ARTE, POLÍTICA E EXPLOSÃO
Miguel Chaia *
Revista Cult - setembro de 2005
A estética da vulnerabilidade, experimentada pelos
sujeitos nos dias de hoje, vem sendo preparada lentamente pela história
e ganha expressividade devido aos impactos produzidos pelos atos terroristas
nos Estados Unidos, na Espanha e na Inglaterra.
É muito antiga, e vem se mantendo permanente, a relação
entre a arte e as guerras, as revoluções e outras ocorrências
sociais. As tragédias gregas deixaram as primeiras pistas de ordem
universal para se perceber o significado que a violência tem sobre os
desarranjos da sociedade e sobre as mudanças dos destinos dos deuses
e das pessoas, sendo que os três grandes autores gregos, Ésquilo,
Sófocles e Eurípides, produziram lamentos nascidos no dilaceramento
da alma humana e na difícil sociabilidade. Entre tantas peças
desses poetas, qualquer uma mostra os heróis épicos envolvidos
com os conflitos cívicos que emergem nas cidades. Um bom exemplo é
a peça Antígona, escrita em 442 a.C., de Sófocles,
que registra as terrificantes relações entre guerra, tirania
política, família e indivíduo.
Modernamente, William Shakespeare produziu seus dramas enquanto herdeiro de
um novo tipo de tragédia, reafirmando pela expressão literária
a fragilidade do ser diante dos conflitos internos e externos. Desde suas
primeiras peças históricas, a partir de 1551, como Henrique
VI, passando por Titus Andrônicus, até seu
testamento final com A Tempestade, Shakespeare realiza encenações
da vida dos sujeitos e das instituições sendo afetadas duramente
pelas guerras, revoltas, usurpações e assassinatos políticos.
De forma geral, as peças de Shakespeare têm início com
uma guerra e terminam com outro confronto bélico, instaurando uma paz
efêmera. A violência bélica afeta diretamente a vida das
pessoas que circulam em torno do poder, marcando as (im)possibilidades afetivas
e sociais. Para este dramaturgo, a história é cíclica,
impedindo que os homens eliminem de suas relações as guerras
e as revoltas. A história se desenvolve expondo continuamente a guerra,
a paz, a guerra, a paz...
De forma esclarecedora, a arte serve como um dos mais instigantes indícios
para se compreender a política como tragédia. Isto significa
que a organização política da sociedade não traz
a garantia da estabilidade social, nem a garantia da preservação
da vida individual. O campo social está permanentemente aberto às
contingências e o pretenso controle que se objetiva alcançar
politicamente com freqüência transforma-se num inusitado descontrole
social. O inesperado pode se abater a qualquer instante sobre os homens, mesmo
que eles tenham a guarda do Estado e a presença e funcionamento de
inúmeras instituições políticas.
A arte vem indicando de maneira contundente que a esfera do político,
ao invés de representar o controle do espaço público,
deve ser compreendida como o lugar do confronto permanente entre o homem e
seu destino, como o locus dos conflitos intermináveis. Os riscos e
as desgraças são inerentes não somente à vida
mas também às condições da ação
política. Os acontecimentos trágicos são aqueles que
reafirmam a conexão entre o destino individual e o destino coletivo.
Qualquer passageiro de um ônibus em Jerusalém ou Londres tem
seu destino irremediavelmente ligado à história do Oriente Médio
ou às questões que envolvem a Irlanda do Norte. No limite, todas
as dimensões se entrecruzam, fazendo convergir para um único
vagão de metrô as pressões originadas no leste ou oeste,
no norte ou no sul.
As experiências do final do século XX e início deste século
mostram que ninguém vive isolado do mundo. Este encontro orgânico
do homem com o planeta tem sido um dos temas mais vibrantes da arte, que ao
tratar dele tem aprofundado a sua dimensão política. Já
no século XIX a literatura revelou o universo escuro das práticas
terroristas, com Os Demônios/Os Possessos, de Dostoievski.
Neste livro germinal aflora a difícil sociabilidade entre os homens
e a complexa subjetividade no mundo, ao abordar os radicais políticos
maculados pela própria natureza humana e pelos sombrios porões
da sociedade. O terrorismo leva a pensar na metáfora de uma escura
caverna política, cujos habitantes escapam inesperadamente para ações
externas. Esta imagem do ativista radical desdobra-se também nas obras
literárias de Joseph Conrad, Albert Camus e André Malraux que
elucidam os momentos da vida quando perpassada pelo clima de Oh horror!
horror! horror! / Boca nem coração poderão nunca / Nomeá-lo
ou concebê-lo, conforme tradução de Manuel Bandeira,
para Macbeth de Shakespeare.
