Baú da vó (1)
Joana dos Santos Egypto de Cerqueira (2)
Todo ano é de se esperar um burburinho aceso, em São Luiz, quando o carnaval se aproxima. Pensar e fazer fantasias, decidir qual o brilho, qual o corte, que chita bacana... Tudo isso explode em delírio quando se sai para a rua, se encontra os amigos, quando se pula e toca pelos quatro dias (e muito mais) até o "bico do corvo". Uma história bastante singular vem à tona e “desemboca” na vida das pessoas que respiram dessa festa ao longo da vida. Quando os quatro dias de folia dão sentido ao modo da lida do resto do ano, alimentam melodias, noites e dias, quiçá filosofias. Embalam a realidade num ar de brincadeira séria. São Luiz do Paraitinga se despe em máscaras e vestes inventadas.
Na casa da Vó Cinira, uma oficina de festa acontecia ao longo do ano e especialmente com a chegada do carnaval. Além do som frenético das máquinas de costura, uma conversaiada rolava o tempo todo. Pipocavam crianças no meio daquela bagunça de resto de pano, de gliter e de saco de pão usado para molde das roupas. "Cuidado para não sentar na agulha, na tesoura!" / "Vem, agora, vem cá ver como faz" / "Tá com fome? Aguenta só mais um pouquinho que a mamãe tá acabando aqui". Um entra e sai de amigos, de mais crianças, de ideias, fermentação e trabalhos para fazer.
A casa da Vó Nira, com portas e janelas sempre abertas, era o "Zona do Agrião" prolongada na rua. Pouco antes de o bloco sair com o bando, gogós e violões aqueciam e afinavam suas cordas na sala da frente, despertavam alegres com o carnaval: festejavam, dentre as piras, eternidade e retorno. A música estava pronta, lá, a cada ano: "Zona do Agrião", "Espanta a Vaca", "Florisbela" e tantas outras que, não só pelo gênero das marchinhas de carnaval, espichavam como capim no período que se seguia.
O jornal Juca Telles do Sertão das Cotias, motivo de ajuntamento de palavras e pessoas, prosseguiu depois de um ano também em bloco. Festas desconcertantes de aniversário do jornal e do bloco, no bar “Canto Verde” e no “Seu Carlito”. O mimeógrafo rodava, de tempo em tempo, e aquele cheirão de álcool tomava conta do ar, se misturava com os hálitos falantes, com os copos servidos...! Ganhou discurso que abalou até o firmamento. O que rola, no carnaval, é uma verdade mentirosa, uma mentira verdadeira. É verdade!
Pessoas charmosamente montadas para os dias de festa com cores, capas, lantejoulas, retalhos, camisolão, extravagância ou não: brilhos mil. O domingo do "Cuca" era sinistro... uma turminha de crianças armava um maior berreiro. E o que me dizer do Cabrá? Minha nossa! Aquele bonecão que fumava criancinha no cachimbo! Aterrorizante! "Só uma bonequinha que está ali na palha, queimando no cachimbo do Cabrá", diziam os adultos, nossos pais. Nós e eles sabíamos que era só isso mesmo e muito mais, diga-se de passagem. O mundo bizarro do Encuca Cuca existia de fato e perdura até hoje.
Qualquer motivo era motivo suficiente para celebrar a existência da vida daquele lugar. Bobagens deliciosas virando música com uma espontaneidade louca. Ancestralidades gritando e o porvir também. Uma pá de gente se mostrando coerentemente insana, na fantasia sã de sua pessoa. As patotas se reconheciam, pela rua: eram amigos, amigos dos amigos; a criançada borboletava para cima e para baixo. Saiam até sozinhas no "Pai do Troço", bloco de suas simpatias, porque tinham uma desculpa para matar a saudade do bico da chupeta e da mamadeira, recentemente deixadas de lado forçosamente ou pela chegada da idade. Até aqui estou dizendo de meados da década de oitenta e quase todo período de noventa.
Em 1998, rolou um "boom" de gente que pareceu estrondoso para a proporção vazante da festa, porém os anos seguintes não cessaram de mostrar que o negócio só crescia. Eram amigos dos amigos dos amigos dos amigos dos amigos dos amigos e uns gatos perdidos. O carnaval é tão bom... Por que não?
