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Política Externa e Desenvolvimento Nacional:
por onde vai o governo Lula?

Arnaldo Francisco Cardoso*

 

Já no discurso de posse do presidente Lula, em 1º de janeiro de 2003, a ênfase em temas de política externa despertou curiosidade generalizada sobre a condução que teria a pasta das Relações Exteriores em seu governo, e como as ações desta se articulariam para o cumprimento da missão assumida de retomada do crescimento econômico para o desenvolvimento nacional. Completados três anos de governo, o tema ainda suscita mais indagações que respostas.

Entre analistas e demais formadores de opinião, a pergunta que se repetia já no primeiro mês de governo era “o que muda e o que será continuidade na política externa do governo Lula?”, lembrando que, da campanha eleitoral ao discurso de posse o signo escolhido foi o da “mudança” e o principal objeto de crítica o pífio crescimento econômico dos anos anteriores.

As nomeações do embaixador Celso Amorim para chanceler e de Samuel Pinheiro Guimarães para secretário-geral do Itamaraty fizeram aumentar as dúvidas e até recuperar a expressão “turma dos barbudinhos” criada pelo ex-embaixador dos EUA no Brasil Anthony Motley no final dos anos de 1970, para se referir a um grupo de diplomatas (R. Abdenur, J. Viegas, L. F. Macedo Soares, C. Hugueney, R. Sardenberg, entre outros) que defendiam uma política externa independente para o Brasil, o que incluía uma maior aproximação com países africanos e a ênfase no tema do desenvolvimento.

As especulações sobre a afinidade da nova cúpula do Itamaraty com os princípios caros a PEI (Política Externa Independente) de Jânio Quadros não tardaram a aparecer na mídia em matérias e artigos sobre os rumos da política externa no governo Lula, recebendo precipitadamente rótulos de anacrônica e terceiro mundista. No outro extremo, não faltaram aqueles que interpretaram as diversas declarações amistosas em relação aos EUA, como demonstração de submissão ao status quo.

No exercício de se eleger modelos, comparáveis (mesmo que para a mera reflexão), é sempre importante não se perder de vista os contextos. Quando da formulação da PEI, a preocupação com a autonomia na concepção de uma política externa para o país ganhava consistência dada a vigência de um forte antagonismo ideológico regendo as relações internacionais.

Sobre a PEI é importante ainda resgatar que seu ideário se desenvolveu tendo em perspectiva o fracasso da OPA (Operação Pan-Americana) enquanto propulsora de uma maior contribuição dos EUA no processo de desenvolvimento brasileiro.

Como bem sintetizou Altemani de Oliveira:
Constatou-se a existência de divergências profundas entre os interesses do Estado brasileiro, voltado precipuamente para a busca de desenvolvimento econômico e os interesses dos Estados Unidos em sua preocupação e meta de manutenção da segurança internacional. (OLIVEIRA; 2005, 88)

E mais:
Assim, o caminho que se delineava seria a busca de alternativas ao paradigma de política exterior vigente desde o período Rio Branco. Desenvolver os princípios básicos que alicerçariam a formulação da Política Externa Independente (PEI): a autonomia e a universalização. (ibidem, ibidem)

Reconhecendo nos princípios da PEI uma mudança de paradigma em relação às linhas da diplomacia brasileira em curso desde os tempos do barão do Rio Branco, é interessante o exercício analítico de submeter elementos de discursos do governo Lula sobre política externa a uma tentativa de identificação de sua “filiação”, uma vez que em política externa é muito raro o absolutamente novo.

Nessa direção, do discurso de Lula em sua viagem aos EUA em 10 de dezembro de 2002 como presidente eleito, falando no National Press Club em Washington, após reunião na Casa Branca com o presidente George W. Bush, a disposição do governo Lula no que tange as relações com os EUA parece apostar numa retomada em novas bases, de uma “relação especial” entre os dois países.

