Youtube Twitter Facebook
Artigos
Página Inicial | Artigos | É CARNE DE PESCOÇO

É CARNE DE PESCOÇO

Dorothea Voegeli Passetti
Publicado na Revista Radar - janeiro de 2004

 

Notícias de canibalismo causam agitação: anunciam que alguém transgrediu uma das mais graves proibições, despertando lembranças ancestrais e desejos reprimidos. Produzem ainda sentimentos de horror e repulsa, igualáveis aos desencadeados pelo incesto. Ambos - canibalismo e incesto - parecem nos transportar para estados supostamente anteriores ou exteriores à sociedade e à cultura, aos quais a antropologia também se dirige.

Viajantes europeus dos séculos XVI e XVII como o artilheiro alemão Hans Staden e o pastor francês Jean de Léry descreveram os rituais antropofágicos tupinambá com grande riqueza de detalhes. Jesuítas, como Antonio Vieira, designaram essas práticas de "maus costumes", incluindo a poligamia, a nudez, as bebedeiras e a vingança de sangue, que em vão tentaram combater. Apenas quando foi decretado que índios canibais poderiam e deveriam ser perseguidos, mortos ou escravizados, e os demais poupados, é que a notícia dessa prática começou a diminuir: seja porque passou a ser secreta, seja porque alguns notórios antropófagos, como os Tupinambá habitantes de boa parte da costa brasileira, tinham sido praticamente exterminados.

 

Selvagens

Michel de Montaigne publicou Ensaios em 1580. No seu interior pode-se ler o opúsculo "Dos Canibais", em que afirma não haver nada de bárbaro ou selvagem no que dizem desses povos. Sem ter atravessado o Atlântico, e limitando-se a entrevistar marinheiros e líderes tupinambá levados à França, Montaigne criou a imagem do índio honrado e nobre que enfrenta o perigo com coragem e encara sua própria execução como resultado lógico e natural de sua condição de guerreiro. Quando capturado pelos inimigos igualmente indígenas, o guerreiro era morto e posteriormente comido por todos os membros - com exceção de seu executor - e convidados da aldeia na qual estava aprisionado, num ritual que seguia uma conhecida e rígida etiqueta. Antes de morrer, ouvia o seu algoz dizer-lhe: "aqui estou eu, quero matar-te pois tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos", ao que ele respondia: "quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me". Cortado em pedaços e esfolado, era assado num moquém, e todos apreciavam sua carne. A gordura que escorria pelas ripas era recolhida pelas velhas e por elas consumida com especial prazer. Das vísceras fazia-se um mingau para as crianças, também apreciado pelas mulheres. O executor, entretanto, mantinha-se afastado do banquete, porém incorporava o nome da vítima como uma grande honra, sabendo que futuramente também seria vingado. Dessa forma os Tupinambá ingeriam a alteridade inimiga, recriando uma cadeia de relações que mantinha a sociedade viva.

A antropofagia tupinambá foi classificada como exocanibalismo: come-se os outros. Contudo, há também o inverso: povos que comem a si próprios praticando, assim, o endocanibalismo. Esse é o caso dos Guayaki, povo caçador e nômade do Paraguai que, na década de 1960, talvez tenha realizado seu último banquete canibal. Eles também assavam o morto no moquém e a carne era comida, com palmito, por todos a não ser pelos parentes mais próximos: pai, mãe, irmãos e filhos. A gordura também era o néctar das velhas. A cabeça era cozida e comida pelos anciãos de ambos os sexos; o pênis era oferecido, cozido, às mulheres grávidas, para que nascessem filhos homens (caçadores) e o órgão sexual feminino era enterrado. Quebravam-se os ossos, dos quais se tirava o tutano, e ao final o crânio era triturado e queimado. Com a fumaça produzida pelo fogo que reduzia a cinzas os restos do crânio, a alma do morto - mero fantasma - viajaria para seu destino, o país dos mortos, local para onde se recusaria a ir se ainda encontrasse algum vestígio do corpo no qual poderia continuar a ficar preso aos vivos.

Os canibalismos exemplificados pelos Tupinambá e Guayaki se destacam pelo fato deles considerarem a carne humana uma delícia, a melhor das carnes, semelhante à do porco domesticado.

