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Os tribunais de contas e o controle financeiro da administração pública no Brasil

Marco Antonio Carvalho Teixeira

 

Resumo
Neste artigo é abordada a evolução das instituições de controle financeiro e orçamentário sobre a administração pública. Apresenta-se um panorama histórico das experiências nos âmbitos internacional e brasileiro, para assim debater o papel e limites constitucionais e políticas dos tribunais de contas no exercício dessa atribuição republicana na realidade política do Brasil.

1. O controle financeiro da administração pública: breve panorama histórico sobre a experiência internacional

Controlar o dinheiro público é uma preocupação que sempre esteve presente nos mais diversos períodos da história da humanidade e que antecede a criação das atuais instituições voltadas exclusivamente para a verificação do bom uso do dinheiro público por parte dos governantes. Segundo COELHO (2002:33), normas acerca de como se deveriam aplicar os fundos públicos já constavam nas leis de Manu, na Índia; nos hieróglifos egípcios e nas leis de Moisés.

Porém, foi na Grécia e em Roma que se registraram o aparecimento dos primeiros mecanismos de controle sobre o uso dos recursos públicos, ainda que não tivessem ainda o caráter de uma instituição voltada exclusivamente para o controle do orçamento público. Para CRETELLA JR., (1997:106) tais experiências serviram de modelo para que se chegasse ao atual contorno das organizações de controle financeiro sobre a administração pública: o de instituições autônomas criadas exclusivamente para acompanhar, controlar e julgar os gastos efetuados pelas pessoas que estão à frente do poder público e que manipulam recursos que devem ser direcionados para a realização do bem comum.

O quadro 1, reproduzido de SPECK (2000), oferece um rápido panorama histórico em relação à criação e evolução das instituições de controle financeiro sobre a administração pública no âmbito internacional.

PAÍS ANO NOME
Espanha Séc. XV Tribunal de Cuentas
Prússia 1714 Generalrechenkammer
Áustria 1761 Hofrechenkammer
França 1807 Cour dês Comptes
Holanda 1814 Algeme Rekenkamer
Finlândia 1824 General Revision Court
Bélgica 1830 Rekenhof
Grécia 1833 Court of Audit
Luxemburgo 1840 Chambre des Comptes
Portugal 1842 Tribunal do Tesouro Público
Dinamarca 1849 Riksrevisionen
Itália 1862 Corte dei Conti
Inglaterra 1866 Controller and Auditor General
Brasil 1891 Tribunal de Contas
Irlanda 1921 Controller and Auditor General
Suécia 1921 National Accounts Board
Estados Unidos 1921 General Accounting Office

Quadro 1 – Criação de instituições de controle financeiro sobre a administração pública
Fonte: SPECK, 2000.

Como se pode verificar no quadro 1, a proliferação de instituições de controle financeiro sobre a administração pública data do período absolutista. Segundo CITADINI (1995:5) os órgãos de controle de contas surgiram no mesmo momento em que o Estado começou a se profissionalizar e, conseqüentemente, a se organizar para responder aos mais diversos tipos de demandas e atividades que se apresentavam com as rápidas transformações decorrentes do início da industrialização.

Os órgãos de controle se desenvolveram a partir de duas preocupações distintas: uma de natureza gerencial, que se voltou para a necessidade de controlar o uso dos recursos públicos e assim garantir que eles fossem aplicados de maneira eficiente e naquilo que realmente era necessário; outra de cunho liberal, que se preocupou com a necessidade de limitar o poder do governante e assim pautar as suas ações dentro de regras preestabelecidas, no sentido de se evitar que ele se colocasse acima da sociedade (SPECK, 2000).

No primeiro caso, as instituições se originaram do próprio poder Executivo, independentemente do regime: absolutista ou democrático. Na segunda situação, as primeiras instituições remontam aos primórdios do sistema representativo e ganharam novas atribuições, ampliando seu raio de autonomia com o desenvolvimento do Estado moderno e a necessidade de proteger os cidadãos, sobretudo no que se refere a princípios liberais, como a defesa da liberdade individual e a proteção da propriedade privada (ibid.).

Com relação aos tipos de instituições de controle sobre o dinheiro público que surgiram ao longo do desenvolvimento histórico, CITADINI (1995:11-21) identifica dois modelos distintos: o de controladorias e o de tribunais de contas, e aponta para as particularidades de cada um desses modelos.