Vejamos:
Pretendo, logo que tiver tomado posse, dar início a quatro anos de convivência franca, construtiva e benéfica entre os nossos dois países. [...]
[Temos] as melhores condições possíveis para sermos um ativo promotor da estabilidade política, econômica e social na região. Estabilidade que também interessa, evidentemente, aos Estados Unidos.
Queremos ajudar a garantir a paz e a democracia na região, condições essenciais para o avanço social. [...]
[Sobre o CS da ONU] Podem estar certos que, no caso de uma reforma, o Brasil estará pronto a assumir novas responsabilidades. [...]
[Sobre a ALCA] Para crescer, o Brasil precisa aumentar o volume de seu comércio exterior e a ALCA, para nós, pode representar uma verdadeira abertura do mercado dos Estados Unidos e do Canadá. (LULA DA SILVA, 2003, 20-22)

Entre outros críticos da política externa do governo Lula, o professor Demétrio Magnoli em artigo intitulado “Política externa de Lula segue a cartilha de Rio Branco” é direto em apontar elementos caracterizadores da filiação da política externa do governo Lula, acusando-a de submissa, ou de forma mais branda, de realista-conformista (variando de acordo com o grau de propriedade e habilidade na aplicação do modelo).

Lula comporta-se, no cenário externo, como herdeiro da tradição principal da diplomacia brasileira. A liderança da América do Sul foi a meta do barão do Rio Branco, o ‘pai fundador’ da nossa política externa contemporânea. [...] A parceria privilegiada com Washington era uma estratégia para assegurar a autonomia possível para o Brasil [...] Lula segue uma trilha já percorrida, ainda que prefira apresentar-se como pioneiro. (MAGNOLI, 19/01/2003)

Sendo o atual contexto internacional substantivamente diferente daqueles que inspiraram os princípios paradigmáticos acima abordados (Pan-Americanismo e PEI), algumas das semelhanças identificáveis, parecem cumprir mais a função de explicitar as contradições da atual política externa, uma vez que um conjunto de táticas dispersas não configura uma estratégia.

Com o atual estágio de internacionalização da economia, que tornou-a pela primeira vez, global, o espaço da defesa da autonomia em política externa parece reduzido pela prática da interdependência, atualizando o conceito mackinderiano de “mundo como sistema político fechado”.

Do debate intelectual que prosperou na segunda metade da década dos 1990, que teve entre seus temas principais o espaço da autonomia do Estado nacional no contexto da atual globalização, merece nota as formulações apresentadas pelo intelectual inglês Robert Cooper, figura muito próxima do primeiro ministro inglês Tony Blair, sobre a necessidade prática de “novas formas de imperialismo”, que seriam três: a) um “imperialismo cooperativo” entre as nações pós-modernas, b) um “imperialismo da lei das selvas” regendo as relações entre os Estados civilizados e os “fracassados”, incapazes de manter a ordem em seus próprios territórios e, c) um “imperialismo voluntário da economia global”, consentido, que implica na aceitação de “uma nova teologia da ajuda que enfatiza a governança e defende o apoio aos estados que se abram e aceitem pacificamente a interferência das organizações internacionais e dos Estados estrangeiros”. (COOPER; 01/05/2002, 32) O Brasil se enquadraria nesse terceiro tipo.

O professor Amado Luiz Cervo, ao analisar a política externa brasileira da década dos 1990 e a “adaptação à ordem global” como resposta ao desafio da autonomia, põe em foco a ruptura com o paradigma do “Estado desenvolvimentista” (1930-90) e serve-se do conceito de “Estado normal” para caracterizar o conjunto de ações que orientaram a política doméstica e exterior do país, sobretudo durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República.

Segundo Cervo:
A emergência do Estado normal – subserviente, destrutivo e regressivo – nas estratégias de relações internacionais do Brasil teve como impulso conceitual a idéia de mudança. [Isso foi capaz de provocar]: a) revisionismo histórico e a condenação das estratégias internacionais do passado; b) a adoção acrítica de uma ideologia imposta pelos centros hegemônicos de poder; c) a eliminação das idéias de projeto e de interesse nacionais; d) a correção do movimento da diplomacia. (CERVO; 2002, 458)

Voltando-se para os constrangimentos ao crescimento econômico e ao desenvolvimento nacional, o economista, deputado federal e ex-ministro do Planejamento Delfim Netto, em palestra no Seminário Brasil: Propostas de Desenvolvimento promovido pela Câmara Federal em 2004, propôs-se a responder a seguinte pergunta: “Qual é a razão pela qual o Brasil deixou de crescer?”. É sintomático que o enfrentamento dessa questão esteja sendo sistematicamente evitado pelo atual governo.
Em minuciosa análise macroeconômica, farta em números, gráficos e lógica consistente, sem desconsiderar o caráter volitivo da política, Delfim sustentou a tese de que os ajustes econômicos aplicados no Brasil de 1984 a 2002, caracterizados pela combinação de: a) juros internos mantidos em níveis elevadíssimos; b) congelamento do câmbio (6 vezes de 1986 a 2002) e; c) expressivo aumento da carga tributária, levou a economia brasileira a perder seguidamente posições no ranking mundial, revelando seus desacertos em comparação com a trajetória econômica de países como Coréia, México, China, entre outros.

