Youtube Twitter Facebook
Artigos
Página Inicial | Artigos | Dos usos da fé e da política num Brasil em mutação

Dos usos da fé e da política num Brasil em mutação

Arnaldo Francisco Cardoso *

 

“Prender sob o argumento de que ele está enganando as pessoas com a sua religião ou coisa parecida, eu acho um absurdo, porque as pessoas tem fé naquilo que querem ter fé. A Igreja Universal consegue encher o Maracanã, ou seja, e isso é visto por alguns outros religiosos ou pela polícia, como charlatanice, ou seja, o bispo dizia: bom, e as pessoas que fazem romaria, as pessoas que acreditam em outro tipo de santo, ou seja, também não estão sendo vítimas de charlatanice?” (declaração de Luiz Inácio Lula da Silva à imprensa, em maio de 1992, por ocasião da prisão do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal).

 

Charlatão S.m.1 Vendedor público de drogas, cujas virtudes apregoa com exagero. 2. Explorador da boa-fé do público. 3. Impostor, embusteiro, trapaceiro. (Dicionário Aurélio, p.455)

 

Da prisão do bispo Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus, em maio de 1992, sob acusação de estelionato e charlatanismo, em meio a crise política alimentada pelo processo de impedimento do presidente Fernando Collor, até a detenção no último dia 12 de julho, do bispo e deputado federal João Batista Ramos (PFL-SP) que embarcava no aeroporto de Brasília rumo a São Paulo, com 7 malas contendo 10,2 milhões de reais em espécie, a vida social e política brasileira vem passando por mudanças, ainda que as semelhanças entre os dois episódios e seus contextos de crise política façam-nos pensar o contrário.

Para além das atenções que hoje se concentram (em muito pautadas pela mídia) nas disputas partidárias na condução da atual crise política (que ameaça se tornar crise institucional), do ritmo e profundidade das investigações em curso e de seus possíveis resultados; bem como das análises mais substantivas acerca da pertinência e alcance de eventuais reformas institucionais no sistema político vigente, faz-se também imperioso um esforço para a compreensão das mudanças que vem se operando na trama do tecido social brasileiro e os respectivos “valores” e “éticas” que delas afloram.

Os resultados de recentes pesquisas de opinião e de percepção da população sobre escândalos de corrupção, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, entre outros delitos, envolvendo diferentes agentes públicos e privados, permitem uma leitura acerca dos termos em que vem se atualizando no país o consenso social e a consciência coletiva, sendo esta última a que define o que, numa sociedade, é considerado imoral, reprovável ou criminoso.

A complexidade de um tal exercício – de natureza sociológica –, exige num primeiro passo, a seleção de algumas variáveis para a busca de compreensão dos significados das mudanças que vem se operando na sociedade brasileira nos últimos anos. É nessa direção que a presente reflexão se desenvolve, tomando como variáveis a evolução na taxa de urbanização, a distribuição de renda e as mudanças na confissão religiosa no país.

Com base nos números revelados pelo último Censo Demográfico brasileiro, concluído pelo IBGE em 2000, algumas análises já nos revelaram um Brasil em mutação. (É certo que muitas das mudanças correspondem às transformações ocorridas também no plano internacional, de atualização do modo de produção e reprodução do capital em nível global e das correspondentes relações sociais, no entanto, buscamos atentar para os traços particulares desse processo na sociedade brasileira).

Um dos mais relevantes apontamentos do Censo 2000 diz respeito a taxa de urbanização do país. Se na década de 1980, 67,6% da população brasileira vivia no setor urbano, esse percentual saltou para 81,3% em 2000. Esse número se torna mais significativo se levarmos em conta que a geração de empregos nas cidades e a expansão de infra-estrutura não acompanharam seu crescimento.

Sobre a concentração de riqueza no país e, em especial, a natureza dessa riqueza, o economista Marcio Pochmanm utilizando dados do Censo 2000 e da Pnad de 2001, produziu interessantes análises condensadas no livro "Atlas da Riqueza no Brasil", atualizando a questão da concentração de renda no país, mostrando que essa é cada vez maior, com 75% do PIB nas mãos de 2,4% da população brasileira, enquanto mais da metade da população ocupada ganha até 300 reais por mês. O estudo aponta ainda a natureza financeira da acumulação de riqueza que nos últimos anos se fez por meio da dívida pública, dos juros altos e do superávit primário, com o Estado transferindo recursos oriundos de toda a população para as camadas mais ricas do país. Esse processo que grassou durante o governo de Fernando Henrique Cardoso ganhou ainda mais vigor no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

No campo da fé, o Brasil parece viver seu mais intenso transe, com o crescimento das igrejas evangélicas operando uma reconfiguração de modos e crenças de expressivas parcelas da sociedade brasileira.

