Uma mulher no poder: Lady Macbeth*
Syntia Pereira Alves**
Lady Macbeth, personagem de William Shakespeare em Macbeth, é pensada,
via de regra, como uma coadjuvante da trama onde o súdito, Macbeth,
se torna conde e assassina o rei para obter-lhe a coroa. Até o fato
de Lady levar o nome do marido, ser a Senhora Macbeth, pode ser pensada
como uma prova de seu papel secundário, ela seria apenas a esposa
de Macbeth. Mas Shakespeare pode também ter dado à ela uma
outra parte de Macbeth, ambos se complementando, e a parte que fica para
esta senhora não é simplesmente o da Eva que oferece a maçã
em forma de punhal ao Adão Macbeth. Lady Macbeth é, sem dúvida,
uma personagem poderosa, a força que cria a ação trágica
da peça.
O poder de Lady Macbeth não está no fato dela ter se tornado
uma rainha, uma mulher politicamente poderosa, mas está no fato dela,
num primeiro momento já fugir dos estereótipos burgueses onde
as mulheres são cristalizadas: Lady Macbeth não é nem
a mulher assexuada, mãe, símbolo do bem e nem a mulher diabólica,
pecadora que atrai os homens para o submundo onde ela vive. Ambos os papéis
são de mulheres submissas e em nenhum destes lugares se encaixa a
personagem, que é uma heroína, uma guerreira, uma personagem
onde Shakespeare mostrou reconhecer as energias e aspirações
femininas em conflito com o isolamento que se esperava que elas tivessem
em uma época ainda muito marcada por masculinos.
Mulheres poderosas são insuportáveis. Mulheres que se interessam
pelo mundo masculino e se mostram racionais e não passionais são
extremamente insuportáveis. Uma mulher como a personagem Lady Macbeth,
que se mostra capaz de todos os atos para obter o que deseja, que manipula
seu marido induzindo-o a matar pelo poder e trono do reino, Lady não
usa seu poder agindo, matando, guerreando ou em qualquer ação
da esfera política. Lady Macbeth é a personagem da peça
que pensa e induz a ação, que utiliza seu poder e seu conhecimento
sobre o marido para manipulá-lo e guia-lo a fazer suas vontades,
é ela quem não se conforma por estar numa posição
que desagrada. O amor que existe em Lady Macbeth é pelo poder,
que no decorrer da peça também invade seu marido.
Numa concepção moderna de política como forma de
assegurar o bem comum, medidas violentas são consideradas como
monstruosas, a não ser que a violência seja usada como medida
punitiva aos infratores ou inimigos do estado e da sociedade. Isso certamente
caracteriza nossa personagem como uma assassina fria e a descaracteriza
como uma agente da política que utiliza seu poder para alcançar
seus desejos. Mas, pensando como Foucault, a política nasce quando
há conflito, o que aniquila a idéia de condutas isentas
de interesses pessoais ou as ações inocentemente voltadas
para o bem comum. A política surge quando é instaurado o
poder e quando este poder instaurado não admite contestação.
Poder é impor sua vontade acima da vontade dos outros, tornando
a política algo insano e sem regras. Lady Macbeth agiu politicamente,
conquistou o seu poder, o impôs sobre a vida do rei sem pensar em
moralidades ou um bem que não fosse o seu..
Se Macbeth é o protagonista da peça, é Lady Macbeth
quem inicia a ação, é ela quem cria a trama, quem
arma a ação política e ressalta o caráter
amoral, mostrando mais vontade de ocupar o trono do que seu marido. Enquanto
Macbeth vive o conflito de valores ambíguos e morais, Lady Macbeth
vem como expressão trágica da tensão entre o velho
e o novo, aquele que almeja e luta pelo poder. A nossa personagem carrega
uma amoralidade política entendida por Maquiavel como um dos meios
de se tornar um príncipe, ou seja, fazendo uso da perversidade,
meios criminosos, sem problemas em serem contrários às leis
humanas e divinas.
