EMBRAFILME e ANCINAV: temas para a construção de um diálogo
Telmo Antonio Dinelli Estevinho *
A transformação das regras que regem as formas de atuação do campo cultural não tem sido tarefa tranqüila para os administradores da Cultura no Brasil, seja em âmbito federal, estadual ou municipal. Na ausência de uma política cultural consistente e abrangente em relação à complexidade encontrada no campo da cultura e das artes, têm-se verificado a instabilidade e a ruptura como práticas usuais na relação Estado e Cultura. Este padrão não atende tanto às especificidades do campo cultural – que tende a valorizar a inovação e a ruptura – mas sim ao espaço ocupado pela política cultural e especialmente ao prestígio a ela concedido pelas instâncias de poder político.
Entre 2003-2004, estimulados pela mudança de governo com a ascensão do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República, os agentes do campo cultural reforçaram suas posições no sentido de renovar – ou também para conservar – as regras e disposições que formatam este campo. O objetivo deste artigo é acompanhar a luta política que envolveu a possibilidade de transformação dos mecanismos que sustentavam o setor de cinema e audiovisual no país, observando o comportamento dos agentes envolvidos – cineastas, produtores de cinema, técnicos governamentais, entre outros – na aceitação ou recusa destes padrões regulatórios ou disciplinares produzidos pelo governo federal. A observação é o mecanismo utilizado para produzir um contraste entre as práticas dos atores diante de diferentes formatações do poder político, ou seja, a análise procurou acompanhar a luta política que envolveu o Cinema Brasileiro durante o primeiro governo democrático (1985-1989), apontando a existência de traços de continuidade na gestão federal da cultura atualmente em curso. Os dois períodos históricos justificam-se pela notória ênfase nas reformas e pela possibilidade de transformação das regras que contemplam a política cultural, o que acentua a tensão e impulsiona os atores do campo cinematográfico à luta política. Entendemos aqui por Cinema Brasileiro como um conjunto de práticas específicas, padrões de comportamento e regras estéticas que valorizam um determinado formato de obra cinematográfica – o longa-metragem de ficção -, valores comuns aos agentes do campo cinematográfico que detém acesso privilegiado ao poder político e suas instâncias de decisão. (1)
O que nesta análise aproxima dois momentos históricos tão distintos é a tentativa de estabelecer regulamentos e regras para o setor: de um lado, cineastas que no início da Nova República (1985-1989), por meio de uma Política Nacional de Cinema (PNC), procuraram redesenhar todo o quadro institucional da política cinematográfica herdada do regime militar; de outro lado, quase dez anos depois, o Ministério da Cultura (MINC) lançava em 2004 um anteprojeto de lei criando a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (ANCINAV). Em ambos os momentos, o campo cinematográfico foi um espaço em que a luta política pelo acesso aos canais que definem o poder decisório se sobrepunha aos conflitos envolvendo hegemonias estéticas. Neste aspecto, desde os anos sessenta que um modelo de filme é consensualmente aceito, ainda que tal definição seja bastante imprecisa. Mesmo assim, esta definição é suficiente para orientar os atores do campo de que há uma perspectiva autoral cercando a criação da obra cinematográfica e que se coloca acima dos critérios comerciais. Este modelo prevalece nas cinematografias nacionais onde a presença do Estado significa uma forte indução para o financiamento e circulação de filmes.
No Brasil, o regime militar (1964-1984) foi o principal construtor institucional dos mecanismos de sustentação do Cinema Brasileiro, seja por meio de uma extensa legislação sobre o tema quanto por meio da produção direta de filmes. Com a criação da Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME), em 1969, o Estado induzia os atores do campo cinematográfico à luta política – não mais centrada nos critérios estéticos, pois o modelo de filme já estava definido – mas sim para temporalizar e reproduzir tal modelo na mesma medida em que se vinculavam aos canais de acesso ao poder decisório da administração federal.