A visualidade do terror que se abate sobre a humanidade encontra expressões
magníficas em obras como a série de gravuras Os desastres
de guerra, de Goya, e Guernica, de Picasso. Estas obras
que ganham simultaneamente significado político e estético,
reduzem os conflitos à cores branca e preta para melhor expressar a
dor que advém das devastadoras ações políticas
inventadas pelos homens. Recentemente, Fernando Botero realizou uma série
de pinturas para mostrar o absurdo da violência gerada pela guerra civil
colombiana. Nestes trabalhos emergem cenas de guerras, retratos de seqüestros,
massacres, enterros e carros bombas.
Bogotá encontra-se na mesma situação que Londres e, de
certa forma, também se assemelha ao Rio de Janeiro. As notícias
das guerras localizadas esparramam-se pelo planeta, incluindo a guerra particular
da repressão concentrada nas favelas cariocas. A vida nestes territórios
em litígio transcorre no espaço das confrontações
entre policiais e traficantes, como apresentou o documentário Notícias
de uma guerra particular, de João Moreira Salles, que conseguiu
sintetizar na tela a vida trágica vivenciada nas grandes metrópoles
brasileiras.
O terrorismo que atinge os países centrais surge em outras formas nas
nações periféricas, banalizando a violência e colocando
o conjunto da população sob um permanente estado de prontidão.
Países ricos e pobres passam por um aprendizado social que engendra
uma nova sociabilidade cotidiana cujo fundamento está na assimilação
da idéia da fragilidade da vida. Mesmo que tenha crescido o controle
social e a indústria da segurança pública e particular,
os indivíduos estão aprendendo rapidamente que a vida está
sempre por um fio. A convivência com o horror é diária
e desta condição deve nascer uma nova sensibilidade e uma nova
percepção de estar no mundo. Uma estética do cotidiano
está sendo forjada na contundência da lembrança de Antonin
Artaud, ao indicar com desencantamento, que o artista pode se tornar um suicidado
pela sociedade. Agora, entretanto, com a freqüência dos atos terroristas,
a sociedade vem se desenvolvendo com tal sentido do horror que todos os indivíduos
tendem a se sentir como possíveis suicidas pela sociedade. Não
se trata mais apenas do artista como alvo privilegiado do ataque social, uma
vez que a sociedade capitalista reduz permanentemente o espaço para
a poesia. Atualmente, pela violência deflagrada, cada pessoa e o conjunto
de habitantes podem fornecer os corpos para arder no cenário das cidades.
A instabilidade se instaura no cotidiano como resultado de violências
inventadas que possuem a capacidade de eclodir em qualquer área ou
território. Neste sentido, vem se realizando um deslocamento da estética
da guerra para uma estética do terrorismo.
A estética da guerra está vinculada à crescente proletarização
dos homens e à crescente massificação, nas circunstâncias
de confrontos entre estados-nações, como conceitua Walter Benjamin,
em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
A estetização da vida política encontra seu fundamento
na II Guerra Mundial. A estética da guerra envolve a coordenação
do Estado, a delimitação estratégica dos campos de batalha
e a disseminação concatenada de ideologias. Nestas condições,
bombardeios e perseguições convivem com representações
artísticas da arte nazista, do realismo socialista e até do
futurismo. Mesmo sofrendo os impactos devastadores da guerra, são colocadas
em circulação esperanças e utopias de novas sociedades
e de novos homens. Nesta estetização política afirma-se
que o futuro está para ser construído por meio da violência
armada, por isso não é de se estranhar que no limite desta estética
desenha-se a guerra como meio para atingir a pureza e a beleza (nazismo),
a revolução como meio de construção de uma sociedade
igualitária que encontra no trabalhador a sua matriz (comunismo) e
a tecnologia bélica como símbolo de modernidade e de progresso
(futurismo italiano, cujo expoente máximo, Marinetti, repetiu várias
vezes que A guerra é bela). Todos estes valores estão
estampados no rosto ariano, nos sorrisos e punhos dos trabalhadores ou na
face de mármore de Mussolini.
