A Aspiração à Democracia no Mundo Árabe
José Henrique P. e Silva
Estes acontecimentos de revolta que estamos presenciando em alguns países árabes são perturbadores. Parecem não cessar, parecem ter um combustível que os alimenta permanentemente. A disposição para o enfrentamento e o número de mortos gritam para que nosso olhar se volte para aquela questão. Por serem países árabes, somos tentados a imaginar algo com um denominador comum do tipo religioso. Mas, não é isto que enxergo neste momento. O que vejo como denominador comum é a causa da “Democracia”.
Mas, teria a democracia atrativo suficiente para tanto? Já sentimos isso na pele e sabemos que sim. Mas, ao ponto de revoltas e tantos mortos? Sim, também já sentimos isso na pele, embora na forma de grupos organizados e não de uma multidão que vai às ruas e ocupa praças, a não ser pacificamente. A democracia, portanto, surge como aquela aspiração no horizonte de inúmeros árabes que se pretendem cidadãos. Que democracia é essa? Não sabemos ao certo. Talvez nem mesmo eles saibam nesse momento. Mas, não é isso que mais importa. O fundamental é perceber o desejo, a aspiração por um novo momento que venha a sepultar a condição até aqui vivida, de opressão, restrições na escolha política e falta de liberdade de expressão.
Não é muito difícil tentar uma definição de democracia sob o ponto de vista da ciência política. Isso já é assunto comum nas rodadas de discussão. Poderia dizer, em poucas palavras, que se trata de um sistema onde o poder soberano é do povo, que escolhe e altera líderes e representantes livremente, possuindo liberdade de ação e expressão para tal. Mas, não é deste conceito que quero tratar neste texto. Claro que talvez seja este conceito bem geral que esteja na cabeça de muitos árabes que se revoltam e morrem hoje em suas lutas, mas, o que isto significa do ponto de vista psicológico? É esta reflexão que gostaria de fazer. Afinal, nem todos sabemos, de fato, e exceto alguns especialistas da área, o que significa teoricamente a democracia, mas, certamente, todos temos desejos e aspirações que vão no seu sentido. Como se buscássemos algo que não sabemos definir corretamente, mas que simboliza, com sua conquista, nosso desejo de sair da situação atual de opressão. É isto que a democracia significa para a grande maioria das pessoas. É sobre isto que gostaria de falar.
Vou me utilizar, para isso, de D. Winnicott, um dos psicanalistas que se aventurou em extrapolar o sujeito psíquico e falar do “social”, aí incluída a política. Afinal, esse ultrapassar de fronteiras é fundamental para a compreensão do sujeito, pois nem somos frutos exclusivos de nosso desenvolvimento psíquico individual, nem somos meros resultados de determinações sociais. O sujeito é um só, mas com uma faceta psíquica e outra social, numa tensão permanente. E conviver neste terreno escorregadio é a tarefa e muitos profissionais que se aventuram pela psicologia social e política, especialmente. Vamos à questão da aspiração democrática que, concretamente, se apresenta no mundo árabe.
Winnicott (1) nos diz que não devemos nos restringir aos significados óbvios ou conscientes de um conceito. Devemos ir atrás das ideias presentes e latentes no uso de tais conceitos. Podemos imaginar que o significado óbvio de democracia foi aquele que citei acima, e que uma das ideias presentes e latentes é, por exemplo, a aspiração e o desejo de liberdade. Se quiséssemos aprofundar a discussão teríamos, também, que fazer o mesmo processo com o conceito de “liberdade”. Mas, vamos ficar com a questão da democracia e a aspiração de liberdade que desperta. Isso seria avançar em direção a um estudo psicológico da política.
Winnicott nos diz que um destes conteúdos latentes do termo democracia é o de uma “sociedade madura”, plena ou relativamente falando. Isto nos remete a uma ideia de “saúde”. Vejamos, psicologicamente falando um indivíduo saudável e maduro significa estar na posse de um determinado grau de desenvolvimento emocional. Ora, a máquina democrática, segundo Winnicott nos fala, tem como essência o voto livre e secreto, ou seja, a liberdade de expressão dos sentimentos mais profundos, muitas vezes distintos de seus pensamentos conscientes. O indivíduo internaliza o jogo das forças sociais em conflito e isto entra em choque com seu próprio mundo pessoal e só, quase sempre, pela liberdade do voto secreto pode dar vazão a seus sentimentos e aspirações.
A política democrática, dessa forma, seria uma possibilidade do indivíduo manifestar livremente seus anseios e sentimentos mais privados, evitando que a impossibilidade de manifestação se transforme em raiva e destrutividade. A política democrática, portanto, pode ser criativa e construtiva, canalizando a destrutividade (inerente ao ser humano) para a discussão da esfera pública. Não é o que se dá em muitos países árabes e por isso está no fundo destas revoltas. Há um desejo por liberdade que, se continuar sendo negado, pode criar ondas de destrutividade.