As controladorias funcionam como órgãos de auditoria cujas funções são centralizadas na figura de um controlador geral, a quem cabe toda a responsabilidade sobre a tomada de decisões. Surgiram nos países de tradição anglo-saxônica e inicialmente se voltavam, sobretudo, para a realização do acompanhamento do mérito do gasto efetuado pela administração pública. Um bom exemplo na atualidade é o General Accounting Office (GAO), órgão de controle financeiro sobre os gastos do governo norte-americano. O GAO é dirigido por um auditor geral (general controller) com mandato de 15 anos, cuja indicação é de responsabilidade do Presidente da República com referendum do Legislativo. (PESSANHA, 1996:120).

Os tribunais de contas surgiram com a preocupação de verificar a legalidade dos gastos efetuados pelo gestor público. Além dessa diferença básica em relação às primeiras atividades das controladorias, os tribunais se organizaram numa estrutura colegiada que acabou servindo como forma de preservar os membros do seu corpo dirigente do desgaste pessoal que uma eventual polêmica possa causar.

Apesar das diferenças entre os tribunais de contas e as auditorias, é necessário lembrar que ambas as instituições possuem atribuições comuns: “examinar e informar a respeito da utilização dos recursos públicos. Algumas têm competência para avaliar a economia, eficiência e eficácia da administração pública. Outras possuem poderes jurisdicionais e até integram o Poder Judiciário como corte especializada” (ALMEIDA, 1999:1).

Da mesma forma que as instituições de controle financeiro da administração pública se dividiriam em dois modelos distintos, os tribunais de contas também assumiram formas diferenciadas de desempenhar suas atividades. Segundo PESSANHA (1996:119-120), a rápida criação de diversos tribunais de contas no decorrer do século XIX na Europa gerou “três modelos considerados paradigmáticos: o modelo francês de controle a posteriori, isto é, as contas são analisadas depois de o dinheiro ter sido aplicado pela administração pública; o modelo italiano, com exame prévio dos atos da despesa e direito de veto absoluto, com que fica impedido o ato contestado; e o modelo belga, com exame prévio e veto relativo”.

Os tribunais de contas, apesar de na maioria dos casos assessorarem o parlamento no controle financeiro sobre os atos do governo, não estão formalmente vinculados a nenhum dos poderes constituídos, gozam de autonomia financeira e recebem diretamente do tesouro público os recursos necessários para se manterem. Assim, dispõem da possibilidade de um ambiente favorável para julgar a conduta do governante em relação aos gastos públicos, de maneira impessoal e livre de pressões políticas que possam colocar em risco o funcionamento de tais órgãos. Também contribui para que os tribunais possam desenvolver suas atividades de maneira autônoma o fato de os conselheiros (os dirigentes máximos da instituição) possuírem as mesmas garantias que são usufruídas pelos membros dos mais altos cargos da magistratura.

A forma de recrutamento dos conselheiros varia de acordo com a realidade política de cada país. Há tribunais de contas em que a escolha de seu corpo dirigente é feita pelo Executivo ou pelo Legislativo, como também há locais em que essa escolha é partilhada entre ambos os poderes. Verifica-se também a existência de formas de recrutamento profissional decorrentes da prestação de concurso público, onde as promoções internas são decididas de acordo com o mérito profissional de cada servidor (SPECK, 2000).

Dentre os diversos modelos de tribunais de contas que se desenvolveram no mundo, o que veio a influenciar na modelagem dos tribunais brasileiros foi o francês. No sistema francês, as contas são examinadas a posteriori, por meio da emissão de relatórios que atestam a existência ou não de desvios em relação ao que foi planejado e ao que está regulamentado.

2. Os primeiros debates sobre o controle financeiro da administração pública no Brasil

2.1 Experiências no Brasil Império

Da mesma forma que se verificou na realidade de diversos outros países, a iniciativa de se criar mecanismos de controle financeiro sobre os recursos públicos no Brasil, ainda que sem a formatação verificada nos órgãos de controle de contas que começavam a surgir na Europa, também partiu do Poder Executivo e ocorreu, ainda, em pleno período colonial do absolutismo português.

