Dos usos da fé e da política num Brasil em mutação
Arnaldo Francisco Cardoso *
Prender sob o argumento de que ele está enganando as pessoas com a sua religião ou coisa parecida, eu acho um absurdo, porque as pessoas tem fé naquilo que querem ter fé. A Igreja Universal consegue encher o Maracanã, ou seja, e isso é visto por alguns outros religiosos ou pela polícia, como charlatanice, ou seja, o bispo dizia: bom, e as pessoas que fazem romaria, as pessoas que acreditam em outro tipo de santo, ou seja, também não estão sendo vítimas de charlatanice? (declaração de Luiz Inácio Lula da Silva à imprensa, em maio de 1992, por ocasião da prisão do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal).
Charlatão S.m.1 Vendedor público de drogas, cujas virtudes apregoa com exagero. 2. Explorador da boa-fé do público. 3. Impostor, embusteiro, trapaceiro. (Dicionário Aurélio, p.455)
Da prisão do bispo Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus,
em maio de 1992, sob acusação de estelionato e charlatanismo,
em meio a crise política alimentada pelo processo de impedimento
do presidente Fernando Collor, até a detenção no último
dia 12 de julho, do bispo e deputado federal João Batista Ramos (PFL-SP)
que embarcava no aeroporto de Brasília rumo a São Paulo, com
7 malas contendo 10,2 milhões de reais em espécie, a vida
social e política brasileira vem passando por mudanças, ainda
que as semelhanças entre os dois episódios e seus contextos
de crise política façam-nos pensar o contrário.
Para além das atenções que hoje se concentram (em muito
pautadas pela mídia) nas disputas partidárias na condução
da atual crise política (que ameaça se tornar crise institucional),
do ritmo e profundidade das investigações em curso e de seus
possíveis resultados; bem como das análises mais substantivas
acerca da pertinência e alcance de eventuais reformas institucionais
no sistema político vigente, faz-se também imperioso um esforço
para a compreensão das mudanças que vem se operando na trama
do tecido social brasileiro e os respectivos valores e éticas
que delas afloram.
Os resultados de recentes pesquisas de opinião e de percepção
da população sobre escândalos de corrupção,
sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, entre outros delitos,
envolvendo diferentes agentes públicos e privados, permitem uma leitura
acerca dos termos em que vem se atualizando no país o consenso social
e a consciência coletiva, sendo esta última a que define o
que, numa sociedade, é considerado imoral, reprovável ou criminoso.
A complexidade de um tal exercício de natureza sociológica
, exige num primeiro passo, a seleção de algumas variáveis
para a busca de compreensão dos significados das mudanças
que vem se operando na sociedade brasileira nos últimos anos. É
nessa direção que a presente reflexão se desenvolve,
tomando como variáveis a evolução na taxa de urbanização,
a distribuição de renda e as mudanças na confissão
religiosa no país.
Com base nos números revelados pelo último Censo Demográfico
brasileiro, concluído pelo IBGE em 2000, algumas análises
já nos revelaram um Brasil em mutação. (É certo
que muitas das mudanças correspondem às transformações
ocorridas também no plano internacional, de atualização
do modo de produção e reprodução do capital
em nível global e das correspondentes relações sociais,
no entanto, buscamos atentar para os traços particulares desse processo
na sociedade brasileira).
Um dos mais relevantes apontamentos do Censo 2000 diz respeito a taxa de
urbanização do país. Se na década de 1980, 67,6%
da população brasileira vivia no setor urbano, esse percentual
saltou para 81,3% em 2000. Esse número se torna mais significativo
se levarmos em conta que a geração de empregos nas cidades
e a expansão de infra-estrutura não acompanharam seu crescimento.
Sobre a concentração de riqueza no país e, em especial,
a natureza dessa riqueza, o economista Marcio Pochmanm utilizando dados
do Censo 2000 e da Pnad de 2001, produziu interessantes análises
condensadas no livro "Atlas da Riqueza no Brasil", atualizando
a questão da concentração de renda no país,
mostrando que essa é cada vez maior, com 75% do PIB nas mãos
de 2,4% da população brasileira, enquanto mais da metade da
população ocupada ganha até 300 reais por mês.
O estudo aponta ainda a natureza financeira da acumulação
de riqueza que nos últimos anos se fez por meio da dívida
pública, dos juros altos e do superávit primário, com
o Estado transferindo recursos oriundos de toda a população
para as camadas mais ricas do país. Esse processo que grassou durante
o governo de Fernando Henrique Cardoso ganhou ainda mais vigor no governo
de Luiz Inácio Lula da Silva.
