É CARNE DE PESCOÇO
Dorothea Voegeli Passetti
Publicado na Revista Radar - janeiro de 2004
Notícias de canibalismo causam agitação: anunciam
que alguém transgrediu uma das mais graves proibições,
despertando lembranças ancestrais e desejos reprimidos. Produzem
ainda sentimentos de horror e repulsa, igualáveis aos desencadeados
pelo incesto. Ambos - canibalismo e incesto - parecem nos transportar
para estados supostamente anteriores ou exteriores à sociedade
e à cultura, aos quais a antropologia também se dirige.
Viajantes europeus dos séculos XVI e XVII como o artilheiro alemão
Hans Staden e o pastor francês Jean de Léry descreveram os
rituais antropofágicos tupinambá com grande riqueza de detalhes.
Jesuítas, como Antonio Vieira, designaram essas práticas
de "maus costumes", incluindo a poligamia, a nudez, as bebedeiras
e a vingança de sangue, que em vão tentaram combater. Apenas
quando foi decretado que índios canibais poderiam e deveriam ser
perseguidos, mortos ou escravizados, e os demais poupados, é que
a notícia dessa prática começou a diminuir: seja
porque passou a ser secreta, seja porque alguns notórios antropófagos,
como os Tupinambá habitantes de boa parte da costa brasileira,
tinham sido praticamente exterminados.
Selvagens
Michel de Montaigne publicou Ensaios em 1580. No seu interior pode-se
ler o opúsculo "Dos Canibais", em que afirma não
haver nada de bárbaro ou selvagem no que dizem desses povos. Sem
ter atravessado o Atlântico, e limitando-se a entrevistar marinheiros
e líderes tupinambá levados à França, Montaigne
criou a imagem do índio honrado e nobre que enfrenta o perigo com
coragem e encara sua própria execução como resultado
lógico e natural de sua condição de guerreiro. Quando
capturado pelos inimigos igualmente indígenas, o guerreiro era
morto e posteriormente comido por todos os membros - com exceção
de seu executor - e convidados da aldeia na qual estava aprisionado, num
ritual que seguia uma conhecida e rígida etiqueta. Antes de morrer,
ouvia o seu algoz dizer-lhe: "aqui estou eu, quero matar-te pois
tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos", ao
que ele respondia: "quando estiver morto, terei ainda muitos amigos
que saberão vingar-me". Cortado em pedaços e esfolado,
era assado num moquém, e todos apreciavam sua carne. A gordura
que escorria pelas ripas era recolhida pelas velhas e por elas consumida
com especial prazer. Das vísceras fazia-se um mingau para as crianças,
também apreciado pelas mulheres. O executor, entretanto, mantinha-se
afastado do banquete, porém incorporava o nome da vítima
como uma grande honra, sabendo que futuramente também seria vingado.
Dessa forma os Tupinambá ingeriam a alteridade inimiga, recriando
uma cadeia de relações que mantinha a sociedade viva.
A antropofagia tupinambá foi classificada como exocanibalismo:
come-se os outros. Contudo, há também o inverso: povos que
comem a si próprios praticando, assim, o endocanibalismo. Esse
é o caso dos Guayaki, povo caçador e nômade do Paraguai
que, na década de 1960, talvez tenha realizado seu último
banquete canibal. Eles também assavam o morto no moquém
e a carne era comida, com palmito, por todos a não ser pelos parentes
mais próximos: pai, mãe, irmãos e filhos. A gordura
também era o néctar das velhas. A cabeça era cozida
e comida pelos anciãos de ambos os sexos; o pênis era oferecido,
cozido, às mulheres grávidas, para que nascessem filhos
homens (caçadores) e o órgão sexual feminino era
enterrado. Quebravam-se os ossos, dos quais se tirava o tutano, e ao final
o crânio era triturado e queimado. Com a fumaça produzida
pelo fogo que reduzia a cinzas os restos do crânio, a alma do morto
- mero fantasma - viajaria para seu destino, o país dos mortos,
local para onde se recusaria a ir se ainda encontrasse algum vestígio
do corpo no qual poderia continuar a ficar preso aos vivos.