Algumas experiências de controle sobre o dinheiro público começaram a se desenvolver logo após o descobrimento do Brasil. Em 1549, período de vigência do sistema de governadorias-gerais, foi criado o cargo de provedor-mor das contas, cuja função era “exigir as prestações de contas anuais dos provedores das capitanias, tomando providências contra os que não apresentassem tais prestações de contas” (SIQUEIRA, 1998:147).

Também se destaca a criação das Juntas das Fazendas nas Capitanias e no Rio de Janeiro em 1780, com a função de fazer a verificação dos livros de receita e despesa da Fazenda Pública. No ano de 1808, foi criado o Erário Régio, composto por um presidente, um tesoureiro e três controladores gerais, que deveriam desempenhar atividades voltadas para “coordenar e controlar todos os dados referentes ao patrimônio público” (SIQUEIRA, 1998:149).

Tais experiências, apesar de não produzirem a institucionalização de um órgão de controle financeiro sobre a administração pública brasileira ainda no período colonial, acabaram servindo de base para que o debate se aprofundasse após a proclamação da independência. Em 1826, os senadores Visconde de Barbacena e José Inácio Borges viram rejeitados um projeto de autoria de ambos em que propunham a criação de um tribunal de contas.

O argumento fundamental para a rejeição era que o tribunal proposto exerceria apenas controle a posteriori, o que não resolvia o principal desafio de garantir o bom uso dos recursos públicos naquela época: “o controle limitado que o ministro das finanças tinha sobre a gestão financeira dos administradores” (SPECK, 2000:38). Como se pode verificar, a preocupação central que orientava a criação de um órgão de controle de contas nesse período era de natureza gerencial e visava estabelecer mecanismos de controle prévio que adequasse despesas e receitas públicas.

Tal preocupação ficou explícita com a criação do Tribunal do Tesouro Público, em 1831. Presidido pelo ministro da Fazenda, o órgão tinha como funções: “administrar a despesa e a receita pública, a contabilidade e os bens nacionais, receber as prestações de contas anuais de todas as repartições da fazenda, ainda que dependentes de outros ministérios e demitir funcionários públicos considerados inidôneos e inabilitados à ocupação dos cargos (SIQUEIRA, 1998:151). Em SPECK (2000:38), verifica-se que a criação de instituições de controle das contas públicas nesse período buscava, sobretudo, “a contenção dos gastos ordenados pelos administradores sem levar em consideração a liquidez do tesouro”.

Portanto, a preocupação liberal de contenção do poder ainda não se fazia presente na realidade brasileira, a não ser pelo fato de o deputado Manoel de Nascimento e Castro ter proposto, em 1835, a criação de uma instituição de controle que dialogasse diretamente com o Legislativo, o que representava um sinal de que o parlamento começava a se preocupar em controlar as atividades do governante (SPECK, 2000:39). Porém, os debates se seguiram e foram marcados pela preocupação de diversos ministros da Fazenda em aperfeiçoar as propostas de criação de mecanismos de controle sobre os fundos públicos.

Em 1838, o ministro da Fazenda Marques de Abrantes propôs a criação de um Tribunal de Contas. O projeto tramitou na Câmara dos Deputados, mas não foi aprovado. No ano de 1845, um projeto de autoria do também ministro da Fazenda Manoel Alves Branco, propondo a criação de um órgão de controle de contas, teve o mesmo destino. Até o final do Império, diversos ministros das Finanças e outras autoridades públicas também manifestaram suas preocupações com a necessidade de se criar um órgão de controle que acompanhasse a gestão do dinheiro público.

Tais acontecimentos demonstram como o debate sobre o controle financeiro da administração pública foi constante durante o Brasil imperial. Porém, as experiências de controle sobre os gastos públicos nesse período estiveram muito mais voltadas para a preocupação gerencial de se evitar os abusos financeiros cometidos pelos administradores do que de controlar o poder político que eles detinham.

É no Brasil republicano que o debate sobre a criação do tribunal de contas vai se concretizar para além da necessidade de se controlar os gastos dos administradores (preocupação gerencial), abraçando também a necessidade de se estabelecerem mecanismos de controle sobre o poder dos governantes (preocupação liberal).