A EMBRAFILME e o Conselho Nacional de Cinema, CONCINE, criado em 1975, tornaram-se suportes indispensáveis para a expansão da produção cinematográfica nacional, questionando a legitimidade e a presença do filme estrangeiro no mercado brasileiro. Durante a gestão do cineasta Roberto Farias na direção-geral da EMBRAFILME (1975-1978), conhecida como o período de ouro do Cinema Brasileiro, sobretudo em função dos êxitos comerciais ( Dona Flor e seus dois Maridos, 1976, de Bruno Barreto; A Dama do Lotação , 1978, de Neville de Almeida, entre outros títulos) o acesso às instâncias decisórias do governo estaria assegurado. A EMBRAFILME, como empresa estatal produtora e distribuidora de filmes brasileiros, e o CONCINE, responsável pela legislação que regulamentava todo o mercado, incluindo a remessa de lucros das distribuidoras de filmes norte-americanas, tornaram-se os instrumentos do Estado à disposição do Cinema Brasileiro a fim de cumprir a sua vocação enquanto produto cultural, ou seja, de expressar os valores de uma suposta brasilidade ao mesmo tempo em que garantia a livre circulação de seus produtos em um mercado dominado pelo filme estrangeiro.
A associação entre o regime militar – especialmente em seus setores mais nacionalistas – e cineastas também de tradição nacionalista e ligados à esquerda política foi selada através de instrumentos do Estado corporificados na EMBRAFILME e CONCINE. Acostumados com a lógica do subsídio integral à atividade e dotados de uma visão de mundo que valorizava o filme enquanto obra artística, os agentes do campo cinematográfico desacostumaram-se com a perspectiva comercial inerente à indústria cinematográfica.
Durante a redemocratização do país na década de oitenta e esperançosos de um maior aporte financeiro na área, o Cinema Brasileiro procurou reformular suas bases de sustentação. Apartado do mercado exibidor, que sucumbia a sua mais grave crise, às voltas com a dolarização da atividade (filme-virgem, equipamentos, etc.), o campo cinematográfico também tinha diante de si setores cada vez mais hostis que associavam tal atividade ao estatismo característico do período autoritário. Foi neste cenário que a Política Nacional de Cinema (1986) foi formulada, em um documento que procurava atualizar o Cinema Brasileiro sob as novas configurações da economia cinematográfica internacional, atualizando-o também diante da democracia política recém-implantada.
No longo diagnóstico realizado pelo documento apresentava-se um quadro pessimista para a manutenção e reprodução da atividade cinematográfica no país, com a decadência das salas de cinema e o aparecimento de novas mídias como o vídeo doméstico, por exemplo. Produto do campo cinematográfico (2), a PNC conferia atribuições ao Estado e à iniciativa privada, indicando que o primeiro estaria sobrecarregado com atividades, que em princípio seriam empresariais e resolvidas no plano do mercado. Se a intenção do documento era tornar mais racional a atuação do Estado, este deveria resgatar o Cinema Brasileiro de uma situação de penúria econômica para enfim dissolvê-lo na sociedade enquanto manifestação cultural e expressão de soberania nacional.
O documento reivindicava investimentos de Cr$ 5,7 trilhões (US$ 550 milhões em valores da época), com recursos oriundos do Tesouro Nacional e da renúncia fiscal. Para tanto, os bancos estatais deveriam abrir linhas de crédito e financiamento para a produção e comercialização de filmes brasileiros. O poder executivo seria responsável por uma série de ações, que iam da abertura de salas de cinema a uma complexa regulamentação que sinalizava a atuação do Estado para assegurar padrões mínimos de rentabilidade para o produto brasileiro. Ao identificar na sobreposição entre atribuições culturais e comerciais o problema da estrutura estatal e sua pouca agilidade, a Política Nacional de Cinema continuava a reproduzir a confusão entre os papéis que seriam típicos do Estado e aqueles designados a iniciativa privada. Se a distinção entre as duas esferas (público e privado, Estado e sociedade) era encarada como uma saída para muitos dos problemas econômicos do Cinema Brasileiro, o documento inviabilizava uma utilização racional dos recursos, pois ampliava a origem das verbas dentro do próprio Estado – aumentando também a estrutura pública para gerir e fiscalizar -, e atribuindo um papel secundário à iniciativa privada. (3)
Com escassas referências aos métodos de distribuição dos recursos públicos e a conseqüente transparência nas ações, o documento emergiu em um momento delicado: a ascensão das teses neoliberais e a associação entre autoritarismo e estatismo. Em um momento de crise econômica e de encolhimento do gasto público, a atuação da EMBRAFILME e por sua vez dos agentes nela envolvidos perdia velozmente a legitimidade necessária para a sua reprodução: as acusações de favoritismo, opacidade e má administração dos recursos públicos minavam a continuidade dos investimentos na área.
