O dedo que falta
Carlos Alberto Furtado de Melo
A presente turbulência, que tomou ares de crise política,
não faz sombra, por exemplo, ao que o país viveu entre o final
de 1998 e começo de 1999, quando explodiu o chamado "caso das
fitas do BNDES". A confusão, as dúvidas e os valores eram
muito maiores; as circunstâncias econômicas incomparavelmente
piores. Os aliados - Jader Barbalho e Antônio Carlos Magalhães
- menos confiáveis; os adversários mais agressivos: Tasso Genro,
então prefeito de Porto Alegre chegou a pedir a renúncia do
presidente Fernando Henrique. Perto disto, o presente caso dos Correios "é
pinto". O problema reside, na verdade, é na condução
do processo. Essa tem se mostrado a maior vulnerabilidade do governo, e isso
não é de hoje.
Diferente das dinâmicas econômicas, em política não
se pode falar em "mão invisível". Não há
tendência natural ao equilíbrio. Quando as instituições,
a negociação, as normas e os interesses não impõem
um novo consenso, a força fará com que se ajustem as expectativas.
A liderança política é imprescindível e com ela
a capacidade de decidir. Alguém conduz e isto é inexorável.
Sempre haverá, pelo menos, "um dedo" nítido e visível
do condottiere. Não em riste, mas como um sinal a indicar a direção,
o rumo, o caminho. A conjuntura política brasileira ressente-se desse
dedo e dessa liderança. Pode-se atribuir culpas de A(ldo) à
Z(é), mas, com todo o respeito, o dedo que falta é mesmo o do
presidente da República. E não se trata apenas de um trocadilho.
A personalidade política Lula é curiosa. Líder sindical,
afastava-se do que chamava de "políticos profissionais".
Presidente do PT, colocou-se acima dos conflitos partidários. Na Constituinte,
distanciou-se das articulações, desqualificando a experiência
com a lapidar frase dos "trezentos picaretas com anel de doutor".
Em 1989, impediu que Ulisses Guimarães subisse no seu palanque contra
Fernando Collor. Presidente da República, foi pragmático pela
moderação. Fez-se "unha e carne" com Palocci e arbitrou
apenas o conflito que lhe era inevitável: a proteção
de uma política econômica contra a qual não podia lutar.
Mas quanto ao governo, deixou que proliferassem as ambigüidades e no
que se refere ao Congresso, evitou, pelo tempo que lhe foi possível,
lidar com parlamentares. Deixou José Dirceu jogar o jogo, dentro de
regras que, pessoalmente, pouco lhe agradavam. Entendidas, no entanto, como
"da tradição brasileira", não definiu e nem
determinou outras. Fez como os outros, optando pelo mais fácil - e
custoso - jogo "da participação no governo por meio de
cargos e da liberação de verbas", mas exigiu pouco, quase
nada, em troca. Foi conduzido mais do que conduziu. Interferiu apenas quando
entendeu que poderia comprometer sua imagem pessoal. Em suma, Lula dá
mostras de que não gosta da política que é obrigado a
fazer. Tem notória ojeriza a ela, mas não indica um meio de
substituí-la. Apenas distancia-se: vai para o Japão. O presidente
protela o quanto pode.
Ora, se o jogo é dado, que seja, então, bem jogado. Os exemplos
de indefinição são inúmeros. Os relacionados à
atual crise datam da época em que se discutia a reeleição
dos presidentes da Câmara e do Senado. Desde então, Lula tem
sistematicamente resolvido nada resolver. Mais: sabia-se que a reforma ministerial
era obra para novembro de 2004, o presidente, contudo, achou conveniente fazê-la
após a eleição na Câmara. Talvez acreditasse que
a indefinição lhe trouxesse o apoio por gravidade. Tomou um
enorme revés e continuou acreditando em Papai Noel. Este, barrigudo
e nordestino, chamado Severino, não lhe deixa presentes, mas pedidos,
exigências e ultimatos sob a árvore de Natal. Num desses ultimatos,
com um arroubo, resolveu por mais uma vez, não resolver e o fez com
enorme contundência. E, claro, a contundência, por si só,
nada resolve mesmo.
É verdade que o sistema partidário brasileiro, arcaico e disfuncional,
já faz hora-extra. Os partidos, todos, estão absolutamente desorganizados
e não há nem unidade de comando e nem identidade programática
internas. Disto decorre a falta de interlocutores confiáveis e há
mesmo uma enorme dificuldade em definir os "parceiros" em cada partido.
Mas é justamente aí que falta um dedo que aponte a quem e com
quem articular. A liderança política define seus interlocutores;
"onde há dúvidas, leva a fé; onde há trevas,
leva a luz". Ainda mais no Brasil, onde as "lanternas" da persuasão
(ou deterrência) estão nas mãos do Executivo.
O governo passa por um perrengue danado, que não precisaria passar.
