Luis Alberto de Abreu e o processo colaborativo*
Eduardo Luiz Viveiros de Freitas**
2004
O dramaturgo Luis Alberto de Abreu tem produzido peças utilizando
um modo de escrita teatral baseado na colaboração próxima
entre o dramaturgo e a equipe de encenação. O processo colaborativo
"provém em linhagem direta da chamada 'criação
coletiva', proposta de construção do espetáculo teatral
que ganhou destaque na década de 70, do século 20 (...)",
e será analisado a partir de reflexões do próprio
artista.
Luis Alberto de Abreu é um dramaturgo de 52 anos (2004), jornalista
de formação, que escreveu cerca de 50 peças teatrais
(das quais, 10 escritas "em processos colaborativos com grupos de
todo o país"). Suas peças abordam a temática
do teatro popular, especificamente a comédia popular; mas, como
apaixonado pela palavra levada ao palco, esse autor transita pela pesquisa
e pelo experimentalismo em diferentes formas dramáticas, trabalhando
com grupos e projetos teatrais, como o CPT de Antunes Filho, para o qual
escreveu Xica da Silva; o Teatro da Vertigem, para o qual adaptou um texto
da Bíblia, trazido para o domínio do teatro como O Livro
de Jó e o Grupo Galpão, de Belo Horizonte, que montou Um
trem chamado desejo, a partir de argumento do grupo desenvolvido pelo
dramaturgo.
A companhia teatral que o tem como "dramaturgo residente" há
mais de dez anos, é a Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes,
dirigida por Ednaldo Freire, que montou vários textos seus como
os do Projeto Comédia Popular (Burundanga; O Anel de Magalão;
Sacra Folia; O Parturião) ; Till; Iepe; Auto da Paixão e
da Alegria; Borandá e o mais recente, Eh, Turtuvia! Também
foram montadas as peças O Auto do Circo, com a Cia Estável
de Repertório, dirigida por Renata Zhaneta, e Tauromaquia, com
a Cia Balagan, dirigida por Maria Thaís (UNICAMP), espetáculo
em que Luis Alberto de Abreu coordenou a dramaturgia. Uma das poucas peças
suas que ainda não foi montada é "O Homem Imortal",
que tem como cenário a Revolução de 30.
São dele e da diretora Eliane Caffé os roteiros dos filmes
Kenoma (1998) e Os Narradores de Javé (2003), este último
exibido e discutido em maio deste ano, em atividade promovida pelo NEAMP
(Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP),
organizada e coordenada pela professora doutora Ana Amélia da Silva
(Depto de Sociologia e Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências
Sociais da PUC-SP). O dramaturgo está também tateando o
terreno da dramaturgia televisiva. Recebeu vários prêmios,
entre eles o Prêmio Molière, por "Bella Ciao" (1982),
como melhor autor.
Suas fontes e influências declaradas são: o circo, o teatro
popular, a literatura (entre outros autores, Graciliano Ramos e Guimarães
Rosa), a Commedia Del´Arte, "causos" contados na rua,
o teatro épico de Brecht, Walter Benjamin ("principalmente
quando ele define o narrador como o transmissor de experiências
humanas"), as idéias Mikhail Bakhtin sobre o universo do riso
na cultura popular, Luís da Câmara Cascudo. Autores de teatro
que mais o influenciaram: Ariano Suassuna, Arthur Azevedo, Gianfrancesco
Guarnieri, Vianinha, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Jorge de
Andrade; além de Shakespeare, Lorca, o já citado Brecht,
Ibsen e a dramaturgia grega .
O aprendizado do "ofício" deu-se na prática, como
ator, nos anos 70, durante sete anos, num grupo de teatro amador de São
Bernardo, que se apresentava em Santo André, no ABC paulista. Foi
ali que aprendeu que o processo de criação dramatúrgica
é correlato ao processo de criação do ator. Seu processo
de criação, aparentemente caótico, parte da intuição
("vem do ator, é a sensibilização, um processo
interior"), do improviso, da fluência com que as personagens
tomam conta do texto e do apuro dos diálogos. A partir de uma estrutura
provisória, que chama de canovaccio (espécie de roteiro
utilizado pelos atores de Commedia Del´Arte para "improvisarem"
o espetáculo teatral), de um enredo e do planejamento prévio
do texto, inicia seu trabalho, que não necessariamente resultará
no que foi planejado, pois o autor gosta quando "isso acontece, quando
o faro, a intuição, o jogo durante o processo de escritura
de um texto alteram aquilo que foi planejado".
LAA é também um pesquisador e professor de teatro. Coordena
o Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro em Santo André,
e assessora a criação dramatúrgica e a formação
de novos autores no Projeto Oficinão, do Grupo Galpão, em
Belo Horizonte.
Dessa experiência pedagógica, de sua atuação
junto às companhias teatrais acima mencionadas, nasceu o que o
autor chamou de "processo colaborativo", em artigo publicado
no número "0", de março de 2003, dos Cadernos
da Escola Livre de Teatro de Santo André. O artigo chama-se "Processo
Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de
Criação".