Atermo-nos um pouco mais sobre essa variável, qual seja, a da mudança na confissão religiosa de importantes parcelas da população brasileira, tendo em perspectiva os dados anteriormente apontados sobre urbanização e distribuição de renda no país, pode agregar importantes elementos para a compreensão do objeto em tela, uma vez que, historicamente, a Igreja no Brasil sempre cumpriu destacado papel na conformação dos valores da sociedade brasileira, em especial pela sua excepcional capacidade de penetração geográfica, em espaços que nem mesmo o Estado se faz presente.

Em 1992 os evangélicos no Brasil, eram 9% da população, no Censo 2000, saltaram para 15,4%, isto é, mais de 26 milhões de pessoas. Segundo o IBGE, a Igreja Universal, que registrou o mais expressivo crescimento entre as evangélicas, conta hoje com algo em torno de 2 milhões de fiéis, que nas contas da igreja são mais de 8 milhões.

Do pequeno salão com capacidade para 300 pessoas em que começou suas atividades 28 anos atrás, no bairro da Abolição no Rio de Janeiro, a Igreja Universal passou a contar com templos e catedrais espalhados por todo o Brasil, sendo a maior delas localizada na cidade do Rio de Janeiro, com capacidade para 12 mil pessoas. Encontram-se em construção, por construtora própria, 65 novos templos, com custo estimado de um bilhão de reais.

A Universal atua hoje em mais de 80 países, espalhada pelos cinco continentes do globo. Segundo informações da própria Universal, emprega hoje 22 mil pessoas e gera outros 100 mil empregos indiretos.

Ainda que o crescimento do número de adeptos das igrejas evangélicas tenha se dado em diferentes camadas sociais, ainda é entre as camadas mais pobres da população que a ação dessas igrejas, com destaque para a Universal, se faz mais completa.

A estratégia de penetração da igreja e “legitimação” junto a população se faz cada vez mais eficiente através de suas “obras sociais” como a realizada pela Associação Beneficiente Cristã (atendimento a moradores de rua), pela Sociedade Pestalozzi (entidade filantrópica que atende portadores de deficiência mental), Fazenda Canaã (apresentada como o mais importante projeto de irrigação no sertão da Bahia), programa de atendimento em presídios a dependentes químicos e vítimas de violência e exploração sexual.

O slogan utilizado pela Universal para sua a atuação social é: “Universal, a Igreja que ajuda o Brasil”.

O antropólogo Flávio Conrado observa: “As igrejas criam estratégias cada vez mais agressivas em busca de adeptos, usando a mídia, como fator importante para seu crescimento”.

Cabe aqui registrar que, no Censo de 2000, referente aos números do consumo, a televisão foi um dos bens de consumo que registrou um dos maiores índices de crescimento. Em 1970 a televisão estava presente em 24,1% dos lares brasileiros e em 2000, em 87,2% deles. Enquanto isso, os computadores estão em apenas 10,6% dos lares.

Desde a compra da Rede Record pela Universal em 1991 (que hoje ocupa o 3º lugar em audiência) a televisão se converteu num dos mais importantes instrumentos para a manutenção diária dos laços entre a Igreja e seu corpo de fiéis; reforçados também por outros meios de comunicação como rádios e o jornal Folha Universal, fundado em 1992, de circulação semanal, gratuito, com tiragem semanal de 1,8 milhão de exemplares. Segundo o contador geral da Igreja Universal, Demerval Alves, que trabalha na sede administrativa da igreja, na cidade de São Paulo, os custos com horários de programação em rádios e televisão somam cerca de 30 milhões de reais mensais.

Em momentos específicos, um canal de televisão próprio pode ser de grande valia. Em longa reportagem exibida no programa Domingo Espetacular no último 24/07, na Rede Record, o jornalista Celso Freitas (ex-TV Globo) abriu a reportagem com as cenas de detenção (em 12/07) do bispo João Batista Ramos, e afirmando que “ao longo de sua história, a Igreja foi vítima de várias denúncias e investigações” e que, o episódio da prisão de Edir Macedo em 1992, ocorreu também em momento de grave crise política no Brasil e “por alguns dias a prisão de Edir Macedo ocupou as manchetes do noticiário nacional”.

