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A IMPOSSÍVEL CALMARIA
Anotações sobre A Tempestade, de William Shakespeare

Martin Aranguri*

 

Prescreveu-se a atenção ao discurso do autor; foi feita a prevenção às tentativas de associação das idéias de um com os outros – instou-se à não-contaminação.

Pediu-se que não se falasse na relação entre polícia e política, mesmo quando estas desfilavam a olhos vistos durante toda a peça: que seria anacrônica uma vez feita, afinal, Shakespeare não possuía esses conceitos contemporâneos da filosofia e da política (não da filosofia política); desejou-se que não se fizessem alusões ao título da obra de Sloterdijk, mesmo quando a metáfora da nau em meio à tempestade, “with thunder and lightning”, grita em meio ao burburinho dos marinheiros forçados: dos galés que conduzem o navio com a fina flor da nobreza italiana em seu bojo: um duque, um príncipe, um rei e alguns cortesãos e servidores.

Procurou-se atentar a quatro questões na peça: a relação entre conhecimento e exercício do poder; a utopia; a conspiração e a relação entre destino e vontade.

A análise destes tópicos teve como fim jogar luz sobre a idéia da política como tragédia ou a política como conflito insolúvel. Neste trabalho, é sintomática a recorrência dos temas enunciados, o que pode levar à percepção da redundância: que o perdão lhe seja concedido.

Uma nau atormentada

“Do you not hear him? You mar our labour.
Keep your cabins; you do assist the storm”.

A embarcação do Ato I d’A Tempestade é a alegoria perfeita para a política do não-litígio: ou seja, um contra-senso. Existe uma cadeia de comando militar (e fica muito difícil objetar à assertiva de que a disciplina naval é tão ou mais feroz do que a disciplina militar das tropas terrestres): não se discute, não se questiona – um mestre, um contramestre e marinheiros. É antipolítica: a observância de algo que já fora prescrito.

‘Tend to the master’s whistle. – Blow till thou
burst thy wind, if room enough!

Shakespeare não os nomeia; e diga-se de passagem: são criminosos condenados que trabalham nas galeras, sentença então muito em voga entre os povos do Mediterrâneo, cuja riqueza e glória foram forjadas na navegação. A nobreza está dentro – mas não entende de mar, de ondas, de velas, de ventos e de estrelas... muito menos de tempestades; seu império fica coagido, restrito ao saber do especialista – à mercê alheia.

“E mesmo assim teimam em subir ao convés para palpitar! A ousadia dos sujeitos!” – esse é o sentimento do contramestre, tão insolente e tão sensato, tão seguro de si, e, por isso mesmo, tão ousado, pois, em sua nau (ou seja, em seu domínio), esqueceu a hierarquia real que atravessava o seu corpo, aquele navio e aquelas águas, um ponto qualquer entre Nápoles e a Tunísia, unido em cruz por um casamento fortuito entre princesa e rei, respectivamente.

Good, yet remember whom thou hast aboard.

Um pequeno lembrete de Gonçalo que procura restituir a situação à sua verdade vertical. Entre os nobres e os marinheiros forçados – principalmente entre o conselheiro Gonçalo e o contramestre – há política, já que um corpo ignorante procura contestar o saber do especialista e intrometer-se no processo decisório que, no fim das contas, diz respeito a todos os que estão dentro do navio. Ironicamente, o governo da nau não está nas mãos do rei; mas isso ele não consegue suportar: afinal, ele sempre foi o timoneiro!

O poder do soberano desconhece intervalos. Mas pouco se pode fazer quando ocorre o acaso: o acidente. Restam os prantos de um lado; e o sorriso de canto de boca do outro. Um, enfeitiçado sem o saber; o outro, feiticeiro ordenador que retirou seu poder do saber de seus livros – conhecimento que pôde ser usado para reconquistar o que perdera.

Próspero hibernou durante tanto tempo longe da coisa pública, dos negócios da terra que estava a seu comando, enfurnado em sua biblioteca, que acabou levando um golpe. Ironicamente, o que o levou a perder o poder vai elevá-lo de volta ao seu lugar de origem, porém com uma experiência muito maior: com o tirocínio de um homem que tombou e soube se reerguer.

Um naufrágio provocado

“(…) Would I had never
Married my daughter there! For, coming thence,
Mi son is lost; and, in my rate, she too,
Who is so far from Italy removed
I ne’er again shall see her”.

Alonso, o rei de Milão, nunca maldisse o céu e fez os deuses caírem em desgraça pelo seu naufrágio – ele se arrepende; ele gostaria de ter voltado atrás e retirar a viagem. Ao fazê-lo, reconhece implicitamente que o destino e a fortuna são feitos pelos próprios homens.

Tampouco o acidente fora causado pela intervenção divina, seja como castigo para punir os pecadores, seja como provação outorgada por um Deus que não está muito seguro da fidelidade de seus seguidores.