Cabe ressaltar, que a denominação não é exclusiva
do dramaturgo, pois resulta de prática adotada em fins da década
de 90 por grupos de teatro de São Paulo, principalmente, e por
dramaturgos como Fernando Bonassi, Hugo Possolo, Reinaldo Maia e Sérgio
de Carvalho. Todos, menos Bonassi, ligados a grupos: respectivamente,
Parlapatões (Hugo), Folias D'Arte (Reinaldo) e Companhia do Latão
(Sérgio). No mesmo ano de 2003, em abril, Luis Alberto de Abreu
participou de um debate organizado pelo jornal O SARRAFO (número
2, abril de 2003), do qual participaram os dramaturgos citados, em que
se discutiu "um modo de escrita teatral baseado na colaboração
próxima entre o dramaturgo e a equipe de encenação"
(...) "Aparentado com os métodos de criação
coletiva dos anos 70, mas diverso quanto aos objetivos estéticos
e quanto ao trato da palavra, esse modo de escrita tem sido chamado de
'processo colaborativo' ou 'dramaturgia em processo' por alguns de seus
praticantes".
A partir da crítica à prática teatral dos anos 70
(o texto como pretexto, a "criação coletiva" como
panacéia para resolução de problemas estéticos)
e 80 (o primado do encenador, das adaptações, o vácuo
da dramaturgia no Brasil), a retomado do trabalho de grupo no teatro,
nos anos 90, principalmente em São Paulo, colocou em questão
a natureza e a qualidade do trabalho do dramaturgo:
"A criação coletiva da década de 70 chegou ao
gargalo porque tinha muito pouco dramaturgo naquela época. Descuidou
de uma relação que é também literária.
E a palavra esta aí para ser usada pelo coletivo, o que pode gerar
uma complexidade maior. (...) O dramaturgo teve que reaprender a escrever
para o espetáculo. Já não é possível
a arte da escrita destinada à permanência, em que o autor
sozinho pensa o espetáculo, estabelece a geometria da cena. Nesse
sentido, o grupo foi muito importante. Mesmo os dramaturgos que trabalham
em seu gabinete estão escrevendo para o coletivo, de um modo aberto."
O "processo colaborativo é um processo criativo que busca
a horizontalidade nas relações entre os criadores do espetáculo
teatral", pretende "prescindir de qualquer hierarquia pré-estabelecida.
(...) O palco não é o reinado do ator, nem o texto é
a arquitetura do espetáculo. (...) Todos esses criadores e todos
os outros mais colocam experiência, conhecimento e talento a serviço
da construção do espetáculo de tal forma que se tornam
imprecisos os limites e o alcance da atuação de cada um
deles."
"O processo colaborativo provém em linhagem direta da chamada
criação coletiva, proposta de construção do
espetáculo teatral que ganhou destaque nos anos 70, do século
20, e que se caracterizava por uma participação ampla de
todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo".
(...) "A criação coletiva possuía, no entanto,
alguns problemas de método. Um deles era a talvez excessiva informalidade
do próprio processo. Não havia prazos, muitas vezes os objetivos
eram nebulosos e a experimentação criativa era vigorosa,
não havia uma experiência acumulada que pudesse fixar a própria
trajetória do processo. Era, ainda, uma abordagem da criação
totalmente empírica que se resumia, muitas vezes, em experimentação
sobre experimentação." Na ausência de um dramaturgo
que pudesse finalizar o trabalho, muitas vezes essa experimentação
era estéril do ponto de vista artístico, ou terminava concentrando
na figura do diretor a palavra final sobre a orientação
do espetáculo. O processo perdia seu caráter coletivo e
a visão ou proposta do diretor predominava. O grupo, que anteriormente
dependia do dramaturgo para uma pré-organização do
espetáculo, agora via o trabalho coletivo ter uma "assinatura"
individual, o que fazia com que o "ideal de um coletivo criador não
se cumprisse integralmente".
Nos anos 80, as contradições desse processo se agudizaram,
e o diretor assumiu "de vez o papel de condutor (...) da criação
teatral, substituindo, muitas vezes, o dramaturgo como geômetra
das ações e pensador do corpo de valores éticos e
estéticos do espetáculo. (...) Libertos da servidão
à escrita do dramaturgo, os encenadores tornaram-se os verdadeiros
criadores do espetáculo, fazendo avançar a pesquisa cênica
a limites até então inexplorados". (...) "Resultados
belíssimos, originais e contundentes foram criados a partir da
arquitetura cênica. No entanto, um processo coletivo de criação
continuava solicitando reflexão e aprofundamento."