Na hierarquia da Igreja Universal, em posição de destaque encontra-se o bispo Romualdo Panceiro (ex-dependente de drogas no Rio de Janeiro) que lidera a Universal no Brasil. Sua jornada de trabalho chega a 18 horas diárias, geralmente aberta às 6 horas da manhã nos estúdios da Rede Record para a gravação de programas/cultos religiosos. Os compromissos em outros estados como visitas a obras em andamento, compra de terrenos para novas edificações, só se viabilizam pelo uso de jatos particulares, prática que lhe é cotidiana. Alguns desses longos dias de trabalho do bispo Romualdo são finalizados com a condução de vigílias de fiéis em catedrais da Universal até a madrugada.

Aos fiéis o bispo Romualdo prega: “acordar cedo e dormir tarde (ouvindo os programas da Universal no rádio e na TV) vale a pena”.

Sobre os traços dessa “ética” o pesquisador da PUC-SP Edin Sued Mansur tece a seguinte avaliação: “eles (os fiéis) acreditam com mais ênfase que os benefícios da relação positiva com Deus, são para aqui e agora. Então se você vai bem na sua vida econômica, financeira, familiar, profissional, na sua saúde física, isso é conseqüência da sua f’é e das suas ações em conseqüência desta fé.”

Mas as ações da Universal e de outras igrejas evangélicas no Brasil desde muito não se restringem aos templos e suas comunidades. Nas eleições de 2002 o crescimento dos evangélicos no Congresso Nacional foi marcante. Foram eleitos 60 deputados entre seus bispos ou pastores, dos quais 23 são da Assembléia de Deus, 22 da Igreja Universal e 8 batistas. Eles eram 48 durante a legislatura anterior.

Foi também no pleito de 2002, que a Universal chegou ao Senado Federal, ao eleger o bispo Marcelo Crivella (sobrinho de Edir Macedo) pelo PL do Rio de Janeiro, com 3,3 milhões de votos.

A força política dos eleitores evangélicos no Rio de Janeiro se fez notar também na escolha para governador do estado. Rosinha Garotinho, ex-Secretária de Ação Social no governo de seu marido, saiu vitoriosa das urnas em 2002. (Lembremos que Anthony Garotinho foi o terceiro colocado no primeiro turno das eleições presidenciais de 2002, sendo avaliado como um espetacular desempenho para sua primeira participação num pleito nacional).

O casal Garotinho converteu-se ao culto presbiteriano Luz do Mundo, e esse vínculo vem revelando-se politicamente rentável.

Na primeira aparição pública do casal, após as votações de 6 de outubro de 2002, ela vestia uma camiseta branca com os dizeres "Jesus é o Senhor", e ele uma camiseta amarela com a inscrição "Só o Senhor é Deus".

Garotinho durante seu mandato de governador do Rio de Janeiro implementou programas sociais como o “cheque cidadão”, restaurantes populares a 1 real por refeição além de um hotel para os sem-teto, a 1 real por noite. Nas duas eleições em que os Garotinho saíram vitoriosos, eles se beneficiaram das redes pentecostalistas organizadas nos bairros pobres e nas favelas do Rio de Janeiro, onde os fiéis votaram conforme as recomendações dos seus pastores.

Em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, em dezembro de 2003, com 2.950 pessoas em cinco capitais do país, medindo a percepção sobre as instituições que mais ganharam poder de influência no Brasil entre os anos de 1995 e 2003, o primeiro lugar ficou com os bancos (61%) e o segundo com a Igreja Universal (49%) entre 12 instituições apresentadas.

Tendo em vista os resultados da pesquisa do Datafolha, em especial sobre a performance da Igreja Universal, Otávio Velho, professor titular da UFRJ ao classificar a sociedade brasileira hoje como “uma sociedade em que o respeito fica bastante associado ao sucesso” avalia que "Essa ideologia do sucesso, da prosperidade, que é uma ideologia da própria Universal, ficou associada à presença na igreja de empresários e à presença forte dela na mídia", e sobre um enfraquecimento da Igreja Católica no Brasil, avalia: “A presença católica no Brasil é estrutural, não é uma coisa que acaba de um dia para o outro.” (Folha de S. Paulo, 04/01/2004).

Reconhecer nas mudanças que se operam em nossa sociedade a inspiração do modelo norte-americano, cuja ética protestante e um tipo de capitalismo se mostram virtuosamente relacionados (relação tão bem estudada por Max Weber) parece-nos uma simplificação que oculta as particularidades de nosso processo histórico. (É bem verdade que o teor religioso da última campanha para presidência dos EUA, os escândalos de corrupção e malversação do dinheiro público em prol de um partido político, os favorecimentos a empresas em troca de doações para campanha, e mais especificamente, as práticas de um grupo que para se manter no poder fez da ética na política uma impossibilidade, estimula-nos a traçar paralelos...)