Defensor da vocação exportadora do Brasil, Delfim sentencia: “O setor mais dinâmico da economia, o setor exportador, foi sendo destruído lentamente e com grande competência”.(NETTO; 2004, 10) A crítica mais enfática de Delfim Netto recai sobre a ortodoxia monetarista vigente no período em que o Ministério da Economia esteve sob a batuta de Pedro Malan.

Otimista com o desempenho das exportações brasileiras sob o governo Lula, Delfim alerta para o custo do ajuste nas contas correntes promovido em 2003, uma vez que este implicou o corte na demanda, isto é, corte no consumo das famílias, mas sem o necessário corte no consumo do Estado. Desse quadro extrai-se que, com o sistema financeiro financiando a dívida pública (a dívida líquida em 1994 era de 30% do PIB e em 2002 atingiu o patamar crítico de 56% do PIB) a juros elevados, o Estado além de se endividar e ter limitada sua capacidade de oferta de bens públicos indispensáveis para a retomada do crescimento (estradas, portos, geração de energia...) absorve quase a totalidade do estoque de capital que poderia estar financiando a atividade produtiva.

Identificar as principais variáveis configuradoras do atual quadro macroeconômico do Brasil bem como socio-político, é tarefa que se mostra necessária para uma compreensão da real contribuição que o setor externo pode dar na tarefa de superação do atraso no desenvolvimento do Brasil.

Com a intensificação das atividades na cena internacional, reconhecível pelo aumento do número de eventos em que chefes de Estado são convidados a debater os mais variados temas, e também pela proliferação de novos atores internacionais (governamentais e não-governamentais), viu-se também aumentada a expectativa quanto a contribuição que a pasta das Relações Exteriores possa dar aos seus respectivos países no esforço de superação de problemas domésticos conjunturais ou estruturais.

Lembrando ainda o curto governo do presidente Jânio Quadros, convencionou-se dizer que a Política Externa foi sua grande vitrine em contraste com a mediocridade de suas medidas – sobretudo na esfera econômica – para a correção de sérios problemas domésticos.

Rubens Ricupero, experiente diplomata que é, recentemente expressou em artigo intitulado “Fim do Consenso?” sua apreensão acerca da partidarização da política externa no governo Lula, levando à obstaculização para a formação de consenso diplomático, consenso esse importante para a continuidade das grandes linhas da política externa do país.

Assim, pareceu-nos oportuna a avaliação de Ricupero quanto a uma imprudente utilização da Política Externa, alertando para a “conveniência de não criar a sensação de que o jogo diplomático visa platéia interna afim de compensar a alienação provocada pela economia.” (RICUPERO; 12/07/2005)

Neste 2006, ano de eleições presidenciais no Brasil, ainda que as paixões e o jogo partidário ameacem irromper sobre campos que requerem ser preservados, a Política Externa deve poder expressar sua racionalidade, ciente de que um conjunto de táticas dispersas não configura uma estratégia. Sua coerência deve encontrar respaldo nos reais anseios da sociedade nacional.

 

* Arnaldo Francisco Cardoso, cientista político, professor de Política Externa Brasileira no curso de Relações Internacionais da UniFMU e pesquisador do NEAMP/PUC-SP. (artigo escrito em 20/01/2006)

Referências bibliográficas:
AMORIM, Celso, GUIMARÃES, Samuel P., LULA DA SILVA, Luiz I. A política externa do Brasil. Brasília: IPRI/FUNAG, 2003.
CERVO, Amado L. & BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.
COOPER, Robert. “O novo imperialismo não ataca? “, In: Carta Capital, 01/05/2002, VIII, nº 187, p. 32.
MAGNOLI, Demétrio. Política externa de Lula segue a cartilha de Rio Branco. Folha de S. Paulo, 19/01/2003, Caderno Mundo
OLIVEIRA, H. Altemani de. Política Externa Brasileira. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.
NETTO, Delfim. Reencontro com o desenvolvimento esquecido. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004.
RICUPERO, Rubens. Fim do Consenso?. Folha de S. Paulo, 12/06/2005, Caderno Dinheiro.

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