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Surto agudo da doença crônica

Carlos Alberto Furtado de Melo

 

O doutor José Vigorito Neto era um médico imunologista que tratava seus pacientes buscando encontrar a doença crônica, mais recôndita, que os abalava. Descobri-la e identificá-la, significava combatê-la com maior eficácia; desenvolver uma vacina que a eliminasse do corpo do enfermo e dar vida saudável ao indivíduo era seu objetivo. Assim, os momentos de maior crise porque seus pacientes passavam eram compreendidos como manifestação de males desde sempre presentes que denunciariam as suas origens e possivelmente o seu remédio. Seriam surtos que dariam ao médico e ao paciente as condições para o avanço no tratamento, procurando, se não a cura, pelo menos o paliativo mais eficaz. O Dr. Vigoritto salvou muita gente e, hoje, sua filha, a Dra. Maria Ângela, continua seu trabalho. Certamente, o médico jamais pensou numa analogia de sua ciência com a política brasileira do primeiro decênio do século XXI. Mas uma e outra guardam, sim, relações. Os escândalos, desacertos, desencontros e desatinos da política nacional desses últimos meses expõem aquilo que o Dr. Vigoritto, se cientista político fosse, classificaria como um “surto agudo da doença crônica”. Vivemos, portanto, um momento de tensão, favorável, no entanto, para que se repensa o sistema e se busque a sua vacina.

 

Antes de tudo, é preciso dizer que ainda estamos bem. Quem olha o país com perspectiva histórica reconhece que houve um inegável avanço institucional. O Brasil de hoje é melhor do que há 20 anos, do que há 15 anos, do que há 10 anos e é mesmo possível que seja melhor do que há 3 anos. Mesmo o ano de 2003 se apresentou como uma relativa surpresa para quem não compreendia ou desconfiava do Partido dos Trabalhadores no poder. O governo Lula – que era uma incógnita – demonstrou um saudável senso de responsabilidade e pragmatismo. Há pouquíssimas semanas, o país parecia caminhar muito bem e as instituições mostravam-se fortalecidas. No entanto, nos últimos dias, uma névoa de incerteza tem pairado e alguns atores econômicos e financeiros pressentem que, mais dia menos dia, voltarão a desconfiar do Brasil. Desde a derrota do governo na eleição para a mesa diretora da Câmara dos Deputados, a turbulência tomou conta da cena política. Sem controle por parte do governo, os deputados aprovaram projetos que elevam os gastos e prejudicam a perspectiva de desenvolvimento sustentável e continuado. Em paralelo, o Executivo federal tem claudicado com o rigor fiscal que apresentou no primeiro ano do governo Lula.

 

A explicação deste fenômeno é relativamente simples. Houve modernização institucional sim, mas ela ainda não se completou. O círculo virtuoso se completará também com a imprescindível reforma do sistema partidário brasileiro e isto ainda não ocorreu. Pode-se dizer que o sistema partidário reluta e se modernizar e está doente, embora alguns analistas prefiram atribuir culpas aos governos que se sucedem. É compreensível, afinal, ao seu modo o sistema funciona: temos eleições regulares e amplas; os cidadãos podem votar e ser votados; os partidos estão (todos) na legalidade; as pessoas votam efetivamente e a ação do Poder Executivo tem centralidade dentro dos modelos de raciocínio desses analistas. Formalmente, o sistema partidário caminha, mas evolui menos que o restante das instituições. Todavia, o chamado presidencialismo de coalizão necessita da formação de maiorias no Congresso e, na impossibilidade de conquistá-las nas urnas pela vontade do eleitor, os governos as constroem pelo processo de negociação no parlamento. Para isto, busca costurar acordos por meio dos partidos políticos – instrumentos clássicos de representação social. Mas, gradativamente, os partidos nacionais têm perdido a capacidade de coesão, a unidade e mesmo a representatividade.