Por sua vez, uma estética do terrorismo não encontra seus fundamentos
na coordenação do Estado-nação (a não ser
no caso do terrorismo de Estado) nem na guerra mundial definida; não
enfoca a possibilidade da utopia, nem carrega a esperança do futuro;
não é portadora de ideologia estruturante nem antecipa a possibilidade
de uma nova sociedade e de um novo homem. A estética do terror brota
suas raízes na irradiação de um bloco hegemônico
internacional e nas conseqüentes reações e resistências
às imposições de um Império que se quer universal.
Atualmente, o terror não se apresenta com uma face definida, sendo
que o mundo de hoje experimenta a estética do terrorismo baseado na
expansão de territórios, desrespeitando fronteiras e potencializado
para realizar ações em qualquer hora e dia.
A estética do terrorismo tem na imagem sua principal estratégia
de disseminação. É no ato espetacular transmitido pelos
canais midiáticos, como a Internet, a televisão e a imprensa
escrita, que ele encontra sua eficiência e força. Basicamente
a cidade é o seu principal alvo, tornando as metrópoles mundiais
as melhores caixas de ressonância de suas práticas violentas.
A potência imagética da queda das torres gêmeas do World
Trade Center faz com que o desabamento não ocorra apenas em Nova York
mas em qualquer canto do mundo, jogando petardos na intimidade do indivíduo.
O Pentágono destruído na sua perfeição geométrica,
as áridas ruas de Bagdá devastadas por carros bombas, as estações
de metrô de Londres soterradas por explosões, os corpos dilacerados
na movimentada rede ferroviária de Madri e os ônibus retorcidos
de Jerusalém atingem a retina do indivíduo contemporâneo,
formatando sua subjetividade.
A intolerância brota contra a figura do homem moreno e barbudo, o medo
aflora ao se detectar uma mochila ou um pacote deixado no chão e a
suspeita se acende frente a qualquer desvio comportamental. Uma estética
política vai se construindo na vida cotidiana, gerada pelo impacto
das sucessivas imagens, alimentada pelo medo do outro diferente e pontuada
pela desconfiança do objeto fora do circuito da mercadoria.
Não há mais a segurança prometida pela política,
nem a estabilidade a ser propiciada pelo Estado. Assim como o Império
se expande, a sua outra face, o terrorismo, também se amplia. O compositor
alemão Carlheinz Stockhausen, logo após os atentados de 11 de
setembro de 2001, em Nova York, teria afirmado que estes ataques terroristas
constituíram a maior obra de arte de todos os tempos. Stockhausen estaria,
assim, lembrando o papel da destruição no mundo da arte.
Efetivamente, a estética da guerra foi superada, dando lugar à
experiência do confronto entre sistema e bandos, que demonstraram que
este sistema não é impenetrável. Nestas condições,
a cultura da violência encontra seu par complementar na cultura do ódio,
a mídia do entretenimento tem continuidade na mídia em transe,
e a irracionalidade das massas pontua-se pela mutilação individual
e coletiva.
Na estética do terrorismo, a experiência concreta se dá
pela introdução da imagem no indivíduo e pela alocação
da pessoa no acontecimento. Centenas de seres humanos desaparecem nos destroços
dos atos terroristas, outras centenas são feridas. Milhões de
espectadores compartilham estes trágicos acontecimentos, como se fosse
um espetáculo de reality show. Nesta estética política
não há mais lugar para a representação, uma vez
que ela se fundamenta na experiência concreta do dano ou na recepção
da transmissão direta do desastre. Vive-se a corriqueira prática
da guerra inesperada nas ruas, nos escritórios, nos trajetos dos transportes
públicos e, chegando em casa, alojando-se na trincheira de uma poltrona,
o indivíduo assiste pela televisão o espetáculo da violência,
completando o ciclo desta experiência estética do cotidiano.
O fato deflagrado pelo ataque terrorista é a obra e dele participam
pessoas direta e indiretamente. A performance ganha insuspeitada significação,
nesta nova relação entre arte e política. Qualquer um
está sujeito aos riscos terroristas, podendo participar desta violência
inventada. Se o indivíduo não for atingido na rua, com certeza
a eficácia política do terror o alcançará na rede
de Internet ou na rede de televisão. Assim é que a estética
do terrorismo é dada na descoberta da instabilidade e fragilidade da
vida e na constatação da insuficiência e limitação
da política.
* Miguel Chaia é professor do Departamento de Política e da Pós-Graduação em Ciências Sociais e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política, da PUC-SP.

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