1964: SOMBRA POLÍTICA E LUZ CINEMATOGRÁFICA
Miguel Chaia
Publicado na Revista Cult, nº 78, ano 6, março/2004.
O golpe de Estado que os militares executaram, em 1964, é mais
um daqueles momentos que pontuam a descontínua e convulsiva forma
como se dá a cíclica história brasileira. Este movimento
deve ser entendido no interior do processo capitalista que aqui se desenvolvia,
marcado pelas contradições entre expansão econômica
do mundo rural e padrões industriais modernos de crescimento, débeis
forças políticas nacionais e pressões externas e
intensificação de conflitos entre grupos e interesses internos,
sejam estes econômicos ou políticos. Foi um momento de decisão
política por um modelo que assumiu o desenvolvimento econômico
integrado ao capitalismo internacional, levando a efeito a racionalidade
do planejamento, a redução dos espaços para a ação
e a representação política e instauração
da repressão sistemática.
Mesmo que tenha havido interferências do governo norte-americano
para a ruptura do andamento político institucional, o golpe de
64 foi gerado internamente por interesses de diferentes segmentos da sociedade
brasileira aliados às forças armadas, que, tomando o poder,
reforçaram uma tendência histórica intervencionista
deste grupo que permaneceu no poder por longos 21 anos.
Se até então os militares se consideravam um poder moderador
de ação transitória, a partir daquele ano se agarraram
ao aparelho do Estado, iniciando um período que exacerba o autoritarismo
(considere-se o conservadorismo e inclua-se a tendência centralizadora)
sempre latente na política brasileira. Os golpistas, em 1964, bradaram:
"Aprenderão!
Colocarei estas histéricas tradições em ordem. Pela
força, pelo amor da força, pela harmonia universal do inferno
chegaremos a uma civilização". Esta frase, num grito,
é do ditador Porfírio Diaz, magnificamente interpretado
por Paulo Autran, no filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha.
Esta obra cinematográfica sintetiza a lentidão da nossa
história, as interrupções institucionais a que estamos
sujeitos e as convulsões sociais que experimentamos diariamente
no ritmo da carnavalização.
Em 1968, Andrea Tonacci realizou o curta metragem Blá, blá,
blá sobre um país em crise e convulsão política,
centrado em um político golpista que declara guerra permanente
contra as instituições, as agitações e qualquer
tipo de oposição ao governo. Esta figura que assume absolutamente
o monopólio do poder, numa situação em que a revolução
devora a si mesma gerando até poderes paralelos, tem como contrapartida
a presença da guerrilha e a ação de ativistas que
propõe o uso da violência para enfrentar a repressão
e o extermínio político.
O cinema brasileiro vem enfrentando o desafio de analisar e expressar
na visualidade as contingências e as conseqüências de
1964, que vêm sempre sendo atualizadas em diversos filmes realizados
no país. Esta produção indaga: Quem somos? Quais
situações geraram a ruptura política? Como se viveu
durante a repressão? O que resta, hoje, do passado?
Tais questões fazem parte da consciência crítica nacional,
pois a história brasileira é permeada por golpes que ocorreram
desde o Império, quando foram usurpados os direitos da 1ª
Assembléia Nacional Constituinte e Dom Pedro I impingiu a Constituição
Outorgada, passando pelo Estado Novo até desaguar em 1964. Passa-se,
assim, da imposição do Poder Moderador, um mecanismo institucional
contra a Federação nascente, para a ditatorial política
de integração e centralização da nação
sob o getulismo, até chegar na militar defesa da doutrina de segurança
nacional.
Todos os golpes são semelhantes e guardam relações
de continuidade ao se constatar que alguns setores estão presentes
nestes movimentos e, inclusive, denunciam a metamorfose pela qual passa
o político brasileiro que se adapta facilmente às mudanças
do regime político. Filmes como Os inconfidentes (1972), de Joaquim
Pedro de Andrade, O caso dos irmãos Naves (1967), de Luiz Sérgio
Person e Memórias do Cárcere (1984), de Nelson Pereira dos
Santos realçam estas semelhanças tratando da repressão
aos inconfidentes para falar das perseguições políticas
da década de 70 e da ditadura getulista estabelecendo relações
entre ela e o movimento militar de 64.
É por isso que pensar o Brasil e filmar o Brasil sob o recorte
de 1964 significa ampliar a análise e apanhar a estrutura social
que vem sendo construída desde a colonização portuguesa.
O movimento de 1964 inspira reflexões e incita a criação
de imagens: por que não conseguimos inventar um país?
Por que não se pode imprimir o sentido desejado da mudança
da
sociedade? Este período também propicia outras dúvidas:
somos capazes de (re)agir politicamente? Se o golpe frustrou muitos grupos
e indivíduos, a oposição a ele e a luta contra a
ditadura militar ganham ares de epopéia. É no sofrimento
da tortura e na organização da guerrilha que o país
foi encontrando elementos para caracterizar pedaços da sua identidade
política.
Filmes como Quilombo (1984), de Cacá Diegues, Pra frente Brasil
(1982), de Roberto Farias, Feliz ano velho (1988), de Roberto Gervitz,
e Lamarca (1994), de Sérgio Resende, fornecem as pistas desta expressão
política da resistência e do engajamento como partes da formação
brasileira, retomando a fuga e a organização de escravos
africanos, os porões da repressão e a luta revolucionária.