Não; foi obra humana, trabalho próspero de Próspero que, com o conhecimento contido em seus livros (fornecidos por Gonçalo quando do exílio do Duque de Milão) reforçou uma relação que por todos os lugares anda de mãos dadas: a relação entre saber e poder.

Próspero, ex-Duque, se é poderoso o é porque possui determinada informação capaz de criar eventos extraordinários e chamar a si a obediência de vários espíritos, além de domar criaturas meio-humanas que cheiram a peixe, como Caliban, o escravo ingrato. Por outro lado, Alonso, que pode até ser um rei bom na medida do possível (pelo menos, essa é a leitura feita desse personagem neste trabalho), é mais fraco do que Próspero porque está à mercê deste; afligido por uma tempestade que ele não sabe ao certo como aconteceu, submete-se à desgraça bastante calado (ele fala pouco até então), tamanha deve ser a sua dor: à qual acorre Gonçalo, tão sábio conselheiro, procurando aliviar as angústias de seu senhor:

(…)Our hint of woe
Is common; every day some sailor’s wife,
The masters of some merchant, and the merchant,
Have just the theme of woe. But for the miracle,
I mean our preservation, few in millions
Can speak like us.

A aparição da ignorância como via aberta para a submissão nesta peça surge na figura de Miranda, a adolescente de 15 anos que nada sabe e de nada soube durante os 12 anos que ficara presa naquela ilha com o seu pai, o Duque deposto transformado em feiticeiro; desconhecendo a sua situação e as circunstâncias, é uma personagem crédula e ingênua, e, por isso mesmo, pura e virtuosa, como quer Shakespeare.

Quando Próspero vai ao encontro do casal recém-formado, Fernando e Miranda, e os encontra jogando xadrez, ela consegue perceber que existem outras pessoas na ilha – que há outras pessoas no mundo! -, mas isso sem saber que entre elas estão inimigos e amigos de seu pai, gente que tramou contra a sua própria vida (Antônio) e gente que tentou ajudá-la (como Gonçalo) no momento da perdição.

O wonder!
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is! O brave new world
That has such people in’t!


A insidiosa ambição de Antônio e Sebastião é fruto da vontade deles – resultado de um saber revelado que lhes apresenta uma escolha: tentar tomar o exercício do poder de Alonso ou continuar sendo servos. O argumento de Antônio é bem convincente: antes, os homens de Próspero eram pares seus; depois do golpe, viraram seus homens – “viu só como a minha condição melhorou?”, diria ele em outras palavras, “basta querer; tome-o!”.

Sebastião, muito fraco de caráter, caiu na armadilha preparada por Antônio – embora não ficasse explícito, está claro que se o plano deles tivesse funcionado, o futuro Rei de Nápoles teria ascendido ao trono por sugestão e favor do Duque de Milão, uma posição que não é muito confortável para quem quer manter a conquista. Logo, logo, Sebastião seria deposto por Antônio, cuja concupiscência ainda está para encontrar seu equivalente.

O destino em A Tempestade existe só na medida em que ele é tecido pelos próprios homens – sem intermediação exterior. É a vontade deles que os faz cair e ascender; é o querer e o poder deles que lhes colocam pedras no caminho, para que tropecem continuamente. Portanto, cabe aos próprios homens resolver o imbróglio – cuja pathos é ser irresolúvel.

Muitos não suportam essa incerteza constante, o substrato da política. Então, estes desenham belas utopias que são tudo, exceto sociedades de conflito. O consenso é tramado pelos guerreiros fatigados. Querem a paz – e assim matam a política.

A república do ócio

“I’th’ commonwealth I would by contraries
Execute all things”.

Utopia de Gonçalo, o sábio conselheiro, escarnecido por Antônio e Sebastião, os dois bufões – um, ambicioso, desenfreado e imoderado; o outro, grosseirão, suscetível e pusilânime.

“Ótima” companhia que mofa de tudo porque nada compreende, responsável pelo estalar de dedos que restitui o sonho à vigília, o devaneio ao despertar da realidade: é impossível uma república do ócio, onde a existência passe deitada com a ponta dos pés para o alto esperando que a natureza dê tudo sem a intervenção do trabalho humano; mas para os dois, é realmente repulsiva a idéia de que possa existir uma commonwealth sem soberano – afinal, não é nesse ponto que eles procuram interromper Gonçalo?!

(…) For no kind of traffic
Would I admit, no name of magistrate;
Letters should not be known; riches, poverty,
And use of service, none; contract, succession,
Bourn, bound of land, tilth, vineyard, none;
No use of metal, corn, or wine, or oil;
No occupation, all men idle, all;
And women too – but innocent and pure;
No sovereignty -

Sem labuta, sem esforço? Ótimo! Mulheres virgens e puras? – que venham todas agora! Mais, mais! Porém - nada de soberano... o quê?! Sem soberano?, absurdo!, isso não existe!