2.2 A criação do Tribunal de Contas da União (TCU)

Com a Proclamação da República, em 1889, e a conseqüente necessidade de se elaborar uma Constituição que se assentasse no novo regime político brasileiro, as discussões acerca da criação de um órgão de controle financeiro sobre as contas do governo foram retomadas. Porém, como os direitos políticos ainda eram bastante restritos, os debates sobre o conteúdo da nova Carta Magna ainda ficaram circunscritos aos membros do poder público e à elite política que se formou durante o período imperial.

O governo provisório encarregado de fazer a transição da Monarquia para a República, por meio de uma iniciativa de Rui Barbosa, seu Ministro das Finanças, lançou as bases para a formação do Tribunal de Contas da União, ao editar o Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890, criando “um Tribunal de Contas para o exame, revisão e julgamento dos atos concernentes à receita e despesa pública” (BARROS, 1999:232-233).

Apesar de tal Decreto ter criado o órgão de controle financeiro sobre as contas do governo, o Tribunal de Contas acabou não tendo ainda existência de fato, em razão de um grupo de trabalho que havia se encarregado da elaboração do projeto de regulamentação do órgão não ter conseguido entregar a conclusão da proposta no tempo hábil para inscrevê-la no projeto inicial do novo texto constitucional (ibid.).

Foi o próprio Rui Barbosa que se encarregou de inserir no texto constitucional, aprovado em fevereiro de 1891, a criação do Tribunal de Contas. A justificava da institucionalização do órgão de controle se baseava na necessidade de:
Liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso. Dizia, ainda, que os membros deste Tribunal serão nomeados pelo Presidente da República com aprovação do Senado, e somente perderão seus lugares por sentença. [CONSTITUIÇÕES do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1958. Apud BARROS (1999:233)].

Com o objetivo de garantir a autonomia do Tribunal de Contas em relação ao Executivo e aos demais poderes, e também visando provê-lo dos instrumentos para o desempenho de suas funções e para a punição ao uso inadequado do dinheiro público, as competências do TCU ficaram assim definidas, de acordo com o Art. 4º do Decreto 966-A (BARROS, 1999:267):
1º Examinar mensalmente, em presença das contas e documentos que lhe forem apresentados, os resultados mensais;
2º Conferir esses resultados com os que lhe forem apresentados pelo Governo, comunicando tudo ao Poder Legislativo;
3º Julgar anualmente as contas de todos os responsáveis por contas, seja qual for o Ministério a que pertençam. Dando-lhes quitação, condenando-os a pagar, e quando o não cumprirem, mandando proceder na forma de Direito;
4º Estipular aos responsáveis por dinheiros públicos o prazo de apresentação de suas contas, sob as penas que o regulamento estabelecer.


O Tribunal de Contas da União (TCU) nasceu fortemente influenciado pelo modelo francês, por verificar as contas públicas após a execução dos gastos e em razão da sua independência em relação aos outros poderes, sobretudo no que se refere às garantias de permanência dos ministros no cargo – uma questão fundamental para se evitarem obstáculos políticos na obtenção de informações necessárias à apreciação das contas públicas.

Também se registra um grande avanço no que se refere à forma de escolha dos ministros do TCU, se comparada com as propostas que foram apresentadas durante o período do Brasil Império. Numa proposta elaborada em 1845, previa-se que os integrantes do Tribunal de Contas seriam indicados pelo Ministro da Fazenda. Tratando de tal questão, SPECK (2000:43) destaca que “Rui Barbosa instituiu a indicação pelo presidente e a confirmação pelo Senado. Essa modificação era a base para a criação de um órgão eqüidistante de ambos os poderes”.

Porém, mesmo com a escolha dos ministros sendo de responsabilidade do Executivo e necessitar da aprovação do Senado, o órgão continuou sempre próximo do mundo político e não ficou livre de sofrer pressões por parte de políticos de grande envergadura. Logo nos primeiros anos de existência do TCU, tais pressões já começaram a surgir.

Ainda em 1893, durante as primeiras seções de trabalho do TCU, o órgão começou a entrar em conflito com o Executivo. A principal razão foi o veto de diversos atos governamentais “considerados danosos aos cofres públicos” (SIQUEIRA, 1999:164-165). Com isso, o Executivo começou a indagar sobre a autoridade do TCU, alegando que ele estava se colocando acima do presidente da República, fazendo crer que na visão dos membros do governo naquele período, o presidente não deveria ter seus atos questionados pelo Tribunal de Contas.