No campo da fé, o Brasil parece viver seu mais intenso transe, com
o crescimento das igrejas evangélicas operando uma reconfiguração
de modos e crenças de expressivas parcelas da sociedade brasileira.
Atermo-nos um pouco mais sobre essa variável, qual seja, a da mudança
na confissão religiosa de importantes parcelas da população
brasileira, tendo em perspectiva os dados anteriormente apontados sobre
urbanização e distribuição de renda no país,
pode agregar importantes elementos para a compreensão do objeto em
tela, uma vez que, historicamente, a Igreja no Brasil sempre cumpriu destacado
papel na conformação dos valores da sociedade brasileira,
em especial pela sua excepcional capacidade de penetração
geográfica, em espaços que nem mesmo o Estado se faz presente.
Em 1992 os evangélicos no Brasil, eram 9% da população,
no Censo 2000, saltaram para 15,4%, isto é, mais de 26 milhões
de pessoas. Segundo o IBGE, a Igreja Universal, que registrou o mais expressivo
crescimento entre as evangélicas, conta hoje com algo em torno de
2 milhões de fiéis, que nas contas da igreja são mais
de 8 milhões.
Do pequeno salão com capacidade para 300 pessoas em que começou
suas atividades 28 anos atrás, no bairro da Abolição
no Rio de Janeiro, a Igreja Universal passou a contar com templos e catedrais
espalhados por todo o Brasil, sendo a maior delas localizada na cidade do
Rio de Janeiro, com capacidade para 12 mil pessoas. Encontram-se em construção,
por construtora própria, 65 novos templos, com custo estimado de
um bilhão de reais.
A Universal atua hoje em mais de 80 países, espalhada pelos cinco
continentes do globo. Segundo informações da própria
Universal, emprega hoje 22 mil pessoas e gera outros 100 mil empregos indiretos.
Ainda que o crescimento do número de adeptos das igrejas evangélicas
tenha se dado em diferentes camadas sociais, ainda é entre as camadas
mais pobres da população que a ação dessas igrejas,
com destaque para a Universal, se faz mais completa.
A estratégia de penetração da igreja e legitimação
junto a população se faz cada vez mais eficiente através
de suas obras sociais como a realizada pela Associação
Beneficiente Cristã (atendimento a moradores de rua), pela Sociedade
Pestalozzi (entidade filantrópica que atende portadores de deficiência
mental), Fazenda Canaã (apresentada como o mais importante projeto
de irrigação no sertão da Bahia), programa de atendimento
em presídios a dependentes químicos e vítimas de violência
e exploração sexual.
O slogan utilizado pela Universal para sua a atuação social
é: Universal, a Igreja que ajuda o Brasil.
O antropólogo Flávio Conrado observa: As igrejas criam
estratégias cada vez mais agressivas em busca de adeptos, usando
a mídia, como fator importante para seu crescimento.
Cabe aqui registrar que, no Censo de 2000, referente aos números
do consumo, a televisão foi um dos bens de consumo que registrou
um dos maiores índices de crescimento. Em 1970 a televisão
estava presente em 24,1% dos lares brasileiros e em 2000, em 87,2% deles.
Enquanto isso, os computadores estão em apenas 10,6% dos lares.
Desde a compra da Rede Record pela Universal em 1991 (que hoje ocupa o 3º
lugar em audiência) a televisão se converteu num dos mais importantes
instrumentos para a manutenção diária dos laços
entre a Igreja e seu corpo de fiéis; reforçados também
por outros meios de comunicação como rádios e o jornal
Folha Universal, fundado em 1992, de circulação semanal, gratuito,
com tiragem semanal de 1,8 milhão de exemplares. Segundo o contador
geral da Igreja Universal, Demerval Alves, que trabalha na sede administrativa
da igreja, na cidade de São Paulo, os custos com horários
de programação em rádios e televisão somam cerca
de 30 milhões de reais mensais.
Em momentos específicos, um canal de televisão próprio
pode ser de grande valia. Em longa reportagem exibida no programa Domingo
Espetacular no último 24/07, na Rede Record, o jornalista Celso Freitas
(ex-TV Globo) abriu a reportagem com as cenas de detenção
(em 12/07) do bispo João Batista Ramos, e afirmando que ao
longo de sua história, a Igreja foi vítima de várias
denúncias e investigações e que, o episódio
da prisão de Edir Macedo em 1992, ocorreu também em momento
de grave crise política no Brasil e por alguns dias a prisão
de Edir Macedo ocupou as manchetes do noticiário nacional.