Junto a isso, não há como negar que foi alimentada uma racionalidade de gestão que acoplava toda uma organização e administração para receber o enorme fluxo de visitantes foliões – que, nos últimos anos, chegou a ultrapassar vinte vezes o número aproximado da população luizense (hoje, em torno de 11 mil habitantes, segundo o IBGE) – além da afirmação de um produto cultural cada vez mais arraigado e sustentado pelo discurso de uma identidade própria, de uma tradição forte e contagiante oferecida pela prática cotidiana e carnavalesca dos habitantes dessa cidade – o que, por sua vez, passou a interessar investidores de diferentes gabaritos.
Que façanha essa de organizar o caos!
São Luiz: esse lugar antes meio perdido; um achado; um pequeno caos embriagado de músicas e figuras singulares que a muito custo desposavam, em cada ano, Apolo e Dionísio e pisavam nas uvas do “Balacobaco”. Isso definitivamente não merece ser enlatado. Muito ao contrário do que pensam alguns: não é palatável, às vezes mostra-se pouco digestivo, por ora funciona como laxante ou como vacina. O mergulho nesse mundo trágico pode intoxicar e por em risco a vida. Pode também só virar piada de pintos e canto de seriemas, no final da tarde. Uma "Dor da saudade"; transmutação física de "Samaritana"; pode por "Fogo no rancho", não duvide disso! Pode atiçar um "Vento noroeste" bravo que se aventura na busca de uma "Kriptonita".
"Ié, ié!". E já dizia o Riobaldo: "Viver é muito perigoso!"
2013. Que dizer a respeito do patrocínio da marca Skol para o carnaval de São Luiz? Dizer que a festa é incondicionalmente cifra de trás pra frente e/ou que é inviável e inevitável que o carnaval siga adiante, na fatalidade histórica que lhe cabe, sem uma intervenção desse porte? Justificativas são zilhões, as polêmicas são fatigadas e às vezes rola muita asneira.
Não demorou para que a "Operação Skol Folia" desse sua cara, quer dizer, seu flyer. O texto de chamada que desponta na página primeira do site é o seguinte: "A missão agora é começar a festa. Os exércitos já estão prontos para conquistar as ruas e cair na folia" / "Aguarde, em breve vamos revelar quem serão os cinco generais do carnaval 2013 (3)".
Exércitos? Generais? Carnaval como um dever, uma missão? Não!
O que / quem vai ser subjugado, escravizado, dominado, conquistado?
Quais são os muitos generais que se escondem na multidão desses dias de festa?
Intragável! Autoritário! Nauseabundo!
Isso causou um quiproquó profundo entre os muitos foliões moradores de São Luiz, e não só. A programação da “Operação Skol Folia São Luiz do Paraitinga” contava com a presença de Jorge Ben Jor, Baile das Favoritas: Bonde do Tigrão e Buchecha, além de Bob Sinclair, Turma do Pagode e atrações de outros DJs e blocos mais famosos da cidade. As discussões foram crispadas nos grupos das redes sociais. Diante disso, e de todo o descontentamento, tal programação foi revista, depois de largamente divulgada por meios de comunicação diversificados (jornais, canais de tvs, sites e redes sociais), havendo a garantia de que não seria realizada daquela forma. Dizem em alto e bom som: “Estamos garantidos, aqui só se ouve marchinha, durante o carnaval! É lei!”
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Como novidade advinda com o patrocínio haveria para o carnaval 2013 de São Luiz, apenas camarotes e áreas VIPs (acrônimo em inglês para very important person), talvez uns abadazinhos... Os ânimos dos amotinados são assim amansados e o absurdo logo se abranda. Afinal de contas, pergunta-se, que mal haverá em inaugurar, no carnaval tão visado de São Luiz, camarotes e áreas VIPs, assim como ocorre em outras localidades onde o ritual festivo tão celebrado tornou-se um produto lucrativo e promotor de status?
A verve, a força e o viço de uma história e de muitas vidas perdem não só um pé, mas os dois; os olhos e as mãos. Que os ouvidos sejam pequenos e atentos! A mortificação não ocorre de um ano para outro, de uma hora para outra, mas aos poucos; vão cessando os suspiros de prazer e acolhendo como uma lata bonita e oleosa o corpo de uma sardinha pronta para ser posta na boca, com a lubrificação certa e rançosa para a descida na glote do faminto.