Neste contexto como justificar a expansão do gasto público na área? Em um momento de retraimento da ação estatal, redemocratização do país e explosão nas demandas sociais tal estratégia tornava-se onerosa demais para o Cinema Brasileiro. Como motivação puramente econômica, a defesa da substituição das importações – uma estratégia de setores industriais brasileiros desde o século XIX – era um tanto anacrônica em um período de valorização do livre mercado; assim procurava-se repor uma temática que há muito tempo estava eclipsada: a defesa dos interesses nacionais por meio do cultura cinematográfica brasileira.
Cineastas teriam então um mandato social que justificaria a permanência do investimento estatal. Segundo a PNC, a atividade cinematográfica seria indispensável não tanto pelo seu caráter econômico, mas sim pela posição de veículo capaz de expressar a identidade cultural, de promover a integração social e de espelhar a diversidade brasileira. Mais do que a penúria econômica, o documento indicava o estado de isolamento político vivido pelo Cinema Brasileiro e seus agentes mais influentes: as medidas preconizadas pela PNC eram resultado de uma comissão refratária ao diálogo com os outros setores que compunham a indústria de audiovisual no país, regulando a partir do alto e reforçando a vocação cultural do Cinema Brasileiro sem insistir nas contrapartidas necessárias na utilização de recursos públicos.
A Política Nacional de Cinema foi ignorada pelo então Ministro da Cultura, Celso Furtado, que em sua reforma do setor em 1987 interditou ao campo cinematográfico o acesso aos canais decisórios, esvaziando a EMBRAFILME que seria então extinta pelo Governo Collor em 1990. Os anos imediatamente subseqüentes seriam os mais dramáticos na história do Cinema Brasileiro, com produção e circulação quase inexistente. Uma produção regular e com acesso público seria possível apenas a partir de 1995, quando a Lei do Audiovisual promulgada em 1993 começava a dar resultados.
No contexto dos incentivos fiscais por meio da produção indireta do Estado no campo cinematográfico, há certos traços de continuidade com o modelo anterior, de produção direta através da EMBRAFILME. A desestatização da atividade pode fornecer pistas equivocadas sobre a continuidade ou não do investimento estatal no cinema, que se ampliou consideravelmente durante a década de noventa graças à renúncia fiscal praticada pelo Estado. Ao mesmo tempo em que persistia a lógica do subsídio a fundo perdido na atividade, sem contrapartidas ou exigência de algum retorno para a verba pública empregada na produção de filmes, a questão da opacidade ou da não aderência a princípios republicanos de transparência no gasto público mantinha uma incômoda linha de continuidade entre as práticas anteriores e aquelas praticadas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Enquanto modelos opostos, tanto a EMBRAFILME quanto o sistema de renúncia fiscal compartilham de semelhanças em sua dinâmica interna: o controle decisório está aqui sob a ingerência direta do campo cinematográfico. Para seus setores politicamente dominantes, a continuidade do investimento estatal estaria novamente assegurada, prevalecendo então a lógica do subsídio a fundo perdido sem o controle da sociedade civil. O ambíguo posicionamento do MINC e da Secretaria do Audiovisual durante o governo FHC, traduziu-se no recolhimento como política predominante e deixando a circulação publica do filme brasileiro aos critérios do mercado. Os traços de continuidade com a política anterior não são decorrentes exclusivamente da ação do Estado ou da política cinematográfica, mas também de um comportamento valorizado pelos agentes do campo cinematográfico: desde os anos sessenta que a lógica do subsídio se impõe, inibindo a ação empresarial ou o debate público sobre o que e de que forma produzir cinema com recursos públicos.
O debate em torno da ANCINAV recoloca todas estas questões, pois para o grupo politicamente dominante no Cinema Brasileiro seria mais vantajoso à manutenção das atuais regrais e ter sob controle próprio o processo de decisão. Para os cineastas dotados de maior capital político e com acesso facilitado às agências do Estado, a centralização proposta pelo MINC por meio da ANCINAV retira deles a autonomia e impediria a reprodução automática do subsídio.
