra, no Masp.
 
 Aos 66 anos, na individual de 1955, declarava  que queria “interpretar a alma brasileira”, e queria transmitir a “ternura  brasileira”, que não encontrava na arte da época. Achava sua técnica antiga  muito violenta para o povo, ao qual queria ser acessível: “Queria pintar apenas  a vida, sem preocupações artísticas.” (Batista, 1985, p. 154) Fora as paisagens  singelas, suas “paisagens visionárias” retratavam muitos elementos coloridos  envoltos em halos luminosos.
 
 Nos anos 60, fraca e doente, continuava pintando  e dizia que não poderia parar até morrer. Em 1963, um ano antes de falecer,  teve uma sala especial na Bienal.
   As metamorfoses e a individuação  O artista tem uma função de ativação simbólica;  ao trazer novo olhar e sentimento, impulsiona o coletivo a buscar sua alma. No  percurso pessoal depara-se com seus complexos, poderosamente ativados com a  abertura que seu fazer lhe impõe. A pessoa do artista e sua obra nos ajudam a  realizar tais sínteses e a apontar novos relacionamentos sociais e modos de  inserção no mundo.
 Anita representa a mulher artista num meio  patriarcal e repressor. A adolescente de 13 anos teve sua iniciação num ato que  poderia ser classificado de suicida, envergonhada com sua deformidade na mão,  algo marcante para a mulher naquela época. No entanto, a intensidade emocional  daquela “sensitiva exaltada”, dotada de animus aventureiro e de tipologia  provável sensação/sentimento introvertida, encontrou sua descarga por meio da  arte.
 
 Uma procura incessante, movida entre  expectativas de grupos opostos: para uns era a ‘bandeira’ modernista, para  outros a moça desviada de padrões de bom tom. Era difícil encontrar a persona  adequada, atormentada pelo complexo paterno: o tio, Monteiro Lobato, e o  complexo materno: a mãe, a expectativa enquanto mulher dentro de padrões nos  quais não se encaixava. Somente amou um homem, Mario de Andrade, proibido pela  família por ser mulato, e querida por ele enquanto amiga. Permanece nas  entrelinhas se houve romance consumado.
 
 Foi moldada em sua identidade por meio daquilo  que fazia; entregue, uma artista, possuidora da grandeza de amor ao ensino,  lembrando que inovou na liberdade de ensinar a criar, outro rompimento da  cultura repressora.
 
 Foi criticada pelo melhor amigo (carta Mario)  por trair sua arte, e rompeu com ele. Sua resposta aparece anos depois, na qual  se mostra engajada com o que faz:
 
 Carta a Mario de Andrade  após sua morte, “Caminho do céu - estrada da saudade”: [...] Procurei todas as  técnicas e voltei à simplicidade, diretamente: não sou mais moderna nem antiga,  mas escrevo e pinto o que me encanta [...] Tomei a liberdade de pintar a meu  modo [...] É verdade que eu já não pinto o que pintava há trinta anos. Hoje  faço pura e simplesmente arte popular brasileira. Eu pinto aspectos da vida do  povo. Procuro retratar seus costumes, os seus usos, o seu ambiente. Procuro  transportá-los vivos para as minhas telas. (Batista, 1985, p. 154-5).
 
 A vida, a carreira e a obra de Anita Malfatti  trazem questionamentos sobre a artista, o ser humano, sua individuação e papel  social. Anita foi uma corajosa desbravadora, podemos interpretar seu recuo à  pintura tradicional como uma formação regressiva da persona, assustada com a rejeição  e críticas, vítima de um patriarcado rígido e dominador.
 
 Podemos também acompanhar os desígnios da  experimentação que a individuação promove com seus entusiasmos, medos, ilusões,  ensaios. O fato é que iniciou sua carreira influenciada pelos estilos novos,  foi experimentando dentro do aprendido, recuou diante da crítica e continuou  produzindo e, assim como desapontou os tradicionalistas, desapontou depois os  modernistas com sua volta à tradição. É possível que sua obra tenha perdido  brilho e vigor, mas, no final, encontrou uma resposta pessoal no uso de cores,  na ingenuidade primitiva e no amor pelo seu povo.
 
 Diante da artista nosso olhar é de admiração e  homenagem, e especulações clínicas são limitantes. Elas somente servem para  refletirmos sobre o diversificado percurso da natureza humana.
 Assim, por exemplo, o estigma da deformidade com  a qual nasceu transformou-se em instrumento de modificação e nos toca  profundamente, já que carregamos também nossas deformidades e, ao contemplá-las  na obra (deformações expressionistas e cubistas), ao inscrevê-las dolorosamente  num corpo que sofre e deseja, uma revelação nos atinge mostrando nossa  essência, tirando-nos da pseudo-normalidade e lembrando que fazemos o possível  para reagir à adversidade, com nossos tortuosos desvios e metas  impulsionadoras, sempre, à procura de nosso destino.
   Debate Profª. Marion Gallbach: Muito obrigada por esta palestra tão sensível e tão bonita.  E nós temos tempo para algumas perguntas. Eu gostei particularmente do fim,  dessa questão que sempre me lembra a pérola, e a pérola também é fruto de uma  ferida, não é? É a coisa mais preciosa, que é feito em torno de todo o trabalho  da ostra com sua ferida, que você tocou. Talvez se você pudesse falar um pouco  mais disso...
 Profª. Liliana Wahba: Obrigada Marion. Vocês  virão que na realidade a tarde de hoje trabalhou esse tema, o da ferida e a  transformação da ferida, a exposição crua da ferida, para ocasionar um impacto  transformador, ou a exposição da beleza, para ocasionar também o impacto  transformador. A Anita conseguiu sua pérola, a ferida foi como a ostra  transformada em pérola assim como o artista, ou qualquer pessoa que quando tem  uma dor a transmuta em uma obra, seja qual for essa obra.
 
