A guerra inscrita no corpo: estamos todos bichados?
O texto de Bichado escrito pelo dramaturgo estadunidense Tracy Letts (1965 - ) e encenado (1) pelo Núcleo Experimental de Teatro da Barra Funda, na cidade de São Paulo (SP), sob direção de José Henrique de Paula sinaliza uma perspectiva bastante íntima e próxima que é a do corpo. A peça Bichado mantém uma tensão constante a partir da articulação entre o corpo e a história, entre o corpo e todo um sistema de regras que se modula num fluxo contínuo.
As cenas se passam no quarto de um motel de beira de estrada, nos limites de Oklahoma, Estados Unidos, onde vive a garçonete Agnes White (Einat Falbel) quarenta e quatro anos, escondida de seu violento ex-marido, o ex-presidiário Jerry Goss, quarenta e poucos anos, que está prestes a voltar para casa. Uma noite, sua amiga gay R.C. (Adriana Alencar) apresenta-a um desertor da Guerra do Golfo, Peter Evans, (Paulo Cruz) de vinte e poucos anos. Logo Agnes e Peter se apaixonam e passam a compartilhar do espaço daquele quarto de hotel. Mas, Peter desenvolve uma crescente paranoia que envolve experimentos secretos feitos em soldados pelo governo dos Estados Unidos. O jovem tem certeza de que foi cobaia num desses experimentos do exército e se inquieta com a possibilidade de estar sendo vigiado pelos cientistas. Essa estranha sensação é potencializada pelo ruído de um helicóptero que vire e mexe passa dando rasantes no hotel onde se passa toda a trama.
A tensão é exacerbada na medida em que Peter acredita estar infectado por micróbios/parasitas. O quarto do hotel em Oklahoma começa então a ser povoado por "bichinhos" (afídios) que se alimentam e se reproduzem no corpo de Peter. Bichado se insere nas escolhas do diretor Zé Henrique de Paula para encerrar a Trilogia da Guerra, e, dessa vez, parece interessar trazer os efeitos da guerra arrasando o corpo quando menos se espera.
Contudo, Bichado coloca as particularidades dessa guerra. Mas a grande ameaça agora, não é mais uma guerra civil no interior de um Estado ou uma nova guerra mundial entre os Estados nacionais organizados em blocos. Após as derrotas e submissões de Estados socialistas, o fim da Guerra Fria, o governo do planeta de modo capitalista exige hoje um redimensionamento do indivíduo, um novo "programa" para seu corpo e sua mente, em uma nova modalidade de guerra (PASSETTI, 2004) (2).
Nessa guerra, é o corpo como superfície de inscrição de acontecimentos que está em jogo, o corpo articulado aos efeitos da historia, aos jogos de dominação que a todo o momento imprimem-lhe marcas. Segundo aquilo que apontou Michel Foucault na esteira da Genealogia da Moral (1887) de Friedrich Nietzsche o corpo, não somente é marcado, mas, sobretudo, se forma por "uma série de regimes que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos – alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente" (3).
O enredo de Bichado remete a uma série de atravessamentos históricos, tal como os contrastes entre o provincianismo de Oklahoma e as sempre presentes práticas contraculturais, que na década de 1980 se expandem no ritmo desenfreado da urbanização. No entanto, os "bichinhos" no corpo de Peter Evans não deixam enganar: o atravessamento maior parece ser ainda o da guerra. Uma guerra contínua e que atravessa cada um diariamente.
Nesse aspecto, vale lembrar um caso bem próximo: hoje, no Brasil, - mas, não somente, grandes partes dos alimentos produzidos provem de sementes geneticamente modificadas. Mas o que isso tem a ver com a guerra? A Monsanto - hoje a maior produtora de biotecnologia e de alimentos geneticamente modificados do planeta – teve seus baixos começos como indústria química, que produzia venenos e armas químicas de guerra, tal como o chamado agente laranja.
Sintetizado numa mistura de dois herbicidas, o agente laranja foi largamente usado como desfolhante pelo exército estadunidense na Guerra do Vietnã. Esses mesmos herbicidas são hoje usados na monocultura a fim de produzir sementes cada vez mais resistentes às pragas e aos parasitas. Na guerra do Vietnã, na pressa para sua utilização, o agente laranja foi produzido com "inadequada" purificação de modo a apresentar teores elevados de um subproduto cancerígeno, um resíduo que não se sabe ao certo se é presente ainda nos alimentos comercializados e consumidos por todos.
