A peça Ricardo III e os elementos políticos (pós) modernos
José Renato Ferraz da Silveira
A peça Ricardo III, escrita entre 1592 e 1593, por William Shakespeare
trata de uma rica, intricada e complexa rede de temas pertinentes à
Teoria política: intrigas; conspirações; comportamentos
políticos; conflitos de poder; diálogos embebidos de retórica,
persuasão e convencimento político; discursos de guerra;
coalizões; violência; astúcia; dissimulação;
incertezas; a inevitabilidade do Acaso; as qualidades, virtudes (virtú)
e os vícios do príncipe; a potência do agir; audácia;
a configuração da tragédia política moderna. A peça tem no seu conteúdo dramático as formas nas
quais se revelam as práticas coletivas dos meandros do poder e
das ações sociais. Um jogo posto em cena a fim de mostrar
os jogos da sociedade que a fazem e desfazem.
Ricardo III é uma peça, que faz parte dos Dramas Históricos
- ao todo são nove - constituí-se como a tetralogia da Guerra
das Duas Rosas, gozando de popularidade pelo seu vigor e temática
envolvente. A frase "Meu reino por um cavalo" se popularizou
ao redor do mundo. Esta é uma das célebres frases das peças
de Shakespeare. E foi proferida por Ricardo III, personagem da peça
que leva seu próprio nome.
O dramaturgo inglês acaba por conceber uma visão política
ao teatro. Antes dele, a ação dramática tinha como
tema central o relacionamento dos homens com o divino (principalmente
os gregos) e, num segundo plano, com a sociedade e com o Estado. Ele inverte
o tema de secundário para central.
A dimensão trágica da/na política está presente
na maioria das peças de Shakespeare, nas quais o bardo, chamado
de "Cisne de Avon" por Victor Hugo, expressa as tensões
e os paradoxos que atravessam a esfera do poder político; o potencial
com que a Política pode contribuir ou impedir a melhoria da condição
humana. "O político não desaparece, ele muda de forma;
ele não desaparece porque ele é indissociável do
trágico sempre presente, em todos os momentos e em todas as sociedades"
(Balandier, 1999: 148).
A essência da tragédia na política está na
tensão entre suficiência e insuficiência para permitir
um futuro esperançoso. A fonte principal da tragédia shakespeariana
foi precisamente à ênfase na queda de homens famosos. Uma
das novidades da nova perspectiva de compreensão da política
é, portanto, o reconhecimento da permanência do conflito.
Não se trata mais de sonhar com sociedades estáticas nas
quais se realizaria de uma vez por todas o ideal de estabilidade ao se
alcançar à realização do bem comum. O que
está se configurando na modernidade é um novo conceito de
ordem, não mais uma ordem estática estabelecida a partir
de hierarquia prefixada, mas a ordem mundana das relações
sociais, ordem construída pelo homem. Mais ainda, essa ordem racional
deve ser projeto do Estado.
Caracterizar, portanto, a política moderna é entendê-la
como jogo de forças opostas resultantes dos inconciliáveis
desejos humanos. A política, como atividade tipicamente humana,
é marcada a partir da modernidade, tanto nas peças de Shakespeare,
como nos escritos de Maquiavel, como a inevitabilidade do conflito. Tal
"choque de interesses" é inerente ao jogo político
e evidencia o caráter trágico ao revelar as contradições
e os paradoxos deste.
A política, em Shakespeare, nos mostra as (des) ordenadas crises
(ciclos de poder - alternância de enfraquecimento e fortalecimento
da autoridade) em que o grupo de indivíduos se depara e a busca
de soluções por parte destes homens que atuam no círculo
(reino) da política.
Shakespeare amplia e realiza uma leitura de política se remontando
a um período específico, ao criar artisticamente (peças
teatrais), num contexto histórico marcado por profundas mudanças,
em que o novo ainda não havia surgido e o velho ainda não
havia morrido, nesse sentido, num processo de instauração
da modernidade.
Ricardo III é uma peça carregada de signos, significados,
valores pertencentes ao Renascimento, período histórico
que rompe com o mundo medieval - sociedade agrária, estamental,
teocrática e fundiária - mas que contém em seus desdobramentos,
elementos políticos fundamentais (como os citados no princípio
deste artigo e em negrito) e ainda mais, tão contemporâneos,
a ponto de termos (possíveis) parâmetros de análise
para entender os impasses e as rupturas do pensamento político
atual. Apesar das ambigüidades e incertezas (a auto-eternizante incerteza)
da vida pós-moderna, Shakespeare produziu uma peça histórica
renascentista, mas que segundo Ben Jonson pertence a todas as épocas,
representando de modo peculiar o imanente significado real da política.

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