Nessa direção, merece reflexão certa indiferença da população brasileira diante de denúncias e processos que correm contra algumas de nossas instituições, e mesmo sobre a Igreja Universal, sem que essas abalem-lhes o prestígio.

Desde 1999 tramita no STF inquérito que investiga o suposto envolvimento da Igreja Universal com duas empresas sediadas em paraísos fiscais, Cableinvest e Investholding (nas Ilhas Cayman), que financiaram a compra em 1992 da TV Record do Rio de Janeiro e de outras emissoras coligadas. Recentemente foi pedido pelo ex-procurador-geral da República, a quebra do sigilo fiscal da igreja. O inquérito no STF visa apurar crime contra o Sistema Financeiro Nacional e de evasão de divisas.

Consta no processo que a TV Record do Rio, foi adquirida em nome de seis membros da Universal, frequentadores da igreja no bairro da Abolição, sem qualquer patrimônio pessoal. A emissora pertencia ao bispo Nilson do Amaral Fanini, da Primeira Igreja Batista de Niterói (RJ), e ao empresário e ex-deputado federal Múcio Athayde. A operação foi efetivada em fevereiro de 1992, por US$ 20 milhões, para pagamento em 15 parcelas. Para cada promissória, os compradores assinaram um contrato de empréstimo de valor equivalente com a Investholding ou com a Cableinvest, para pagamento em cinco anos.

Entre os investigados no referido processo está o bispo e deputado federal João Batista Ramos (PFL-SP) – detido com as 7 malas de dinheiro –, e o bispo Marcelo Crivella, senador da República pelo Partido Liberal, mesmo partido do vice-presidente da República José Alencar, que dá sustentação ao governo no Congresso e que tem parlamentares envolvidos nas denúncias que deram origem às CPI’s dos Correios e do Mensalão.

Um dos efeitos da atual crise política no Brasil é a antecipação de um balanço que, normalmente seria feito ao final do mandato do atual presidente da República, mas que nas circunstâncias em que vem sendo feito, projeta-se sobre os vinte e cinco anos de existência do Partido dos Trabalhadores, fato que comporta sérias implicações.

Um dos mais consistentes exercícios de análise das mudanças pelas quais o Brasil vem passando nos últimos anos, contemplando as determinações do espaço interno e externo, vem sendo desenvolvida desde muito pelo sociólogo Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT, que publicou em finais de 2003 o Ornitorrinco (post-scriptum à Crítica à Razão Dualista).

Sobre o Partido dos Trabalhadores, elemento importante na análise de Francisco de Oliveira e que ajuda na compreensão da atual crise política é a reflexão sobre o descolamento do PT de suas bases originais, que ao longo das últimas duas décadas, parte delas, foram também perdendo suas formas, sendo esse um dos fatores que levaram a atual crise política que é em sua natureza, uma crise de representação. Oliveira esboça a seguinte problematização: “No Brasil, como é que você pode ter classe social com uma taxa de desemprego de 20% e uma taxa de informalidade de 50%? Como é possível haver classe? Como a política atua representando uma coisa que não existe?”

Nessa mesma direção o sociólogo trata da formação de uma “nova classe no capitalismo globalizado na periferia” com os ex-sindicalistas assumindo postos como “gestores de fundos de previdência de ex-estatais”.

Diante da atual crise política que envolve o governo Lula, vários membros de sua cúpula vem dando declarações – muitas vezes descoordenadas – sobre os desacertos do Partido após a chegada ao governo federal de seu mais carismático membro. Uma destas confissões de erro foi a migração em massa dos quadros do Partido para “cargos de confiança” na administração pública. Nessa direção o próprio presidente Lula justificou erros na administração do partido, por ter este ficado desfalcado sem suas melhores cabeças. Entre seus opositores, isso foi chamado de “aparelhamento do Estado”.