Mas este, impassível, prossegue a sua narrativa, uma vez que se reporta ao rei e não aos dois bobos da corte, nobres ou não. Contudo, a república de Gonçalo, que seria tão excelente quanto “the Golden Age”, seria não-política também; uma sociedade sem conflitos, sem empreendimentos, sem desventuras, sem guerras – uma sociedade do consenso, da paz e da tranqüilidade que pode ser propícia à criação artística e ao pensamento filosófico, mas nunca à política, conflito permanente, estado de natureza hobbesiano, verdadeira aporia que se frustra a todo momento, acreditando encontrar uma solução definitiva cuja condição é realmente provisória e efêmera como areia ao vento: posso fechar o meu punho o quanto quiser, cedo ou tarde, os grãos escaparão pelas fendas e rachaduras dos dedos e da palma.


As conspirações do saber e do poder

“(…) Thy case, dear friend,
Shall be my precedent. As thou got’st Milan,
I’ll come by Naples. Dray thy sword. One stroke
Shall free thee from the tribute which thou payest,
And I the King shall love thee”.

Um “maria-vai-com-as-outras”: Sebastião. Seduzido pela eloqüência amoral e muito lógica de Antônio, convence-se de que depende dele e não da vontade dos deuses – dele, de sua vontade – subir ao trono em detrimento do irmão, do sobrinho e da sobrinha, afastada por um mar de distância. E que importa a consciência, afinal de contas? A política desconhece a moral – é alheia a ela -, como diria Antônio,

(...) Twenty consciences
That stand ‘twixt me and Milan, candied be they,
And melt ere they molest.

Preparam o golpe, escolhendo. Próspero não os induziu à falta, segundo o seu ponto de vista, ou seja, usurpar o trono. O feiticeiro da ilha tampouco falou por eles como um ventríloquo usa de sua arte com os fantoches; não existiam cordas que os controlassem. Como o Deus supremo e bom de Santo Agostinho, ele ordenou as circunstâncias, preparou o terreno, deixou tudo prontinho: o crime de sedição, alta-traição e lesa-majestade é responsabilidade dos autores.

Outros conspiradores apareceram nas figuras de Stefano e Trinculo, os quais, a pedido de Caliban – e seduzidos pelo possível reinado em uma ilha fantástica, além do casamento com Miranda, condição que seria muito distinta da servidão deles em terra-pátria -, procuram retirar os livros de Próspero, a fonte de sua sabedoria, e armar-lhe morte diligente. Como a tramóia deles foi desbaratada pelo previdente feiticeiro e pelo seu fiel servo Ariel, restou-lhes dizer que tudo acontecera por obra da fortuna, quando eles mesmos foram os artífices de sua própria desgraça.

Every man shift for all the rest, and let no man
take care for himself, for all is but fortune.


Todo o desenrolar da peça aponta uma tentativa de vingança por uma injúria sofrida. Próspero, a vítima – Antônio, o principal agressor, com a coadjuvação de Sebastião e a conivência marginal de Alonso. Essa vingança acaba virando perdão, ocasionado pela exortação de Ariel, que viu a verdadeira contrição dos sofredores. Próspero, um ser humano, tocado pela sensibilidade de uma figura não-humana como seu servo, decide que se ele, um espírito, conseguiu sentir compaixão pelos mal-feitores, então cabia ao ex-Duque ser magnânimo e reconciliar-se com seus algozes através da misericórdia.

Though with their high wrongs I am struck to th’
quick,
Yet with my nobler reason ‘gainst my fury
Do I take part. The rarer action is
In virtue than in vengeance. The being penitent,
The sole drift of my purpose doth extend
Not a frown further. Go release them, Ariel.

Então, o que parecia ser a história de uma vingança então vira a história de um perdão. E no Epílogo, fica Próspero – esse soberano que dá tudo quanto pode, desde que lhe obedeçam à risca sem contestá-lo – esperando os aplausos e o perdão da platéia. E ele os consegue, por enquanto.

Mas se a política é tragédia, A Tempestade é apenas o primeiro ato de uma série de reviravoltas do poder político que ainda seria sofrida pelos dois soberanos, tanto Próspero como Alonso – pois é impossível precaver-se e prever todas as conspirações, exceto por meio da magia. A esta, o ex-feiticeiro que voltou a ser Duque renunciou.

Que Próspero enterre o seu livro na areia, despojando-se da ajuda sobrenatural – agora, ele não precisa mais disso: conta com as suas próprias forças e a experiência de nunca confiar o seu governo aos outros, por mais aparentados que estes sejam.
Certas coisas precisam ser feitas pessoalmente.


Bibliografia

SHAKESPEARE, William. “The Tempest”. In: TAYLOR, Gary; WELLS, Stanley (editores). The Complete Works – Nova Iorque: Oxford University Press, 1988.

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