Como a democracia não é algo que se compra pronto, nem se aprende da noite para o dia, é preciso que, antes de tudo, ela seja desejada, aspirada, conquistada, para, a partir daí, ser experimentada, testada, corrigida permanentemente, e defendida até a última força como um valor universal, determinante para a saúde e maturidade de uma sociedade. É assim que Winnicott nos diz que, numa sociedade democrática, há maturidade suficiente no desenvolvimento emocional de uma proporção suficiente de indivíduos que a compõem, a ponto de existir uma tendência inata em direção à criação, à recriação e à manutenção da máquina democrática (p. 192) (2). O que é fundamental, então, é se aumentar o fator democrático inato existente em algum percentual na sociedade (3).
Neste aspecto, Winnicott nos chama a atenção para o fato de ser muito comum que os teóricos enfatizem que o fundamental para assegurar o bem-estar é o “cuidado físico”, e isso significa que é a relação mãe-bebê que ainda é vigente, sendo necessária a interferência paterna para instituir a separação e possibilitar a criatividade e construtividade autônomas. Da mesma forma é a sociedade. Se paramos no cuidado físico, o que estamos fazendo? Criando cidadãos? Tenho dúvidas. É preciso ir mais além, estimular a criatividade, a espontaneidade, enfim, a emancipação e a libertação em relação a esse cuidado “materno” que pode bloquear o desenvolvimento emocional. É aí que entra a política democrática como sendo o espaço dentro do qual a criatividade e a autonomia poderão se desenvolver garantindo ao indivíduo e à sociedade seu amadurecimento. Parar no clientelismo e no assistencialismo, portanto, é contribuir para brecar o desenvolvimento da própria sociedade. Autoritarismo e opressão são tão maléficos quanto, pois impedem a manifestação dos desejos e aspirações, liberando ondas de raiva e destrutividade.
É, portanto, no dia a dia do lar comum que se experimenta a democracia e desenvolve-se uma tendência à ela. É na esfera pública, por outro lado, que essa tendência vai criar aderência ao modelo que o jogo político coloca à mesa. É nesta dialética que o homem comum, com seus desejos e aspirações, e o governante, com seus modelos identificatórios, vão criando oportunidades ou para o amadurecimento da sociedade, ou para sua infantilização.
É a rejeição a essa infantilização que me parece estar muito presente neste alto grau de resistência de setores da população árabe à tradicionais ditaduras. Há um desejo de liberdade, de maturidade, de… democracia.
(1) “Algumas reflexões sobre o significado da palavra “democracia”. In: D. W. Winnicott. Tudo começa em casa. Tradução Paulo Sandler. – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996. – (Psicologia e Pedagogia), p. 189-204. Título original: Home is where we start from. O texto foi escrito para o “Human Relations” em junho de 1950.
(2) Este ponto é interessante pois Winnicott da mesma forma que reconhece, como fundamental para a democracia, a existência de “indivíduos saudáveis e voltados para a contribuição social”, nos fala também da natural existência de percentuais de “indivíduos anti-sociais manifestos” (criminosos), “anti-sociais ocultos” (quando diante da insegurança identificam-se com a autoridade) e “indeterminados” (que, por sua fraqueza ou medo podem ser persuadidos a se associar aos anti-sociais). Em todos, o que se observa é uma identificação imatura, precária e as vezes inexistente, com a sociedade.
(3) Uma boa pergunta seria: o que os governantes (Executivo e Legislativo) têm feito para contribuir com o aumento deste percentual do fator democrático nas pessoas? Não podemos esquecer que estamos sempre em um processo de identificação, e a que modelos estamos nos identificando? Que modelos de autoridade e política estão sendo colocados à mesa?
(1) “Algumas reflexões sobre o significado da palavra “democracia”. In: D. W. Winnicott. Tudo começa em casa. Tradução Paulo Sandler. – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996. – (Psicologia e Pedagogia), p. 189-204. Título original: Home is where we start from. O texto foi escrito para o “Human Relations” em junho de 1950.
(2) Este ponto é interessante pois Winnicott da mesma forma que reconhece, como fundamental para a democracia, a existência de “indivíduos saudáveis e voltados para a contribuição social”, nos fala também da natural existência de percentuais de “indivíduos anti-sociais manifestos” (criminosos), “anti-sociais ocultos” (quando diante da insegurança identificam-se com a autoridade) e “indeterminados” (que, por sua fraqueza ou medo podem ser persuadidos a se associar aos anti-sociais). Em todos, o que se observa é uma identificação imatura, precária e as vezes inexistente, com a sociedade.
(3) Uma boa pergunta seria: o que os governantes (Executivo e Legislativo) têm feito para contribuir com o aumento deste percentual do fator democrático nas pessoas? Não podemos esquecer que estamos sempre em um processo de identificação, e a que modelos estamos nos identificando? Que modelos de autoridade e política estão sendo colocados à mesa?

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