 

Por conta disto, as maiorias construídas pelos governos são inevitavelmente mais ou menos caóticas. Da democratização para cá, todos os governos, sem exceção, tiveram enorme dificuldade para consolidar maioria. Como regra, o fizeram por meio do contato direto com parlamentares, acima e até a despeito dos partidos. O processo de negociação é, por isso, interminável de modo a que cada parlamentar ache-se no direito de apresentar suas demandas, legítimas ou não, diretamente ao Executivo. Considerada a heterogeneidade de nosso país, essas demandas tornam-se também bastante heterogêneas e, às vezes, até mesmo heterodoxas e moralmente questionadas. Como resultado, a primeira vítima deste processo é, naturalmente, a racionalidade econômica e o erário público e, por decorrência, a sociedade que o financia (pagando impostos) ou que dele necessita como instrumento de distribuição de renda.

 

A diversidade dessas demandas e a grande autonomia dos parlamentares em relação aos partidos, colocam, de quando em quando, o sistema em colapso: sem estabilidade, com pouco sentido de coerência, fortemente vinculado ao fisiologismo e altamente desprestigiado pela população. Os exemplos são vários: o PMDB é um partido da base ou da oposição ao governo? O mais provável é que o próprio PMDB jamais consiga se definir sobre isto. O partido não possui unidade interna para ser ou para não ser oposição. E não se trata de um caso particular. Vários partidos (temos muitos), diante dessa espécie de dilema hamletiano (“ser ou não ser”), resolvem “ser e não ser”. Há uma ambigüidade geral e irrestrita. Eis a questão! Há um considerável descolamento em relação à sociedade. Até mesmo o mais orgânico deles, o PT, sofre dessa esquizofrenia de ser e não ser governo e por isso vai perdendo a clareza estratégica do passado e o reconhecimento das bases sociais. A idéia de um partido uno, coerente e representativo se desgasta.

 

As siglas partidárias deixam de ser facilmente distinguíveis de todo emaranhado. Grosso modo, poderíamos dizer que o sistema partidário, ao nível federal, pode ser classificado em quatro grandes blocos: 1) o Republicano Modernizador ; 2) o Anacrônico de Esquerda ; 3) o Pluto-Oligárquico de direita (igualmente anacrônico); e 4) o De Caráter Nitidamente Fisiológico (pragmaticamente situado ao centro-flexível, local em que sobras e restos interessam). Uma explicação bastante plausível diria que nos últimos anos o bloco Republicano Modernizador tem avançado, ao custo de se aliar aos setores De Caráter Nitidamente Fisiológico . O anacronismo esquerdista, com a assunção de Lula ao poder, passou por enorme esvaziamento e o bloco Pluto - Oligárquico se viu em profunda crise de sentido, uma vez que perdeu a interlocução com vários setores sociais e do Estado que se modernizaram no mesmo roldão das instituições.

 

Desse modo, a real doença crônica do sistema partidário, como diria o Dr. Vigoritto, parece residir em, pelo menos, três grandes anomalias:

 

a) a continuada perda de unidade das siglas partidárias . Em cada legenda, o analista poderá encontrar elementos dos blocos aqui indicados, o que desvitaliza o potencial das direções partidárias e mesmo das lideranças de bancada. Os alinhamentos tornam-se muito menos partidários para se fundirem em interesses antes difusos. A crença, frustrada, de que os deputados Delfim Neto e Francisco Dornelles, por serem medalhões do partido do novo presidente da Câmara, o PP, tivessem sobre ele decisiva influência mostra-se como o mais eloqüente exemplo desses novos alinhamentos. João Caldas, deputado pelo PL Alagoano (em tese, distante de Severino), por estar situado no mesmo bloco ( De Caráter Nitidamente Fisiológico) , apresenta melhores e maiores condições de influenciar o presidente do que se pode esperar de Delfim e Dornelles;