A economia vai bem, ainda que um conflito entre a política monetária
e a política fiscal pareça querer se materializar (ver José
Alexandre Scheinkman, Folha de S. Paulo, 08 de maio). Os investimentos estrangeiros
fluem com certa naturalidade; agências internacionais valorizam o país;
o risco deixou de ser problema. Todavia, é preocupante a inabilidade
com que as turbulências e disputas são tratadas. A CPI dos Correios
caiu no colo da oposição. O governo tratou de ligar todos os
alarmes, quando o normal seria agir com prudência e sutileza, diminuindo
o volume dos ruídos. Deixar com que a comissão se instalasse
para que depois morresse ao invés de tentar fazer um aborto ilegal.
Assustado, o governo lutou não só por uma causa errada, mas,
sobretudo por uma causa perdida. Chamou a atenção de toda a
mídia, quando o caso se limitava ao sensacionalismo de uma única
revista semanal. Publicação esta que, ao lado de um diário
bastante lido, mas pouco considerado, não vocaliza "forças
ocultas" e nem "elites descontentes" ou "setores econômicos
organizados e descontentes". Buscam interagir com uma parte, numerosa
é verdade, de um leitorado urbano, crítico e militantemente
moralista que nunca foi exatamente simpático a Lula e muito menos ao
PT, ou que, no máximo deixou de ser quando o partido chegou ao poder
com todo o seu ônus.
Agora, fica o país exposto ao "deus dará" de interesses
contrariados. Carlinhos Cachoeira foi um interesse contrariado. Ao que tudo
indica, os três mil reais que molharam a mão de Maurício
Marinho, nos Correios, também. "Esquemas financeiros" exigem
volumes infinitamente superiores. Façamos justiça ao deputado
Roberto Jefferson: esses três mil reais lhe são uma ofensa. O
problema é que a sanha pelo novo escândalo foi despertada. O
bicho papão do tal "jornalismo investigativo" foi solto e
o medo é plenamente justificável porque não há
governo capaz de garantir que não há nada de podre sob suas
barbas. Vive-se então a expectativa de que "a coisa não
pára por aí". É possível que não pare
mesmo. A CPI, mesmo que conte com a boa vontade da oposição
(e não parece o caso), com a experiência do seu eventual presidente,
ou a habilidade de seu futuro relator, pode assumir uma dinâmica própria.
O que pode acontecer? O clichê: tudo, inclusive nada.
O mais provável, em que pese a dissonância e o elevado nível
de ruído, parece ser mesmo nada. Diz, parcialmente, um ditado que "com
calma e com carinho" quase tudo é possível e o governo,
se souber usá-los, tem instrumentos para amainar a situação.
Ainda não há uma total adesão da mídia à
causa do escândalo. Pelo contrário, há veículos
que demonstram enorme boa vontade; e, ainda, podem entrar - e já estão
- na contra-ofensiva. A reforma ministerial e o discurso de "um novo
caminho" (mesmo que mude tudo para não mudar nada) parecem ser
ainda mais inevitáveis e pode ser que sejam, enfim, adotados. Será
também preciso dobrar o PT, diminuindo seus espaços no governo
e fechando as alianças nos estados em que ainda for possível
algum nível de acordo; além de desativar o potencial explosivo
da luta interna tanto com os rebeldes como na disputa de São Paulo.
Repactuar governo e aliados confiáveis é outra medida, mesmo
que isto signifique a diminuição do tamanho da base. E daí,
estabelecer uma agenda positiva e uma ponte com a oposição,
diminuindo o atrito nem que para isto seja necessário morder os lábios
para não responder a provocações.
O nome do deputado João Paulo parece ser o mais indicado, se a questão
de São Paulo puder ser equacionada. Ele possui transito com vários
setores aliados e da oposição. Já o ministro José
Dirceu mostra-se útil, sobretudo, na relação com o PT,
por ter pouca visibilidade externa (mas muita utilidade prática). A
retomada da articulação política mais geral, no entanto,
colocaria o ministro-chefe da Casa Civil novamente diante da artilharia da
oposição e de diversos veículos de comunicação
que sentem urticárias quando ouvem seu nome. Além disso, a possibilidade
de tornar hostilizar o "companheiro" Palocci é muito grande.
A disputa é de sua natureza e as diferenças com Palocci são
de sua índole. Enfim, tornaria a ser um dardo e um alvo e, portanto,
mais um problema. Evidentemente, deve-se perguntar se há combinação
com o presidente. Dele depende a decisão e dele formalmente emana a
autoridade para isso. Desta vez, parece ainda mais inevitável decidir,
mas não quer dizer que, somente por ser inevitável, o presidente
o fará. De todo modo, chegou a hora de fazê-lo ou de não
fazer mais nada.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Cientista Político, Doutor
pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São
Paulo.

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