Inicialmente formulada pelo governo FHC, a Agência indica nascer em um território em que há tudo por fazer: o diagnóstico traçado pelo anteprojeto contrasta com o vazio da política cinematográfica imediatamente anterior. A seus formuladores, a centralização tornar-se-ia então necessária face ao imobilismo das gestões anteriores e seria um recurso justificável face ao dinamismo do audiovisual contemporâneo. A criação de taxas sobre a circulação de obras audiovisuais teria o efeito de correção ao atingir o mais forte para a compensação dos elos mais frágeis em uma tentativa de capitalizar a indústria como um todo. A indicação de que os incentivos fiscais não seriam adequados enquanto mecanismo incentivador da produção brasileira estaria na criação de fundos específicos para o fomento e desenvolvimento do audiovisual nacional com recursos oriundos da própria exploração comercial da atividade.
O reaparecimento do Estado como agente indutor implica nas inevitáveis justificativas que legitimam sua atuação no campo cinematográfico, o que aproxima a ANCINAV da Política Nacional de Cinema. O receio de que as imagens sejam apropriadas e produzidas por estrangeiros torna ambos os documentos permeáveis à associação entre cultura brasileira e soberania nacional; o anteprojeto da Agência reafirma o desejo de tornar o Brasil um país produtor e não consumidor de produtos audiovisuais. Ainda que as regras de fomento ao Cinema Brasileiro entrem no nebuloso território do que e como financiar e que a Agência escape dos princípios republicanos de transparência no funcionamento das instituições públicas, o debate em torno da ANCINAV expôs com clareza as contradições do setor e as cisões existentes em torno dos destinos do audiovisual brasileiro. As discussões sobre o perfil e o grau de alcance da Agência ainda estão em curso.
A aproximação entre EMBRAFILME e ANCINAV é indispensável para pensarmos os limites existentes e as práticas políticas instituídas e sua necessária correção para que o Cinema Brasileiro possa enfim circular sem restrições em busca de um diálogo público e transparente junto à sociedade. O recente seminário ocorrido no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo sobre a atuação da EMBRAFILME indica que a disposição em encontrar um modelo adequado de sustentação a produção audiovisual brasileira persiste. Muitos debates giraram em torno da comparação entre os dois modelos, com a antiga empresa estatal perdendo gradualmente seu estigma pejorativo e uma imagem de passado incômodo. O enigma ainda se mantém erguido e à disposição para novas interpretações, como afirmou o pesquisador da UNICAMP, José Mário Ortiz Ramos: o Cinema Brasileiro não encontrou um Estado que realmente o proteja.
Referências Bibliográficas
AMÂNCIO, Tunico. Artes e Manhas da Embrafilme: Cinema Estatal Brasileiro em sua época de ouro (1977-1981) , Niterói: EDUFF, 2000.
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. “A política cultural: regulação estatal e mecenato privado”, IN Tempo Social, v. 15, n.2, 2003, pp 177-193.
BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”, IN Pierre Bourdieu .SP: Coleção Grandes Cientistas Sociais, 39, org. Renato Ortiz, p. 122-155.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. SP: Cia. das Letras, 1998.
CATANI, Afrânio Mendes. “Política Cinematográfica nos anos Collor (1990-1992): um arremedo neoliberal”, IN Revista Imagens , 3, 1994, Editora da Unicamp, p. 98-102.
ESTEVINHO, Telmo A.D. “Este milhão é meu”: Estado e Cinema no Brasil. Dissertação de Mestrado, PUC/SP, 2003.
JOHNSON, Randal. The Film Industry in Brazil : Culture and the State. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1987.
RAMOS, José Mário Ortiz. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
(1) Utilizamos a noção de campo cinematográfico a partir do conceito de “campo cultural” de Pierre Bourdieu, como um local no qual atores se enfrentam, produzem um capital específico e tendem a reproduzi-lo para garantir a dominação neste campo: não é suficiente dizer que a história do campo é a história da luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e de apreciação legítimas; é a própria luta que faz a história do campo; é pela luta que ele se temporaliza. Bourdieu, Pierre. As regras da arte. SP: Cia das Letras, 1998, pg. 181.
(2) A Política Nacional de Cinema resulta do trabalho de uma Comissão nomeada pelo presidente José Sarney em 1985. Dos dez nomes que compunham a comissão, cinco eram ligados diretamente ao campo cinematográfico: Hermano Penna, Leon Hirszman, Luis Carlos Barreto, Gustavo Dahl e Carlos Augusto Calil.
(3) Propostas para uma Política Nacional de Cinema, Jornal da Tela, edição especial. EMBRAFILME/MINC, março, 1986.
* Telmo Antonio Dinelli Estevinho é pesquisador do NEAMP, doutorando em Ciência Política da PUC/SP, Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia, UFU/MG.

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