Na hierarquia da Igreja Universal, em posição de destaque
encontra-se o bispo Romualdo Panceiro (ex-dependente de drogas no Rio de
Janeiro) que lidera a Universal no Brasil. Sua jornada de trabalho chega
a 18 horas diárias, geralmente aberta às 6 horas da manhã
nos estúdios da Rede Record para a gravação de programas/cultos
religiosos. Os compromissos em outros estados como visitas a obras em andamento,
compra de terrenos para novas edificações, só se viabilizam
pelo uso de jatos particulares, prática que lhe é cotidiana.
Alguns desses longos dias de trabalho do bispo Romualdo são finalizados
com a condução de vigílias de fiéis em catedrais
da Universal até a madrugada.
Aos fiéis o bispo Romualdo prega: acordar cedo e dormir tarde
(ouvindo os programas da Universal no rádio e na TV) vale a pena.
Sobre os traços dessa ética o pesquisador da PUC-SP
Edin Sued Mansur tece a seguinte avaliação: eles (os
fiéis) acreditam com mais ênfase que os benefícios da
relação positiva com Deus, são para aqui e agora. Então
se você vai bem na sua vida econômica, financeira, familiar,
profissional, na sua saúde física, isso é conseqüência
da sua fé e das suas ações em conseqüência
desta fé.
Mas as ações da Universal e de outras igrejas evangélicas
no Brasil desde muito não se restringem aos templos e suas comunidades.
Nas eleições de 2002 o crescimento dos evangélicos
no Congresso Nacional foi marcante. Foram eleitos 60 deputados entre seus
bispos ou pastores, dos quais 23 são da Assembléia de Deus,
22 da Igreja Universal e 8 batistas. Eles eram 48 durante a legislatura
anterior.
Foi também no pleito de 2002, que a Universal chegou ao Senado Federal,
ao eleger o bispo Marcelo Crivella (sobrinho de Edir Macedo) pelo PL do
Rio de Janeiro, com 3,3 milhões de votos.
A força política dos eleitores evangélicos no Rio de
Janeiro se fez notar também na escolha para governador do estado.
Rosinha Garotinho, ex-Secretária de Ação Social no
governo de seu marido, saiu vitoriosa das urnas em 2002. (Lembremos que
Anthony Garotinho foi o terceiro colocado no primeiro turno das eleições
presidenciais de 2002, sendo avaliado como um espetacular desempenho para
sua primeira participação num pleito nacional).
O casal Garotinho converteu-se ao culto presbiteriano Luz do Mundo, e esse
vínculo vem revelando-se politicamente rentável.
Na primeira aparição pública do casal, após
as votações de 6 de outubro de 2002, ela vestia uma camiseta
branca com os dizeres "Jesus é o Senhor", e ele uma camiseta
amarela com a inscrição "Só o Senhor é
Deus".
Garotinho durante seu mandato de governador do Rio de Janeiro implementou
programas sociais como o cheque cidadão, restaurantes
populares a 1 real por refeição além de um hotel para
os sem-teto, a 1 real por noite. Nas duas eleições em que
os Garotinho saíram vitoriosos, eles se beneficiaram das redes pentecostalistas
organizadas nos bairros pobres e nas favelas do Rio de Janeiro, onde os
fiéis votaram conforme as recomendações dos seus pastores.
Em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, em dezembro de 2003, com
2.950 pessoas em cinco capitais do país, medindo a percepção
sobre as instituições que mais ganharam poder de influência
no Brasil entre os anos de 1995 e 2003, o primeiro lugar ficou com os bancos
(61%) e o segundo com a Igreja Universal (49%) entre 12 instituições
apresentadas.
Tendo em vista os resultados da pesquisa do Datafolha, em especial sobre
a performance da Igreja Universal, Otávio Velho, professor titular
da UFRJ ao classificar a sociedade brasileira hoje como uma sociedade
em que o respeito fica bastante associado ao sucesso avalia que "Essa
ideologia do sucesso, da prosperidade, que é uma ideologia da própria
Universal, ficou associada à presença na igreja de empresários
e à presença forte dela na mídia", e sobre um
enfraquecimento da Igreja Católica no Brasil, avalia: A presença
católica no Brasil é estrutural, não é uma coisa
que acaba de um dia para o outro. (Folha de S. Paulo, 04/01/2004).