Os canibalismos exemplificados pelos Tupinambá e Guayaki se destacam
pelo fato deles considerarem a carne humana uma delícia, a melhor
das carnes, semelhante à do porco domesticado.
Civilizados
Mas há canibalismos praticados fora desse mundo indígena,
e este obviamente não se resume às fronteiras das Américas.
Canibalismos indígenas existiram (ou talvez continuem existindo)
como rituais dos quais participa toda a comunidade, praticados a partir
de regras conhecidas e respeitadas por todos, caracterizando-se pela ingestão
de toda a carne ou só de uma pequena parcela de ossos moídos,
transformando o ritual numa grande festa ou solenidade reservada aos parentes.
No canibalismo indígena jamais se mata para comer, saciar a fome
ou pelo desejo de carne humana, mesmo quando o banquete canibal é
apreciado como fina iguaria.
Fora desses limites, no mundo que se auto-proclama civilizado, o canibalismo
é considerado crime bárbaro e prática de anormais.
Se for realizado com a roupagem de algum ritual, geralmente está
ligado a alguma seita - às vezes identificada como satânica
-, e não é reconhecido como legítimo pelas normas
e leis, nem pelos valores das demais religiões. O canibalismo permanece
sendo associado a práticas ancestrais e costumes milenares e, por
essa via, a rituais exóticos de povos selvagens.
Hoje lemos nos jornais sobre canibalismo na Guerra do Congo, na Tchetchênia,
na China de Mao, de japoneses contra chineses durante a Segunda Guerra
Mundial e entre facções de prisioneiros durante rebelião
em presídio, no Brasil. Esses canibalismos são precedidos
de torturas e violências sexuais e não têm nada a ver
com fome ou algum ritual. São praticados por grupos que se devoram
uns aos outros como manifestação de terror, o oposto da
guerra Tupinambá.
Além desse terror, aparece o dos canibais individualizados, geralmente
classificados pelas civilizadas ciências como algum tipo de psicopatologia.
O Canibal de Milwaukee, de Minnesota (EUA), matou, violentou e comeu 17
rapazes adolescentes, supostamente seus jovens acompanhantes que morreram
para que não o abandonassem. Em 1992, ele foi condenado à
prisão perpétua, sem ser considerado insano. O Canibal de
Montana (EUA), acusado de pedofilia, serviu talharim com carne num jantar.
Possivelmente os convidados comeram um menino de 10 anos de idade e suspeita-se
que ele tenha devorado outras crianças, conforme noticiado pela
imprensa, no ano de 2001.
O Canibal de Rotenburg (Alemanha), apanhado pela polícia em dezembro
de 2001, explicita um novo acontecimento. De um lado, não há
mais arbitrariedade, mas o consentimento da vítima, levando à
combinação de canibalismo e autofagia numa única
prática. De outro, esta prática é explícita
e iniciada a partir de anúncios e conversas internáuticas
do canibal com possíveis candidatos ao festim. É um canibalismo
consentido pela "vítima", consensual a um grupo de pessoas
que compartilham de desejos semelhantes, mas inaceitável a uma
sociedade, que o rejeita, como qualquer outra forma de antropofagia.
Os canibalismos indígenas, por sua vez, eram consensuais no interior
de práticas que obedeciam a regras seguidas por todos. Seja para
vingar o guerreiro capturado e comido pelo inimigo, seja como forma de
lidar com as almas dos próprios mortos: comer gente era rotina.
Todo guerreiro sabia que seria comido e preferia que fosse assim; insuportável
era a idéia de ser devorado por vermes, com o próprio corpo
apodrecendo numa cova. Nesses casos comer é também prazer
e é nesse sentido que o verbo, não só em português,
se refere tanto à alimentação quanto ao sexo.
O canibalismo no caso Rotenburg não é mais o do terror,
mas o do consentimento entre algoz e vítima, em que ambos satisfazem
um particular desejo pela carne humana. Manifesta uma nova forma de realizar
o duplo sentido de comer. Outra coisa é o canibalismo de terror,
o das guerras, dos rituais de seitas, aquele que visa simplesmente imobilizar
o outro pelo medo, coletiva ou individualmente. Se há prazer nessa
prática e se ela mescla alimento e sexo, o faz mostrando a alarmante
atração pela morte.

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