| FREUD e JUNG: UM REENCONTRO NO SÉCULO XXI Após a ruptura de seus fundadores a escola psicanalítica e a  escola junguiana mantiveram-se afastadas, apesar da incorporação de alguns  conceitos de psicanálise de Melanie Klein, de Kohut, em algumas correntes  junguianas desenvolvimentistas, e dos mecanismos de defesa na psicologia  simbólica de Carlos Byington, por exemplo. Para iniciar uma aproximação esclarecedora, em 1996 foi  realizado o "Encontro Freud e Jung: 90 anos de encontros e  desencontros", no MIS, com valiosas conferências de psicanalistas e de  analistas junguianos. Encontros semelhantes foram efetivados em New Orleans,  Cambridge. O evento na PUC-SP, organizado pelo Programa de  Pós-graduação em   Psicologia Clínica em conjunto com a Sociedade Brasileira de  Psicologia Analítica, é promissor e inovador, já que reúne pela primeira vez os  representantes de ambas as escolas, por meio dos respectivos  Presidentes-Eleitos das duas instituições: a Associação Internacional de  Psicologia Analítica e a Associação Internacional de Psicanálise. Tal encontro visou aproximar Freud e Jung mediante seus  descendentes, promovendo um diálogo instigante que irá beneficiar, não somente  ambas as escolas, como também as pessoas para as quais o ensinamento e o método  se destinam. O debate evidenciou a inclusão da abordagem junguiana dentro  das abordagens psicanalíticas, ainda que seus princípios e métodos sejam particularizados  e mantenham características próprias. Como mencionou Gaillard, Jung estava mais  próximo da corrente científica contemporânea no modelo da física quântica, com  sua teoria da sincronicidade, ultrapassando o raciocínio causalista. O fato de  sua exclusão deve-se, em parte, à impossibilidade na época de dialogar com  novas propostas que ameaçavam destruir a incipiente ciência da psicologia  profunda. O movimento psicanalítico é reconhecido como tal devido a  fundamentos básicos que se referem à pesquisa do inconsciente. Verificou-se no  debate que os representantes das duas escolas estiveram de acordo com esses  fundamentos, com a confluência de uma postura ética comum e com a cuidadosa  indagação da psique característica dessas abordagens. O resultado salutar é que transpareceu uma possibilidade de  diálogo sem recuo perante as diferenças, e essa possibilidade de inclusão das  diferenças fomenta a reflexão e a discussão de temas atuais e renovadores num  campo em mudança, e  enriquece nosso  trabalho enquanto analistas e estudiosos da psique.  A partir das diversas questões apresentadas pela debatedora  Denise Ramos, foi discutido:  
                                o que seria o inconsciente e como se colocar  perante o mesmo, como lidar com o inconsciente no trabalho  analítico, quais pontos seriam comuns e quais bastante  divergentes, como entender o comportamento criativo e  religioso, qual é o papel da infância e do complexo de  Édipo no desenvolvimento e na análise, qual seria a visão causalista versus a visão  finalista, qual é a função da sexualidade, como lidar com as interpretações, quais seriam  os desafios da atualidade.   Sobre a importância destes encontros                                 Claudio Eizirik destacou a importância de refletir sobre o  impacto das idéias psicanalíticas desde seu surgimento até o desenvolvimento da  atualidade, e as repercussões institucionais que o rompimento trouxe. Mencionou  que Jung é uma pessoa importante no surgimento da IPA, na qual os primeiros  estatutos foram redigidos por Ferenczi em 1910 e emendados por Jung. Disse  ainda que a realidade clínica mostrava os pontos de aproximação e o diálogo  possível.
 Marcio Giovanetti apontou o risco de coisificação e de  acanhamento de qualquer teoria, quando o essencial é poder vivificar junto ao  paciente e reformular o que está escrito.
 Christian Gaillard considerou estimulante conversar com os  "primos" psicanalistas, de pais diferentes, mas de uma família comum,  ainda que distanciados. Acha importante superar as ortodoxias e poder se  descolar da palavra do mestre sem abandonar a teoria, e poder aproveitar as  diferenças.