Muito dos atos de Lady Macbeth seriam legitimados por Maquiavel, pois
ela soube aplicar muito do que este disse, como a conquista do poder com
a matança de concidadãos, a traição de amigos,
a falta de fé, piedade e religião. Lady Macbeth agiu desta
maneira, como disse Maquiavel, "mesmo que não possa chamar
isso tudo de valoroso". Se Maquiavel afirmava que um príncipe
devia aprender a ser mau, Lady Macbeth sabia disso muito antes de se tornar
rainha e fez uso da maldade para conseguir seu objetivo.
Lady Macbeth é o vetor de força da peça, é
ela quem age por criar toda a situação, que articula o mal
que lhe trará o bem desejado. Para Harold Bloom, o casal Macbeth
nada tem de demoníaco, como pode parecer por todas as mortes e
poder que eles almejam, e segundo Bloom, nos identificamos com eles até
em seus atos aterrorizante, nos identificamos com Lady Macbeth por sua
pura vontade que faz o mal que desejamos parecer um bem. Há um
pouco de Lady Macbeth em cada um de nós, porém nossa moral
não nos permite admitir.
Os personagens shakespeareanos trágicos têm a moral do guerreiro
em oposição a do escravos, pois não se mostram ressentidos
com a vida nem com seus infortúnios, mas dizem Sim a tudo o que
lhes vem como um "dizer Sim sem reservas, ao sofrimento mesmo, à
culpa mesmo, a tudo o que é estranho e questionável na existência
mesmo... Não há que desconsiderar nada do que existe, nada
é dispensável", como pensou Nietzsche. Lady Macbeth
não desconsiderou nada, abraçou todas as possibilidades
Nem a beleza eterna das deusas ou o poder demoníaco das bruxas
pode ser descartados ou senhores totais de uma personagem feminina, elas
têm poder principalmente para transitar de um pólo a outro.
Lady Macbeth soube ser esposa e estrategista ao mesmo tempo, se valendo
de todas as possibilidades. As articulações racionais não
são na peça uma especificidade masculina e nem a mulher
da peça é carregada de emoção ou tem suas
ações guiadas pelo marido. Lady é a cabeça
pensante da peça, fato que a tira da borda da peça levando-a
para o centro da ação, ao mesmo tempo ela é racional
por calcular todo o assassinato do rei, é passional em sua ânsia
pelo poder. Como os personagens de Shakespeare vão além
do bem e do mal, estes espelham as artimanhas políticas que também
desconhecem regras.
Ao final da peça tanto Macbeth quanto Lady são eliminados,
porém, em nenhum momento se vê a redenção de
nenhum dos dois personagens. Se o bem volta a reinar na política,
isso não é colocado como o único meio dela ou seu
fim; por não ser estática e nem haver uma moral na política,
o mesmo mal que destrói é aquele que gerará o bem.
A reflexão de bem e mal na conclusão da trama não
fica por conta do casal Macbeth.
E, aqueles que pensam que as mulheres, assim como Lady Macbeth, são
as eternas pacifistas e mães ou as criaturas simplesmente más
pelos seus atos e intenções, certamente acreditam no que
Nietzsche chamou de pretensiosa mentira da civilização em
oposição a verdadeira natureza humana.
** Syntia Pereira Alves - mestranda do Programa de Estudos Pós-graduados
em Ciências Sociais, e membra do NEAMP (Núcleo de Estudos
em Arte, Mídia e Política), Departamento de Política,
Faculdade de Ciências Sociais.
Referências Bibliográficas:
BLOOM, Harold - Shakespeare: a invenção do humano - Editora
Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.
CHAIA, Miguel - "A natureza política de Shakespeare e Maquiavel",
in: Revista de Estudos Avançados (9) 23, 1995, São Paulo,
Ed. Ediusp.
NIETZSCHE, Friendrich - Ecce Homo - Como alguém se torna o que
é, 2003, São Paulo, Cia das Letras
SHAKESPEARE, Willian - Macbeth, Ed. Ediouro, Rio de Janeiro, 1954.
* Comunicação apresentada em 17/08/04, na XII ª Semana de Ciências Sociais da PUC-SP/ 2004 no Grupo de Trabalho: Linguagens e estéticas transversais
** Syntia Pereira Alves - mestranda do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, e membra do NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política), Departamento de Política, Faculdade de Ciências Sociais.

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