Pauta mudancista
Carlos Alberto Furtado de Melo
Normalmente, as previsões, em política, servem
para que se conclua que, em política, não se deve fazer previsões
e muito menos dar atenção a elas. Se a política é
como nuvem, a ciência política é a meteorologia da desconfiança.
De modo que, no Brasil atual, independente das massas de ar, o mais seguro
é sair de casa com guarda-chuva. Tendo isto em mente, pode-se prever
que, em 2006, o cenário seja naturalmente tomado pelos escombros e
ressentimentos de 2005. É verdade que para saber isto não é
preciso mais que a intuição do ancião que acorda com
dores nas costelas, vê o tempo nublado e diz: vem chuva.
O que parece menos prosaico, no entanto, é que a próxima eleição
será (nos discursos e programas) indelevelmente marcada pela tentativa
de mudança da pauta econômica. A paciência da classe média,
formadora de opinião e, por decorrência, dos atores políticos
parece estar se esgotando. Propostas de correção e mudanças
de rumo vão ganhando consistência política; isto é
fato. Eis um raio cheio de eletricidade no horizonte.
Se em 2002 os candidatos concordavam com os princípios da estabilidade
e da rigidez fiscal necessária, em 2006 tendem a apresentar projetos
que insinuem o rompimento com o que chamam de armadilha do superávit
primário, dos juros elevados e do câmbio desajustado. As
candidaturas desde já colocadas representam forças sociais descontentes
ou atingidas pelo o que passou a ser chamado de ortodoxia econômica.
Naturalmente, seus representantes vocalizarão o sentimento das
bases. Pouco importa a justeza ou correção dos discursos,
o certo é que, mais que a questão da ética (no mínimo,
no mesmo nível) será a economia o alvo das críticas e
sua pretensa superação a estrela das promessas para 2007.
Por antecipação e por convicção ideológica,
o novo diretório do PT percebeu este fenômeno e resolveu sair
à frente no ataque ao malanismo/paloccismo. As críticas revelam
o desconforto de quem se acostumou com a oposição e não
se aclimatou com o governo, mas não é só isso. Há
um jogo: o Lula, por enquanto, faz ouvidos moucos e cara de paisagem. Sabe
que em ano de eleição não se faz marola; a lambança
se for inevitável que fique para o próximo mandato.
Mas, é claro, que a postura do diretório pode servir ao presidente
como bandeira discursiva para a superação dos marcos de
neoliberalismo em um novo governo. Uma porta aberta, quando todas as
outras podem se fechar, a depender dos apoios que a oposição
angarie. De modo que diretório lhe propicia a tangente do descolamento
de si mesmo; a promessa de superação da herança
maldita, enfim. O maior desenvolvimento da história, que
este país já viu, por meio da simples elevação
do gasto público. Uma festa de imagens hiperbólicas e ocas.
Desejada pelas bases, a inflexão à esquerda também
pode servir como saída para eventual fracasso da economia em 2006;
alternativa a Antônio Palocci e sua equipe. Há um tanto de esquizofrenia
nisto, como afirmam os tucanos? Pode ser, mas é necessário colocar
o pé em duas canoas. A ambigüidade interessa. Como também
o PT e os movimentos não têm alternativa viável ao presidente,
o mais provável é que todos prefiram acreditar em todos, apostando
no acúmulo de forças e num encontro de contas para
depois da eleição. Por enquanto, o povo unido jamais será
vencido e vamos em frente. Em caso de emergência, quebrem-se os
cristais.
Na oposição o discurso já é mudancista. Entre
os tucanos, até mesmo Geraldo Alckmin de quem se espera maior
contenção verbal e moderação política
externa a preferência por uma nova pauta econômica. Em recente
programa de televisão, o governador apresentou desenvoltura em vários
pontos surpreendente, independente de considerações sobre o
mérito. Foi, politicamente, eficaz; entrou de sola na roda viva da
disputa tucana: alinhou um projeto com o qual pretende seduzir as bases. Não
se limitou ao "choque de gestão", ponto que, na comparação
com o atual governo, também deve ser exaustivamente explorado. Filiando-se
à pauta mudancista, foi além. Embora tenha deixado algumas lacunas
lógicas, do ponto de vista político, foi mais afirmativo do
que se poderia imaginar ("sou candidato, sim"); mais incisivo que
de costume ("a política econômica está errada"),
mais sarcástico do que normalmente se permite ("o [picolé
de] chuchu é um ganhador de eleições; teve 12 milhões
de votos"). Fez a alegria da classe média e do empresariado ao
afirmar que esse Estado não serve para nada, que é
preciso cortar gastos e impostos; aumentar os investimentos. Dificultou,
assim, o caminho de José Serra, tomando-lhe, em grande medida, o discurso;
implementando doses de agressividade que em Serra assusta. Seu maior desafio
será ganhar a densidade eleitoral nacional que hoje não tem.