   Convergências
 Claudio Eizirik mostrou a responsabilidade com a dimensão  cultural e com a pessoa que necessita um cuidado, uma atenção para encontrar um  novo sentido de vida. Acha que Freud e Jung foram pensadores da cultura, que  ambas as escolas têm o rigor com a formação e   interesse em avaliar resultados. Particularmente, destacou a obrigação  ética e moral de pensar com liberdade para achar o rumo da razão e do  sentimento, afirmando a subjetividade num mundo ameaçado pela irracionalidade e  a violência.
 Christian Gaillard concorda e considera indispensável a  responsabilidade ética do trabalho enquanto analista, tanto na clínica quanto  na relação com a sociedade. O marco de liberdade e a democracia seriam o  alicerce da prática analítica. Haveria também o ponto comum de deixar-se  envolver pela expressividade do inconsciente.
   Divergências - o inconsciente pessoal e coletivo
 Claudio Eizirik pontuou que a formulação do inconsciente,de  fato, difere, não tendo havido na psicanálise um estudo do inconsciente como  uma realidade primeira, transpessoal. O inconsciente é trabalhado na medida em que  surge na relação com o paciente, somente como inconsciente pessoal, sem se questionar  sobre o inconsciente coletivo. Talvez com   a idéia de aspectos filogenéticos apontada por Freud haja uma  aproximação. No entanto, a idéia do inconsciente somente como produto de  repressão não é aceita pelas várias correntes psicanalíticas; por exemplo,  Lacan, Melanie Klein, Bion. A psicanálise não é uma, já que reúne diversas  escolas.
 Christian Gaillard considera salutar ter diversos movimentos  já que ortodoxias são restritivas, e aponta que existem também as diversas  escolas na análise junguiana. A teoria junguiana incorpora os arquétipos, que  são estruturas organizacionais das representações e do comportamento. Quanto ao  conceito de inconsciente coletivo, ele prefere destacar um inconsciente  transpessoal e transgeneracional, que atravessa de geração para geração e um  inconsciente impessoal, que trabalha com estruturas coletivas e trabalha quando  não se tem ainda um "alguém". Ele aparece muito fortemente em  psicóticos, quando transborda, e nos processos criativos ou de violência  coletiva.
   A criatividade e a religiosidade, produto primeiro ou  derivado de repressão
 Claudio Eizirik referiu que Freud analisou muitas obras de  arte sob o prisma do mecanismo de sublimação. De outro lado, Melanie Klein,  postulou uma tentativa de  reparação de  fantasias agressivas primitivas, e outros teóricos como Hanna Segal sobre estética  e André Green, ou Madeleine Baranger trouxeram novas explicações; esta última  dizendo que o inconsciente tem que ser descentrado. Em suma, a criatividade  guardaria algo de misterioso e inalcançável conceitualmente.
 Marcio Giovanetti acrescentou que, de todas as  interpretações possíveis, chega-se a um "umbigo"que se funde à vida  grupal, à filogênese, e se perde no próprio indivíduo, e que é inacessível. A  religiosidade pertenceria a esse mistério. Freud tratou de modo específico e  mais restrito a religião em Totem e tabu e O futuro de uma ilusão.
 
 Christian Gaillard considerou como fundamental perceber que  o inconsciente tem capacidade de produzir uma vida simbólica, e que isso é a  fonte de criatividade, prenunciada por Freud, quem deu pela primeira vez ênfase  à capacidade e competência do inconsciente de efetivar esse trabalho. Segundo  ele, os junguianos - até mais que os freudianos -, estariam treinados a  trabalhar com grande intensidade com a riqueza da produção simbólica que  aparece em sonhos, na transferência.
   Método terapêutico
 Claudio Eizirik se pergunta se o trabalho com interpretações  e com a transferência seria uma especialidade mais freudiana e o trabalho com  simbolismo mais junguiana. Quanto à interpretação haveria posturas diversas,  por exemplo, a escola francesa interpretando menos e a latino-americana, a  neo-kleiniana, ou britânicas ligadas a Bion, sendo mais ativas e interpretando  mais, particularmente na transferência. Com respeito à causalidade na infância,  teria havido uma mudança do determinismo psíquico valorizado por Freud. A  tendência atual seria a de procurar na transferência a modificação das versões  trazidas pelo paciente. Sobre a importância de analisar pacientes na maturidade  houve um pionerismo de Jung que está sendo cada vez mais adotado na  psicanálise.