O autor cita o Teatro da Vertigem e a Escola Livre de Teatro de Santo
André como exemplos do que chama de "processo colaborativo",
referências "na busca da horizontalidade de relações
artísticas entre seus integrantes". Para que esse "processo"
se instalasse, no entanto, foi preciso rever conceitos ligados à
arte teatral. Um deles é o subjetivismo exacerbado que "comumente
acompanha o trabalho artístico". Como conciliar a ausência
de hierarquias "fixas e desnecessárias", com a distribuição
de papéis horizontalizada (o ator é também dramaturgo,
diretor, mas também operador de som...)? Idéias, textos,
soluções compartilhadas, examinadas, confrontadas e debatidas
pressupõem capacidade de abrir mão de pequenas e grandes
vaidades pessoais. Até o estabelecimento de um "acordo"
entre os criadores. Como evitar que o senso comum seja o resultado da
criação? O "acordo" estabelecido não é
um acordo de cavalheiros. "É um acordo tenso, precário,
sujeito, muitas vezes, a constantes reavaliações durante
o percurso. Confrontação (de idéias e material criativo)
e acordo são pedras angulares no processo colaborativo".
Outras questões sobre as quais reflete LAA são: a relação
entre a expressão artística e o público (entendido
não apenas como quem paga a bilheteria, mas, "sim, uma unidade
cultural, um conjunto de indivíduos que pensa, partilha sonhos,
expectativas e um mesmo imaginário"); o trabalho exploratório,
prévio, até se chegar à cena ("definição
de tema, mote ou assunto do espetáculo, pesquisa teórica
ou de campo e, mesmo, discussões das primeiras imagens, idéias,
improvisações dos atores ou de textos da dramaturgia."),
onde todo material de pesquisa é tornado comum; a construção
da estrutura básica de ações e personagens (o canovaccio)
pela dramaturgia; a concretização e a comunicação
dos resultados, como trajetória, dando importância à
cena, como unidade fundamental, no processo colaborativo; a crítica
interna como motor do desenvolvimento do processo; a preservação
das funções de cada artista, superando a tensão advinda
da liberdade de interferência da crítica; a crítica
"em perspectiva", ou seja, a crítica objetiva que conhece
e "leva em consideração o objetivo que o criador procura
alcançar, afastando-se da simples avaliação de resultados".
Uma obra que reflita o pensamento do coletivo criador. Assim LAA apresenta
o "processo colaborativo" como uma resposta consistente às
questões propostas pela criação coletiva dos anos
70, e, acrescento, uma das muitas respostas que o teatro procura encontrar
para continuar sendo a expressão da sociedade, das relações
de poder, e da trajetória do Homem na História.
* Comunicação apresentada na XIIª Semana de Ciências
Sociais da PUC-SP / 2004, no Grupo de Trabalho: História, Arte
e Tecnologia.
**Eduardo Luiz Viveiros de Freitas (Eduardo Viveiros) - doutorando do
Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, e
membro do NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política),
Departamento de Política, Faculdade de Ciências Sociais /
PEPg em Ciências Sociais da PUC-SP
Referências bibliográficas:
ABREU, Luis Alberto de - Comédia Popular Brasileira, São Paulo, direitos cedidos pelo autor para esta edição a Siemens Ltda, dezembro de 1997.
____________________ - Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação; in: Cadernos da Escola Livre de Teatro de Santo André, Ano I, Número 0, março de 2003, pp. 33 a 41.
Trilogia Bíblica (Teatro da Vertigem); apresentação de Arthur Nestrovski; São Paulo, Publifolha, 2002.
ABREU, Luis Alberto de - O Homem Imortal (peça teatral), in: Teatro Brasileiro - Belo Horizonte: Hamdan Editora, 1998 (Teatro Brasileiro, v.3 - coleção).
Os caminhos da criação: Escola Livre de Teatro, 10 anos. / Prefeitura de Santo André, Secretaria da Cultura, Esporte e Lazer, - Santo André: Departamento de Cultura/, 2000.
ABREU, Luis Alberto de - Comédia Popular Brasileira; São Paulo, direitos cedidos pelo autor a Siemens Ltda, dezembro, 1997.
MAGALDI, Sábato - Panorama do Teatro Brasileiro; 3ª edição; São Paulo, Global, 1997.
SÁ, Nelson Pancini de - Divers/Idade: um guia para o teatro dos
anos 90; São Paulo, Editora HUCITEC Ltda, 1997.
Folha de São Paulo - 12/08/04, matéria Abreu "narra"
drama contemporâneo: com mais de 40 peças escritas, autor
paulista tem duas em cartaz e ajudo no texto de "Tauromaquia",
que estréia hoje; jornalista: Valmir Santos (Ilustrada).
Entrevista de Luis Alberto de Abreu, concedida em 25 de outubro de 2002, in: Folhetim (revista do grupo Teatro do Pequeno Gesto), nº 16 (jan. -abr. 2003), pp. 97 a 130.
Jornal O SARRAFO (teatro em debate), número 2, Abril 2003 - Debate Dramaturgia de grupo; o coletivo na dramaturgia; autores debatem o teatro como disputa de pensamento; pp. 4 a 7.

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