Na página dedicada à "Operação Skol Folia São Luiz do Paraitinga" na internet, o seguinte trecho: "Pra quem curte blocos de rua, marchinhas de carnaval e muita curtição, São Luiz do Paraitinga é o paraíso! E com a invasão da sua tropa este ano a cidade vai ficar ainda mais redonda! Então prepare-se para curtir muito a Casa Skol, desfilar nos principais blocos da cidade e subir nos trios elétricos para ajudar a comandar a folia! Vamos lá, soldado! O Barbosa e a Tia Rosa esperam por você! (4)"
Intragável! Autoritário! Nauseabundo!
Sai pra lá, soldado! A Tia Rosa do Pereirão não te espera coisa nenhuma!
Ajudar a comandar a folia? Não há trio elétrico que comporte um desejo; o desejo é sem comando.
A história é feita para jorrar descaradamente o sangue vermelho que corre nas veias e atravessa a nossa pele. De que mais serviria se não fosse para borrar os atos e alimentá-los? Hoje, parece que ela é usada como um escudo mesquinho na cartilha seja de um fatalismo ou de um discurso de preservação grandioso e eloquente mediante o apaziguamento assustador das forças da folia.
Sem dúvida, desconcerto desafinado para os passos dos que prezam o modo singular de fazer uma festa especial que, por sua vez, inventa memórias e faz concreta a existência salutar e imemorial de tanta vida, tanta arte. Um tiro oportuno e perverso do comando, do exército, das tropas de generais e soldados, sem cara e coragem, que se misturam e se infiltram nas festas de Dionísio – aquém e além da “Operação Skol Folia” –, os comuns petulantes e sanguessugas, porta-vozes de um concerto vulgarmente ensaiado para aquilo que, definitivamente, não tem conserto.
Estão fugidos por aí, pela surdina da banda e não com pouco esforço – um bando de gente viva que persiste na invenção de pequenos espaços de liberdade, não só nos quatro dias de carnaval – vira-latas que fazem estardalhaços. Pela fome, não pela foto.
no me
melhor apagar a letra
melhor retirar a marca
e se por qualquer treta
de repente, acontece de sumir do mapa?
escafeder micróbio em proveta
aproveitar restinho da lata
lamber o mel do capeta
cruzar São Luiz e a Lapa
andar até fazer bolha, calo,
carnaval, silicone
duro o tampo da rolha
como será não chamar pelo nome?
Não temos a pretensão e muito menos sacos para falarmos de temas como políticas rosáceas. Tocar nesse assunto, vige, é melhor alisar o véu da noiva. Os urubus já estão cansados de serem vistos como meras aves de cunho turístico. Nós também. Por isso damos de ombros. Para que ninguém se sinta ferido, avisamos: nós só queremos rosetar. Portanto, nem pensar que pretendemos tomar partido, argh!,seja mais em cima ou de meio. Quando tivermos de executar tal fato, pegaremos nossos bonés e tchau, buana! Também não precisamos de puxas sacos para ministrarem nossas ideias, sejam elas como forem. Mais uma vez avisamos: nosso negócio é rosetar. Não defendemos ninguém para também não sermos defendidos. Aqueles que acharem que estamos ofendendo, paciência. Não temos vínculos com bancos de praças; porta de bares, tapinhas nas costas (somos alérgicos!). Enfim, somos porta vozes, como diz o poeta, exclusivamente da nossa incoerência. Ora, e quem cochicha o rabo espicha (5).
São Luiz do Paraitinga, 25 de janeiro 2013.
1- O presente texto foi escrito com a finalidade de enfrentar um questionamento político acerca do patrocínio de uma marca de cerveja ao carnaval de marchinhas de São Luiz do Paraitinga, no ano de 2013. O texto foi impresso e cinquenta cópias foram distribuídas, de mão em mão, durante o 28º Festival de Marchinhas Carnavalescas, que antecedeu o carnaval.
2- Mestranda do Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP.
3- http://www.skol.com.br/folia, consultado em 20 de janeiro de 2013.
4- http://www.skol.com.br/folia/carnavais/sao-luiz-do-paraitinga/ consultado em 20 de janeiro de 2013.
5- BRANCO, Marco Rio. Mal-me-quer / Bem-me-quer. Jornal Juca Telles do Sertão das Cotias
Ano I - 20 de novembro de 1984, p. 01.
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