 

b) o jogo de soma zero do bloco Republicano Modernizador . Trata-se de um agrupamento político que guarda relativa identidade programática e considerável potencial reformador. Seus integrantes são oriundos de setores políticos comuns e mantém histórias individuais assemelhadas. Ainda assim, tendem à dispersão. Divididos em disputas regionais e de olho nas eleições de 2006, os membros desse bloco (majoritariamente do PT e do PSDB, mas presentes também em outras legendas) não encontram meio de juntar vontades, construir consensos e caminhar programaticamente. Anulam-se, no final das contas. Assim, o caso Waldomiro Diniz acabou por se transformar no símbolo da discórdia entre os atores políticos que compõem esse bloco. O imbróglio conseguiu melindrar aqueles buscavam aproximações, como também serviu de pretexto para quem operava o esfacelamento e a inviabilidade desse grupo. Logicamente, essa divisão retira do setor Republicano Modernizador a capacidade de construir um processo de reformas e conduzi-lo. Pela incapacidade agrupar-se e construir programas unificados, os republicanos modernizadores acabam conduzidos pelos fisiológicos, pelos ventos e por uma fortuna desprovida de virtù ;

 

c) a apatia de externalidades corretivas . É evidente que o sistema terá que se corrigir. O caos é a negação da política, logo ele não prospera infinitamente em ambientes políticos. Isto, porém, pode se dar com maior ou menor rapidez: meses, anos ou décadas. Como a fragmentação partidária não permite que a reorganização se dê pela via dos partidos e o jogo de soma zero não possibilita a formação de consensos acima das siglas, a tendência é que a correção de rumos se dê em prazos sempre mais longos que o desejável e recomendável. Esta pode, inclusive, ser a origem das dificuldades que o presidente Lula encontrou para realizar a sua segunda reforma ministerial – cujos objetivos são reaglutinar a base política, reorganizar o governo e sedimentar as alianças (com os partidos) para 2006. A propósito, as críticas ao chamado “processo indecisório” do presidente são em grande medida justas, mas também é importante reconhecer que este estado de coisas contribui, e muito, para isto. O governo fica à mercê do grupo De Caráter Nitidamente Fisiológico. Este passa a exigir espaços sempre maiores, ministérios com “porteira fechada”, liberação de verbas e que tais. O processo de negociação, assim, parece estender-se ao infinito, ao mesmo tempo em que o Executivo é atingido e desgastado nos flancos pelo Anacronismo de Esquerda e pela Pluto-Oligarquia . O governo perde a capacidade de direção, passando a ser conduzido ao invés de conduzir, sem conseguir emplacar uma agenda positiva.

 

O bloco De Caráter Nitidamente Fisiológico , no entanto, não exibe condições políticas, intelectuais e nem legitimidade para formular projetos e nem de conduzir indefinidamente o processo político. Além disso, possui enorme propensão ao açodamento e uma forte tendência de ir com muita sede ao poste, passando de todos os limites aceitáveis pela opinião pública. Paradoxalmente, é o setor com maior potencial para mobilizar a opinião pública, pelo seu contrário, pelo asco e pela repulsa que estimula. Atualmente, seus exageros já se mostram tão evidentes que o próprio Senado Federal se mobiliza como um corretor das posturas da Câmara. Mas apenas o Senado Federal não bastará como moderador definitivo dessa anomalia, até mesmo porque nele também se encontram todos os problemas aqui mencionados. A própria sociedade – inclua-se aí o mercado – precisará exercer o papel de pressão sobre este processo. Ainda apática e desorganizada, é a sociedade não deixa de ser o elemento capaz de pressionar governos e partidos. A sociedade seria, assim, a possibilidade de produção de anticorpos contra esta doença. Todavia, o grau de agudeza desse surto ainda não parece ser suficiente para isto. Por enquanto, os microorganismos continuam avançando e debilitando o doente ao passo que a sociedade encara este processo com enorme enfado.

 

Por enquanto, bactérias oportunistas debilitam o paciente, aprofundam o estado crônico, tornando-o agudo. As vacinas não são realmente fáceis de se desenvolver, mas teriam como meta a correção das anomalias: a reorganização dos partidos, o restabelecimento do diálogo e projetos no âmbito do bloco Republicano Modernizador e, evidentemente, a elevação da pressão social buscando a substancial melhoria da eficiência do sistema. Desse modo, o surto, por expor evidentes riscos ao sistema e mobilizar os recursos para a sua correção, pode ser algo salutar ao fim e ao cabo do processo. É importante que o doente agüente firme. Como possivelmente diria o Dr. Vigorito, o surto “é ruim, mas é bom”.

 

Carlos Alberto Furtado de Melo , Cientista Político, Doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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