Civilizados

Mas há canibalismos praticados fora desse mundo indígena, e este obviamente não se resume às fronteiras das Américas. Canibalismos indígenas existiram (ou talvez continuem existindo) como rituais dos quais participa toda a comunidade, praticados a partir de regras conhecidas e respeitadas por todos, caracterizando-se pela ingestão de toda a carne ou só de uma pequena parcela de ossos moídos, transformando o ritual numa grande festa ou solenidade reservada aos parentes. No canibalismo indígena jamais se mata para comer, saciar a fome ou pelo desejo de carne humana, mesmo quando o banquete canibal é apreciado como fina iguaria.

Fora desses limites, no mundo que se auto-proclama civilizado, o canibalismo é considerado crime bárbaro e prática de anormais. Se for realizado com a roupagem de algum ritual, geralmente está ligado a alguma seita - às vezes identificada como satânica -, e não é reconhecido como legítimo pelas normas e leis, nem pelos valores das demais religiões. O canibalismo permanece sendo associado a práticas ancestrais e costumes milenares e, por essa via, a rituais exóticos de povos selvagens.

Hoje lemos nos jornais sobre canibalismo na Guerra do Congo, na Tchetchênia, na China de Mao, de japoneses contra chineses durante a Segunda Guerra Mundial e entre facções de prisioneiros durante rebelião em presídio, no Brasil. Esses canibalismos são precedidos de torturas e violências sexuais e não têm nada a ver com fome ou algum ritual. São praticados por grupos que se devoram uns aos outros como manifestação de terror, o oposto da guerra Tupinambá.

Além desse terror, aparece o dos canibais individualizados, geralmente classificados pelas civilizadas ciências como algum tipo de psicopatologia. O Canibal de Milwaukee, de Minnesota (EUA), matou, violentou e comeu 17 rapazes adolescentes, supostamente seus jovens acompanhantes que morreram para que não o abandonassem. Em 1992, ele foi condenado à prisão perpétua, sem ser considerado insano. O Canibal de Montana (EUA), acusado de pedofilia, serviu talharim com carne num jantar. Possivelmente os convidados comeram um menino de 10 anos de idade e suspeita-se que ele tenha devorado outras crianças, conforme noticiado pela imprensa, no ano de 2001.

O Canibal de Rotenburg (Alemanha), apanhado pela polícia em dezembro de 2001, explicita um novo acontecimento. De um lado, não há mais arbitrariedade, mas o consentimento da vítima, levando à combinação de canibalismo e autofagia numa única prática. De outro, esta prática é explícita e iniciada a partir de anúncios e conversas internáuticas do canibal com possíveis candidatos ao festim. É um canibalismo consentido pela "vítima", consensual a um grupo de pessoas que compartilham de desejos semelhantes, mas inaceitável a uma sociedade, que o rejeita, como qualquer outra forma de antropofagia.

Os canibalismos indígenas, por sua vez, eram consensuais no interior de práticas que obedeciam a regras seguidas por todos. Seja para vingar o guerreiro capturado e comido pelo inimigo, seja como forma de lidar com as almas dos próprios mortos: comer gente era rotina. Todo guerreiro sabia que seria comido e preferia que fosse assim; insuportável era a idéia de ser devorado por vermes, com o próprio corpo apodrecendo numa cova. Nesses casos comer é também prazer e é nesse sentido que o verbo, não só em português, se refere tanto à alimentação quanto ao sexo.

O canibalismo no caso Rotenburg não é mais o do terror, mas o do consentimento entre algoz e vítima, em que ambos satisfazem um particular desejo pela carne humana. Manifesta uma nova forma de realizar o duplo sentido de comer. Outra coisa é o canibalismo de terror, o das guerras, dos rituais de seitas, aquele que visa simplesmente imobilizar o outro pelo medo, coletiva ou individualmente. Se há prazer nessa prática e se ela mescla alimento e sexo, o faz mostrando a alarmante atração pela morte.

compartilhe
Neamp - Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política    Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001    São Paulo - SP - Brasil    Tel/Fax.: (55 11) 3670 8517    neamp@pucsp.br
Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) de Miguel Chaia e Vera Lúcia Michalany Chaia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Unported. Based on a work at www.pucsp.br. Permissions beyond the scope of this license may be available at http://www.pucsp.br.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Design DTI-NMD