Reconhecer nas mudanças que se operam em nossa sociedade a inspiração
do modelo norte-americano, cuja ética protestante e um tipo de capitalismo
se mostram virtuosamente relacionados (relação tão
bem estudada por Max Weber) parece-nos uma simplificação que
oculta as particularidades de nosso processo histórico. (É
bem verdade que o teor religioso da última campanha para presidência
dos EUA, os escândalos de corrupção e malversação
do dinheiro público em prol de um partido político, os favorecimentos
a empresas em troca de doações para campanha, e mais especificamente,
as práticas de um grupo que para se manter no poder fez da ética
na política uma impossibilidade, estimula-nos a traçar paralelos...)
Nessa direção, merece reflexão certa indiferença
da população brasileira diante de denúncias e processos
que correm contra algumas de nossas instituições, e mesmo
sobre a Igreja Universal, sem que essas abalem-lhes o prestígio.
Desde 1999 tramita no STF inquérito que investiga o suposto envolvimento
da Igreja Universal com duas empresas sediadas em paraísos fiscais,
Cableinvest e Investholding (nas Ilhas Cayman), que financiaram a compra
em 1992 da TV Record do Rio de Janeiro e de outras emissoras coligadas.
Recentemente foi pedido pelo ex-procurador-geral da República, a
quebra do sigilo fiscal da igreja. O inquérito no STF visa apurar
crime contra o Sistema Financeiro Nacional e de evasão de divisas.
Consta no processo que a TV Record do Rio, foi adquirida em nome de seis
membros da Universal, frequentadores da igreja no bairro da Abolição,
sem qualquer patrimônio pessoal. A emissora pertencia ao bispo Nilson
do Amaral Fanini, da Primeira Igreja Batista de Niterói (RJ), e ao
empresário e ex-deputado federal Múcio Athayde. A operação
foi efetivada em fevereiro de 1992, por US$ 20 milhões, para pagamento
em 15 parcelas. Para cada promissória, os compradores assinaram um
contrato de empréstimo de valor equivalente com a Investholding ou
com a Cableinvest, para pagamento em cinco anos.
Entre os investigados no referido processo está o bispo e deputado
federal João Batista Ramos (PFL-SP) detido com as 7 malas
de dinheiro , e o bispo Marcelo Crivella, senador da República
pelo Partido Liberal, mesmo partido do vice-presidente da República
José Alencar, que dá sustentação ao governo
no Congresso e que tem parlamentares envolvidos nas denúncias que
deram origem às CPIs dos Correios e do Mensalão.
Um dos efeitos da atual crise política no Brasil é a antecipação
de um balanço que, normalmente seria feito ao final do mandato do
atual presidente da República, mas que nas circunstâncias em
que vem sendo feito, projeta-se sobre os vinte e cinco anos de existência
do Partido dos Trabalhadores, fato que comporta sérias implicações.
Um dos mais consistentes exercícios de análise das mudanças
pelas quais o Brasil vem passando nos últimos anos, contemplando
as determinações do espaço interno e externo, vem sendo
desenvolvida desde muito pelo sociólogo Francisco de Oliveira, um
dos fundadores do PT, que publicou em finais de 2003 o Ornitorrinco (post-scriptum
à Crítica à Razão Dualista).
Sobre o Partido dos Trabalhadores, elemento importante na análise
de Francisco de Oliveira e que ajuda na compreensão da atual crise
política é a reflexão sobre o descolamento do PT de
suas bases originais, que ao longo das últimas duas décadas,
parte delas, foram também perdendo suas formas, sendo esse um dos
fatores que levaram a atual crise política que é em sua natureza,
uma crise de representação. Oliveira esboça a seguinte
problematização: No Brasil, como é que você
pode ter classe social com uma taxa de desemprego de 20% e uma taxa de informalidade
de 50%? Como é possível haver classe? Como a política
atua representando uma coisa que não existe?
Nessa mesma direção o sociólogo trata da formação
de uma nova classe no capitalismo globalizado na periferia com
os ex-sindicalistas assumindo postos como gestores de fundos de previdência
de ex-estatais.
Diante da atual crise política que envolve o governo Lula, vários
membros de sua cúpula vem dando declarações
muitas vezes descoordenadas sobre os desacertos do Partido após
a chegada ao governo federal de seu mais carismático membro. Uma
destas confissões de erro foi a migração em massa dos
quadros do Partido para cargos de confiança na administração
pública. Nessa direção o próprio presidente
Lula justificou erros na administração do partido, por ter
este ficado desfalcado sem suas melhores cabeças. Entre seus opositores,
isso foi chamado de aparelhamento do Estado.