Corre contra o tempo, seu timing é março.
Já as posições de José Serra são sabidas.
Seu estilo também; o trator de que se utiliza é, normalmente,
mais avassalador que o de Alckmin. Nos bastidores, já joga duro com
aliados e com o sistema político. A queda-de-braço com o PFL
e com o anti-serrismo tucano teve novo round com as declarações
a seu favor, feitas por César Maia, seu amigo de longa data. No mais,
não facilitará a vida da atual equipe econômica (Palocci)
nem a memória da anterior (Malan). Será seu próprio ministro
da Fazenda, enfrentando sozinho o debate, sem medo e com a contundência
que lhe é peculiar. A natureza econômica de sua candidatura consistirá
em rever tudo, questionar tudo: política monetária, cambial
e fiscal, além da promessa (também ele) de um choque de gestão.
O abandono dos princípios de responsabilidade fiscal é improvável,
no entanto, o deslocamento estratégico em relação aos
anos FHC está explícito nos pronunciamentos dos dois principais
candidatos do PSDB. Os tucanos perceberam que um FHC redivivo lhes é
de pouca ou nenhum valia. O negócio é fugir para frente.
Esta hipótese de mudança da pauta econômica torna-se ainda
mais plausível se, por fim, o PMDB optar pelo nome de Anthony Garotinho.
Politicamente mais ousado que qualquer outro candidato até por
não carregar tão efetivas chances de vitória ,
o ex-governador do Rio lançará mão de um discurso de
rompimento com o status quo. Seu diapasão é conhecido: falará
da tal vontade política, ou da falta dela. Interpretado
agora por Carlos Lessa, o sambaenredo prometerá um projeto desenvolvimentista,
com cores mais nitidamente nacionalistas que os demais concorrentes. O estilo
ficará por conta das pegadinhas, do arrebatado populismo
e das orações de louvor e predestinação do candidato.
Se vier a ser concorrer, será religiosamente o mais cruel crítico
da política econômica.
Optando por Germano Rigotto, a tendência do PMDB também será
a retomada o discurso nacional-desenvolvimentista do antigo MDB, mesclando-o
com recordações nostálgicas de vultos como Ulisses Guimarães.
Uma candidatura para composição no segundo turno. Uma hipótese
de diferenciação, no entanto, poderia ser a definição
de Nelson Jobim como candidato do partido o que hoje parece menos provável.
Neste caso, pode-se concluir que a legenda buscará espaço acima
das questões econômicas, apresentando uma candidatura eminentemente
política, reformista e conciliatória, de diálogo nacional.
Jobim retomaria a idéia de pacto, tanto mais consistente quanto mais
a crise política se aprofunde. Já a crise norma ou sob controle
desvitaliza Jobim, que pode não empolgar. O diálogo nacional,
de qualquer modo, consistiria na mesma disposição mudancista.
Jobim estaria dentro do mesmo contexto que os demais.
Outros nomes Ciro Gomes, Jefferson Peres, Roberto Mangabeira Unger,
Cristóvão Buarque não fogem do modelo de mudancista.
De tal forma que as diferenças entre os candidatos estarão mais
no tom, do que no tipo de política que apresentarão. É
verdade que, no governo, a lógica da governabilidade se impõe:
amarras constitucionais, falta de maiorias unificadas e sólidas no
Congresso, fragmentação e heterogeneidade dos partidos, interesses
e divergências entre os estados da federação, oportunismo
e ou revanchismo de quem estiver na oposição e dependência
de capitais para o financiamento do Estado tendem a moderar os ímpetos
e a aplacar as ilusões. Como enfrentar isso tudo? Ninguém diz.
O fato é que o espectro de uma pauta mudancista está posto e
volta a rondar o Brasil. O maior problema é que esse espectro pode,
mais pela sua existência do que pela sua viabilidade e risco, despertar
um monstro de verdade: a especulação e o medo dos investidores.
Como sempre haverá uma amanhã e com ela um presidente que será
julgado pela história, os candidatos mais viáveis serão
obrigados a monitorar a tensão que podem causar; pular, num pé
só, o fio dessa pauta. O discurso mudancista carecerá de dosagem
política e base na realidade. Será possível? Previsões
demais para uma conjuntura tão volátil. O certo mesmo é
que pode chover.
Carlos Alberto Furtado de Melo Cientista Político, Doutor
pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São
Paulo. (carlos.melo@ibmec.br)

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