Os efeitos do uso desses herbicidas na Guerra deixaram sequelas terríveis para a população vietnamita, inclusive para muitos soldados norte-americanos. De acordo com estatísticas oficiais, no período de 1961 a 1971, as tropas americanas espargiram 80 milhões de litros de herbicidas, que continham 400 quilogramas de dioxina sobre o território vietnamita. Esse desfolhante não somente destruiu o habitat natural, como deixou milhares de pessoas expostas aos seus efeitos cancerígenas que provou enfermidades irreversíveis, sobretudo, malformações congênitas e síndromes neurológicas em crianças, mulheres e homens de todo o país (4).
De modo singular, o grupo de aparentes "desajustados" que frequentam o quarto da garçonete Agnes White configuram-se como os novos alvos dessa guerra que se articula em surdina e se beneficia do cruzamento entre Estado, mercado e sociedade. Ainda que em alguns momentos, a questão colocada através do texto de Letts resvala num problema que concerne meramente ao plano individual, a paranoia de Peter - seja enquanto efeito de uma guerra real ou de uma mente altamente conturbada – não deixa de sinalizar os efeitos perversos do jogo do poder.
Em defesa do processo civilizatório ou ainda, do que se denomina por desenvolvimento econômico revestido de "sustentabilidade do planeta", não somente o corpo, mas, sobretudo os estados da mente são inteiramente marcados e arruinados pela história. São os efeitos de uma guerra não mais travada em nome do soberano a ser defendido, mas, em nome da existência de todos, de populações inteiras que são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Não mais o caráter repressivo do poder está em jogo, esse outro tipo de poder que aparece nas feridas do corpo de Peter, redimensiona-se como poder produtivo (5), que faz crescer e ordenar as forças, num gerenciamento cada vez maior e mais minucioso da vida. Diante disso, os massacres se tornaram vitais. E é à custa de um continuum de vítimas, que a vida não somente do ser humano, mas a vida de todo o planeta é colocada a serviço do fortalecimento do Estado centralizado na prospecção de investimentos financeiramente rentáveis.
Desse modo, a guerra ganha, a cada dia, novos respaldos legais em defesa da universalização da segurança humana. Hoje, fala-se em paz mundial, em saúde, bem-estar e segurança do planeta. No entanto, o Estado se reconfigura sob uma nova forma de poder através de uma crescente militarização dos agentes de segurança (Vide caso Pinheirinho, em São José dos Campos, estado de São Paulo). O que configura uma política que se exerce, sobretudo, pelo seu poder de polícia, ao lançar mão de estratégias altamente especializadas em aplicar a violência a fim de garantir a segurança para uns e o lucro para outros. Contudo, nada é capaz de barrar as dispersões, as proliferações de novos parasitas, pragas e agitações "desordenadas" e incontestáveis a esse tipo de poder.
Bichado, ao lançar um olhar ao que está próximo, ao corpo, ao sistema nervoso, às energias, traz à tona as decadências de nossa época. E, ao final, mostra um modo de recusar na radicalidade o espírito desse tempo presente. Recusar, sobretudo, esse tipo de individualidade que estamos há muito sujeitados. No entanto, tal via de escape pressupõe um tipo singular de niilismo como condição ativa de abrir espaço a novos valores. Valores não mais amparados na esperança vã de recompensa ou de um sentido moral para a vida, mas, valores que afirmem a vida em sua máxima potência de expansão e de invenção. Algo que diz respeito a um remanejamento profundo das condições - não-lógica e não administrável - de percepção e dos afectos que nos atravessam. Algo que o teatro como um espaço aberto à produção de novas sensibilidades pode habilmente realizar.
*Mestranda em Ciências Sociais pelo PEPG-PUCSP e pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP-PUCSP).
(1) Com elenco formado por Einat Falbel, Paulo Cruz, Alexandre Freitas, Adriana Alencar e Rodrigo Caetano, a comédia do autor norte-americano Tracy Letts, inédita no Brasil, estreou no dia 13 de abril de 2012.
(2) PASSETTI, Edson. Segurança, confiança e tolerância: comandos na sociedade de controle. São Paulo em Perspectiva, v. 18, n. 1, 2004, p. 151-160. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392004000100018, acesso em 01 out. 2011.
(3) FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. e trad. Roberto Machado. Edições Graal: Rio de Janeiro, 2004, p. 27.
(4) Disponível em O Jornal do Brasil. http://www.consciencia.net/2005/mes/06/vietnaeua-impunidade.html. Acesso em 19 maio de 2012.
(5) FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. Trad. Maria T. da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Edições Graal: Rio de Janeiro, 2001,p.130.

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