Nesse particular, os atuais escândalos de corrupção
investigados pelas CPIs instaladas, fez o tema da burocracia estatal
ganhar destaque no debate, inclusive no meio acadêmico. A defesa da
meritocracia e da impessoalidade para a composição dos quadros
da administração pública não é algo novo
e na teoria política e sociológica encontra em Max Weber um
de seus estudiosos. Já nas primeiras décadas do século
vinte, Weber avaliava que: O papel das qualificações
técnicas em organizações burocráticas é
continuamente incrementado. Mesmo o funcionário de um partido ou
organização sindical necessita de conhecimento especializado.
[...] No Estado moderno os únicos cargos para os quais não
se exigem qualificações técnicas são os de ministro
e presidente. Weber alerta sobre a importância da burocracia
mas também sobre os riscos de sua exacerbação.
Também na esteira das discussões sobre a corrupção
e meios de coibi-la, vem ganhando espaço a proposta de limitação
do número de mandatos para os integrantes do Legislativo e até
extinção da reeleição para o Executivo, anulando
a oportunística MP que proporcionou a reeleição de
Fernando Henrique Cardoso, rompendo com uma tradição política
brasileira contrária à reeleição.
No século dezenove, o tema já mereceu atenção
de autores como Alexis de Tocqueville, que em seu clássico A democracia
na América, tratou do tema reeleição e corrupção.
Encontramos na referida obra a seguinte passagem: A intriga e a corrupção
são vícios naturais nos governos eletivos. Quando, porém,
o chefe do Estado pode ser reeleito, tais vícios se estendem indefinidamente
e comprometem a própria existência do país. Quando um
simples candidato quer vencer pela intriga, as suas manobras não
poderiam exercer-se senão sobre um espaço circunscrito. Quando,
pelo contrário, o chefe do Estado mesmo se põe em luta, toma
emprestada para o seu próprio uso a força do governo.
(Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo (29/07) o senador Eduardo
Suplicy, recorreu ao mesmo autor para aconselhamento ao presidente da República...).
Tendo em perspectiva o quanto neste artigo foi arrolado, apresenta-se-nos
como uma das mais graves conseqüências da presente crise política,
um processo de descrença na política e generalização
de juízos a respeito do modus operandi da classe política
entre a população brasileira.
A gravitação do ânimo popular entre o ceticismo com
a política (à moda do cronicamente inviável)
e a crença em novos salvadores, afigura-se-nos como o pior cenário
possível para a escolha de representantes nas próximas eleições,
aprofundando as raízes daquela que julgamos ser a natureza da presente
crise política, uma crise de representação.
Uma naturalização das práticas de corrupção
e da promiscuidade nas relações entre agentes públicos
e privados engolfando inclusive atores políticos constituídos
outrora sob discursos de ética e integridade moral, constituem em
si um grave problema, tornando-se ainda mais grave, se seu correlato for
um aumento do grau de tolerância da sociedade para com essa lógica
redutora da política. Um sintoma desse mal seria a atualização
do rouba mas faz pelo novo bordão antes de nós
já era feito assim.
Um balanço negativo do governo Lula extrapolando essa dimensão
mais restrita e projetando-se como balanço da trajetória de
um partido popular que chegou a contar com uma massa de 800 mil militantes
e é considerado o maior partido político da América
Latina, tem o potencial de criar um vazio no imaginário popular,
imaginário este que nos últimos vinte e cinco anos foi grandemente
ocupado pelo PT, com reconhecida competência.
Na decadência de uns, a ascensão de outros atores políticos
no papel de aglutinadores do imaginário e da energia popular, reconfigurando
valores e crenças, traz consigo um perigo de difícil mensuração.
A convicção da importância do fazer política
e sobretudo na possibilidade de se aprimorar as formas de participação
e representação política configura-se no grande desafio
que a presente crise nos lança, sendo este o único caminho
para a manutenção da res publica como tal e do republico como
aquele que se interessa pelo bem comum.
Referências Bibliográficas:
BRASIL DE FATO. Entrevista: O PT não é mais o mesmo; trocou
um projeto de nação por um de poder. Edição
Nº 123 - De 7 a 13 de julho de 2005
DOMINGO ESPETACULAR. TV Record. São Paulo: Canal 7, 24/07/2005
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista
O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte/São
Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977, p. 108
WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática:
uma construção do tipo ideal. In: DIVERSOS AUTORES. Sociologia
da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966, p.22
* Arnaldo Francisco Cardoso é cientista político, professor do curso de Relações Internacionais da UniFMU e pesquisador do NEAMP da PUC-SP.

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