 Mas, infelizmente, nem todas as feridas viram  pérolas, acredito que também nem todas as sujeiras se transformam na ostra numa  pérola, então existem as feridas que são metamorfoseadas, transmutáveis e  existem as feridas que ocasionam também o putrefactio,  e a morte, seja física, ou morte psíquica.
 Nós trabalhamos com esse sentido, o da  capacidade do ser humano de transformar-se, de metamorfosear-se, e aqui vale insistir  que todas essas deformações, essa transmutação de Anita, da sua própria dor, é  representação e arte, a qual transcende a experiência individual. No final da  obra dedicou-se à beleza e ao encanto da cultura popular.
 
 A beleza transforma e isso foi mostrado hoje  também, pelo Durval  e pela Christine. Ela voltou à temática da beleza como impacto, o grande poder que a beleza tem, no  sentido estético. Claro que aquela obra expressionista é também bela no sentido  de ousadia, composição de cores, formas.
 Mas parece que ficamos um pouco a mercê do  impacto que impressiona e, quando tem algo belo, o consideramos de qualidade  inferior. Há certa tendência a considerar uma coisa bela e estética um pouco  inferior porque não seria tão impactante assim.
 
 Então, tem que lembrar sempre que, talvez, a  pérola tenha nascido de uma mágoa, de um incidente penoso, de uma dor, mas a  pérola também nasce de uma alegria.
 Metaforicamente, nós temos que entender que  temos pérolas, que são as pérolas do nosso humor, do nosso carinho, de olhar a  beleza que está em volta, e isso produz pérolas. Importa sabermos identificar  as pérolas e sua proveniência, e realmente ficar com o brilho delas.
 
 Profª. Mathilde Neder: Não  vou fazer perguntas. Não faço perguntas para a Liliana, mas eu queria fazer um  comentário. Um comentário sobre a beleza. Eu diria assim, a beleza existente na  Liliana. Eu queria lembra que você fez aquele estudo sobre a Claudel, e agora  sobre a Anita, em que você traça os positivos para colocar à mostra. Eu acho  isso fantástico, formidável. É um exemplo para nós trabalharmos, pensando e  descobrindo os positivos e trabalhar encima disso. Você trouxe a Claudel e eu  me lembro que me sensibilizou muito e ainda agora. E agora novamente com a  Anita Malfatti. Então, eu queria louvar isso em você, é uma capacidade, uma  sensibilidade, você vai buscar o positivo e traz à tona uma amostra e nos faz  amar.
 
 Profª. Liliana Wahba: Querida Mathilde, é recíproca a  constatação de beleza, e é você quem nos inspira. Você é nossa grande  inspiradora do modernismo, do nosso modernismo na psicologia. Obrigada.
 
 Profª. Denise Ramos: Liliana, você tem  estudado mulheres, artistas que sofreram, que de certa forma tiveram a sua  atividade criadora, como Camille Claudel, e agora você traz Anita Malfatti, que  também foi vítima da era em que viveu e muito vítima, também, dos homens. Ela  não teve nenhum que a acolhesse, que desse apoio. Você acha que isso é um  padrão até hoje? As mulheres artistas ainda hoje estão dentro deste padrão:  Claudel, Malfatti? O que você acha? Isso justifica que nós tenhamos tão poucas  mulheres artistas?
 
 Profª. Liliana Wahba: A Denise me fez uma  pergunta e a especialista em complexos culturais é ela! Como são as relações  das mulheres da atualidade? Um ponto positivo é que melhorou, a mulher adquiriu  uma autonomia e capacidade de criar além da biológica e maternal. Hoje em dia  uma mulher autônoma é comum.
 
 Resta, talvez, um temor e dependência da  crítica; no caso de Anita ocorreu com relação a Monteiro Lobato, por exemplo.  No caso de Camille Claudel também havia uma crítica contundente, uma  incompreensão com uma jovem escultora que mostrou ousadia e tudo mais, ainda  que a dor do rompimento amoroso foi muito forte. Anita não chegou a se entregar  à paixão, e Camille se entregou. Mas eu diria que a mulher ainda está sofrendo  esse resquício patriarcal, no qual o temor da critica ainda é muito grande, e  talvez essa seja uma barreira a ser vencida.
 
 De todo modo a resposta é o resgate do feminino,  mas visando o encontro, a alteridade. As feministas já viram que aquele movimento de ódio aos  homens não levava a nada.
 
 Platéia: Só uma pergunta, você teria um livro sobre a  Camille Claudel? Qual é o nome?
 
 Profª. Liliana Wahba: O livro se chama Camille Claudel: Criação e Loucura, da Editora  Record / Rosa dos Tempos.
 
 Profª. Marion Gallbach: Podemos encerrar, agradecendo à Liliana, também pela organização desta  tarde maravilhosa. Tenho certeza que todos puderam aproveitar bastante, e  depois poderão ter o texto. Obrigada a vocês, também, pela presença e  participação.
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