 Marcio Giovanetti trouxe o conceito de compensação para  descrever ambas as teorias. A teoria freudiana dando mais ênfase ao  desenvolvimento e à vida emocional infantil, à formação do pensamento e do  psiquismo, e a teoria junguiana apontando para o desenvolvimento maduro, após o  edípico, e também valorizando a normalidade em suas descrições. Outro ponto  importante segundo ele na teoria junguiana é a ênfase no "por vir",  no prospectivo e no desenvolvimento das potencialidades, presente na  psicanálise, mas, acentuadamente, em Jung.
 
 Christian Gaillard mencionou que, mais do que interpretar,  seu interesse focalizava-se no potencial do inconsciente de aparecer e de se  transformar, em acompanhar o que se denomina processo de individuação. Também  trabalhava com a infância sem, no entanto, tentar procurar causas  primordialmente e sim para reencontrar o significado emocional da vida do  paciente.
   Complexo de Édipo                                 Christian Gaillard reconheceu que aprendeu com os freudianos  a perceber no trabalho clínico como a criança se reconhece em sua identidade  sexual e se diferencia do casal parental. A criança, o terceiro excluído da  realidade da vida sexual do casal parental, vive a questão da identidade, da  separação. A triangulação, no entanto, é diferente no trabalho junguiano que  tem toda uma reflexão sobre o terceiro, que traz a possibilidade de transcender  e de trazer o novo.Marcio Giovanetti postulou que  a situação edípica configurava o divisor de  águas entre uma situação narcísica para uma situação de apreensão do terceiro;  o momento no qual o indivíduo não se situa mais como centro do mundo, tem sua  ferida narcísica central e entra na cadeia de mortalidade e de continuidade  genealógica. Talvez, a questão da transgeneracionalidade do inconsciente esteja  no reconhecimento dessa cadeia.
   Sexualidade                                 Marcio Giovanetti considerou que a criação da psicanálise,  com Freud, dava ênfase ao trauma sexual, mas que a subjetividade contemporânea  não focaria mais o trauma sexual e sim um trauma "informacional": o  impacto como o que se deu com o 11 de Setembro e a visão das torres caindo, e a  idéia do trauma ligado a fundamentalismos religiosos, essas questões todas.  Falou que pessoalmente, no seu trabalho, o real seria um terceiro  a ser simbolizado revendo o conceito do que  seja material clínico. 
 Christian Gaillard, discordou de que os junguianos não se  ativessem à questão da sexualidade, já que ela nos deixa em contato com a vida  e com a pulsão de vida e também com a diferenciação da identidade. A  sexualidade seria vista como uma promessa de união e também uma experiência de  separação, assim como a evidência da existência do outro. Falou também que Jung  ocupou-se bastante da diferença entre os sexos, na relação com o outro e também  na relação interna com a sexualidade oposta e sua representação denominada  anima e animus. Sua obra Mysterium Coniunctionis tratava do enigma do  relacionamento. O desejo está presente, segundo Gaillard, já que anima e o  animus são manifestações do desejo, e trazem tristeza, agressividade, espera.
   Objetivos e desafios                                 Marcio Giovanetti assinalou que, quando Freud se referiu ao  objetivo da psicanálise em trazer a "infelicidade comum"em lugar da  neurose, estava longe de pretender uma acomodação e adaptação às normas já que  seu pensamento e ele próprio foram revolucionários. O significado estaria na  capacidade de se defrontar com o limite, com a falta, com a identidade  diferenciada. Seria o desenvolvimento de um devir, ao invés de uma mera  adaptação.
 Christian Gaillard vê no trabalho analítico um alcance  modesto e outro ambicioso. O modesto é o trabalho artesanal feito na clínica, e  o ambicioso visa encontrar uma forma mais justa para viver o presente e o que  virá e, além de individual, é coletivamente compartilhada. Freqüentemente o  coletivo e as grandes massas da população   não correspondem às exigências do trabalho artesanal e haveria uma  desproporção entre nosso trabalho em clínica e os grandes desafios da  humanidade hoje, para o  qual ele não tem  resposta.
 Em suma, este encontro histórico foi sumamente enriquecedor  e demonstrou a confluência de distintas perspectivas e seus objetivos comuns em  prol do desenvolvimento humano e do aprimoramento da prática clínica.
    
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