Nesse particular, os atuais escândalos de corrupção investigados pelas CPI’s instaladas, fez o tema da burocracia estatal ganhar destaque no debate, inclusive no meio acadêmico. A defesa da meritocracia e da impessoalidade para a composição dos quadros da administração pública não é algo novo e na teoria política e sociológica encontra em Max Weber um de seus estudiosos. Já nas primeiras décadas do século vinte, Weber avaliava que: “O papel das qualificações técnicas em organizações burocráticas é continuamente incrementado. Mesmo o funcionário de um partido ou organização sindical necessita de conhecimento especializado. [...] No Estado moderno os únicos cargos para os quais não se exigem qualificações técnicas são os de ministro e presidente”. Weber alerta sobre a importância da burocracia mas também sobre os riscos de sua exacerbação.

Também na esteira das discussões sobre a corrupção e meios de coibi-la, vem ganhando espaço a proposta de limitação do número de mandatos para os integrantes do Legislativo e até extinção da reeleição para o Executivo, anulando a oportunística MP que proporcionou a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, rompendo com uma tradição política brasileira contrária à reeleição.

No século dezenove, o tema já mereceu atenção de autores como Alexis de Tocqueville, que em seu clássico A democracia na América, tratou do tema reeleição e corrupção. Encontramos na referida obra a seguinte passagem: “A intriga e a corrupção são vícios naturais nos governos eletivos. Quando, porém, o chefe do Estado pode ser reeleito, tais vícios se estendem indefinidamente e comprometem a própria existência do país. Quando um simples candidato quer vencer pela intriga, as suas manobras não poderiam exercer-se senão sobre um espaço circunscrito. Quando, pelo contrário, o chefe do Estado mesmo se põe em luta, toma emprestada para o seu próprio uso a força do governo.” (Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo (29/07) o senador Eduardo Suplicy, recorreu ao mesmo autor para aconselhamento ao presidente da República...).

Tendo em perspectiva o quanto neste artigo foi arrolado, apresenta-se-nos como uma das mais graves conseqüências da presente crise política, um processo de descrença na política e generalização de juízos a respeito do modus operandi da classe política entre a população brasileira.

A gravitação do ânimo popular entre o ceticismo com a política (à moda do “cronicamente inviável”) e a crença em novos salvadores, afigura-se-nos como o pior cenário possível para a escolha de representantes nas próximas eleições, aprofundando as raízes daquela que julgamos ser a natureza da presente crise política, uma crise de representação.

Uma naturalização das práticas de corrupção e da promiscuidade nas relações entre agentes públicos e privados engolfando inclusive atores políticos constituídos outrora sob discursos de ética e integridade moral, constituem em si um grave problema, tornando-se ainda mais grave, se seu correlato for um aumento do grau de tolerância da sociedade para com essa lógica redutora da política. Um sintoma desse mal seria a atualização do “rouba mas faz” pelo novo bordão “antes de nós já era feito assim”.

Um balanço negativo do governo Lula extrapolando essa dimensão mais restrita e projetando-se como balanço da trajetória de um partido popular que chegou a contar com uma massa de 800 mil militantes e é considerado o maior partido político da América Latina, tem o potencial de criar um vazio no imaginário popular, imaginário este que nos últimos vinte e cinco anos foi grandemente ocupado pelo PT, com reconhecida competência.

Na decadência de uns, a ascensão de outros atores políticos no papel de aglutinadores do imaginário e da energia popular, reconfigurando valores e crenças, traz consigo um perigo de difícil mensuração.

A convicção da importância do “fazer política” e sobretudo na possibilidade de se aprimorar as formas de participação e representação política configura-se no grande desafio que a presente crise nos lança, sendo este o único caminho para a manutenção da res publica como tal e do republico como aquele que se interessa pelo bem comum.

 

Referências Bibliográficas:

BRASIL DE FATO. Entrevista: O PT não é mais o mesmo; trocou um projeto de nação por um de poder. Edição Nº 123 - De 7 a 13 de julho de 2005
DOMINGO ESPETACULAR. TV Record. São Paulo: Canal 7, 24/07/2005
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista – O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977, p. 108
WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo ideal. In: DIVERSOS AUTORES. Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966, p.22

 




* Arnaldo Francisco Cardoso é cientista político, professor do curso de Relações Internacionais da UniFMU e pesquisador do NEAMP da PUC-SP.

Arnaldo Francisco Cardoso é cientista político, professor do curso de Relações Internacionais da UniFMU e pesquisador do NEAMP da PUC-SP.
compartilhe
Neamp - Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política    Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001    São Paulo - SP - Brasil    Tel/Fax.: (55 11) 3670 8517    neamp@pucsp.br
Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) de Miguel Chaia e Vera Lúcia Michalany Chaia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Unported. Based on a work at www.pucsp.br. Permissions beyond the scope of this license may be available at http://www.pucsp.br.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Design DTI-NMD