Uma longa trajetória do cinema brasileiro vem sendo montada abordando
esta dimensão política que envolve 1964. Os fuzis (1963),
de Ruy Guerra, antecipa a problemática do confronto entre grupos
sociais e militares. Uma série significativa de filmes retoma os
impactos do golpe, entre outros, O desafio (1965), de Paulo César
Saraceni, Jardim de guerra (1968) e Matou a família e foi ao cinema
(1991), de Neville de Almeida, Nunca fomos tão felizes (1984),
de Murilo Salles, o documentário Que bom te ver viva (1989), de
Lúcia Murat,O que é isso, companheiro? (1997), de Bruno
Barreto e Ação entre amigos (1998), de Beto Brant. O cineasta
Carlos Reichenbach vem criando expressivos filmes que tratam da formação
ideológica, do ativismo e do engajamento político marcando
a vida dos indivíduos e as dores do auto-exílio. Esse desnudamento
poético-cinematográfico dos conflitos políticos perpassando
a existência humana, na visão de Reichenbach, está
presente em Extremos do prazer (1983), Alma corsária (1993) e Dois
Córregos (1999).
Assim como ocorre na sociedade, o período da ditadura militar continua
repercutindo no cinema brasileiro. O golpe militar de 1964 é o
espectro hamletiano que constantemente entra em cena, permitindo que o
coletivo reflita sobre sua situação histórica.
A filmografia de Glauber Rocha esteve sempre voltada para as conturbadas
relações políticas brasileiras e, também,
as latino-americanas e terceiro-mundistas - afinal, supremos ditadores
e seus regimes baseados no personalismo, na intolerância e na violência
eclodem por toda a América Latina. Terra em transe, com todas as
suas revoluções formais, é pura realidade brasileira
recortada a partir do golpe de 1964. Em 1967, o cinema brasileiro respondeu
contundentemente a 1964 - e não parou mais neste caminho.
Terra em transe mostra o dilaceramento de um homem e de uma nação,
critica a inércia de um povo e expõe a falta de esperançano
futuro. Trata-se de uma obra que representa o desassossego do brasileiro
que se vê envolvido por políticos desprovidos do interesse
público, homens corruptíveis em defesa de seus interesses,
empresários frágeis que se entregam a pressões econômicas
das multinacionais, fantasmagóricas pressões internacionais,
uma igreja complacente, empresários da rádio e da televisão
que manipulam a opinião pública e por um povo e grupos sociais
sem consciência (será que este populismo, apontado por Glauber
Rocha, não encontraria seu contraponto, muitas décadas depois,
no Movimento dos Sem Terra - MST, que vem agitando o país de baixo
para cima?).
Algumas linhas da trama política que conduziu o país a 1964
estão presentes em Terra em transe. Os sujeitos sociais, econômicos
e políticos que agiam nas conjunturas políticas em torno
do golpe militar estão incorporados como metáforas nos personagens
Felipe Vieira (José Lewgoy), o político liberal, demagogo,
sem coragem para avançar nas reformas e limitado pelo medo de enfrentar
até o seu próprio grupo, Porfírio Diaz (Paulo Autran),
o líder de direita, conservador, golpista e defensor do lema "Deus,
pátria e família", Julio Fuentes (Paulo Gracindo),
o empresário nacional ligado às áreas das diferentes
produções econômicas e da indústria midiática,
D.
Fernandes, o presidente legal que será deposto e é sustentado
por interesses externos; Sara (Glauce Rocha), a militante disciplinada,
racional, que faz parte da máquina partidária e age individualmente
pensando que pode preparar o futuro, o dilacerado ativista Paulo Martins
(Jardel Filho), dividido entre a política e a poesia, entre a direita
e a esquerda e vivendo o conflito ação-conhecimento, e nas
referências dirigidas à Explint, a poderosa companhia internacional
de exportações.
No embate contra as dificuldades para dar sentido à política
e na crítica às ambigüidades e farsas dos políticos
que expressam a confusa realidade de Eldorado, Paulo Martins confessa
sua impotência: "Por mais de um século ninguém
conseguirá! (...) o abismo está aí". O ano de
1964 trouxe este desencanto do mundo e a descrença nos rumos da
história, tanto que este mesmo personagem afirma ainda que o povo
não pode acreditar em nenhum partido e também indaga sobre
a coerência da história.
O cenário deixado por 1964 é tão complexo que não
se pode mais compreender o Brasil pelo esquematismo binário. Não
se pode apostar no povo, nem no partido e menos ainda no intelectual.
E duvida-se da eficiência da luta armada. O golpe desestruturou
a maneira de pensar o Brasil, exigindo novas concepções
e posturas políticas, e interrompeu um sonho, instaurando uma longa
noite de pesadelo.
Terra em transe, com sua montagem radical e uso da câmera agitada
que dança no ritmo barroco, num fluxo desestruturante, assume a
confusão criada pela ditadura militar, demonstrando a difícil
tarefa de se pensar o Brasil nesta adversidade política. Aponta
tanto para esse mal-estar quanto para as incapacidades de os sujeitos
estruturarem ações políticas. Seus personagens e
situações são alegorias dos momentos históricos
que fizeram a década de 60. E, no final do filme, apresenta-se
dramaticamente o tema da luta armada. A ditadura militar reduziu os espaços
públicos e criou fortes mecanismos de repressão, provocando
a luta armada como a última esperança de reação.
Ao político-jornalista-poeta Paulo Martins, que queria mudar Eldorado,
resta a incógnita da via armada como resultado dos paradoxos por
ele experimentados: "Eu quero mudar Eldorado. Eu odeio Eldorado.
Estamos marchando para o abismo".
A política com freqüência pode deixar escapar a possibilidade
da continuidade institucional e quebrar o andamento democrático
- aí, então, a dimensão trágica da política
se explicita. A tragédia brasileira expressou-se em 1964, como
um intenso ponto de cristal cuja luz decompõe-se nos inúmeros
filmes que projetam os rumos históricos de um país.

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