Também contribuiu para que o governo começasse a questionar a autoridade exercida pelo Tribunal de Contas o fato de o órgão não ter atendido a uma deliberação do presidente da República, Marechal Floriano Peixoto, que nomeou um parente de Deodoro da Fonseca, seu antecessor na presidência do Brasil, como membro do Tribunal, por meio da criação de um “lugar” específico para ele. Os ministros do TCU rejeitaram tal indicação sob a alegação de que o “Governo não poderia criar lugares” (ibid.).

Como forma de retaliação pela rejeição de atos relativos à receita e à despesa do Executivo e pelo veto à nomeação de uma pessoa indicada por Floriano Peixoto, a presidência da República redigiu decretos reduzindo a competência do Tribunal para impugnar despesas do Executivo. Em protesto, o Ministro da Fazenda Serzedello Corrêa, demitiu-se do cargo e demonstrou num documento público datado de 27 de abril de 1893 toda a sua indignação:
Esses decretos anulam o Tribunal, o reduzem a simples Ministério da Fazenda, tiram-lhe toda a independência e autonomia, deturpam os fins da instituição, e permitirão ao Governo a prática de todos os abusos e vós o sabeis - é preciso antes de tudo legislar para o futuro. Se a função do Tribunal no espírito da Constituição é apenas a de liquidar as contas e verificar a sua legalidade depois de feitas, o que eu contesto, eu vos declaro que esse Tribunal é mais um meio de aumentar o funcionalismo, de avolumar a despesa, sem vantagens para a moralidade da administração. (www.tcu.gov.br/institucional/historico.html acesso em 10 de janeiro de 2003)

Daí em diante o TCU sobreviveu às mais diversas transformações políticas: em alguns momentos, teve suas atividades restringidas pelos governantes de períodos autoritários, e em outros, recuperou antigas atribuições, além de exercer funções que antes não desempenhava.

Com a Constituição Federal de 1934, o órgão assumiu as tarefas de realizar o acompanhamento da execução orçamentária, emitir parecer sobre as contas prestadas pelo Presidente da República para posterior encaminhamento ao Legislativo, proceder ao registro prévio das despesas e dos contratos, bem como ao julgamento das contas dos responsáveis por bens e dinheiro públicos (FERNANDES, 2001:64-67). A escolha de seus ministros continuava a cargo do Executivo, com a devida aprovação pelo Senado, não se registrando quaisquer exigências quanto à qualificação ou à idade como critério para se escolher um novo ministro (SPECK, 2000:46).

Em 1937, período autoritário conhecido como Estado Novo, o TCU teve suprimida a sua função de emitir parecer prévio sobre as contas do Presidente da República. Com o retorno da democracia, em 1945, e a promulgação de uma nova carta constitucional, em 1946, o Tribunal de Contas da União retomou a função de elaborar parecer sobre as contas do governo e incorporou o encargo de julgar a legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões (FERNANDES, 2001:64-67). Nessa mesma Constituição Federal constavam como exigências básicas para se ocupar o cargo de Ministro do TCU: ser brasileiro, ter no mínimo 35 anos de idade e gozar plenamente dos direitos políticos. (SPECK: 2000, 46).

Com a supressão da democracia, em razão do golpe de Estado ocorrido em 1964, as atribuições do TCU sofreram algumas modificações que passaram a constar tanto na Constituição Federal de 1967, como na Emenda Constitucional nº 1, de 1969. O órgão ganhou a prerrogativa de realizar auditorias nas entidades por ele fiscalizadas, mas algumas atribuições lhe foram retiradas, dentre elas o julgamento prévio dos atos e contratos geradores de despesas e o das aposentadorias, reformas e pensões. Restou ao TCU a possibilidade de identificar ilegalidades e comunicá-las ao Congresso Nacional para que o próprio Legislativo tomasse as providências (FERNANDES, 2001:67-68).

Explicando a razão de o regime militar suprimir o controle prévio das atribuições do Tribunal de Contas, BRUNO SPECK (2000: 67) conclui que “um dos pilares do autoritarismo militar era o fortalecimento do Executivo e a sucessiva limitação do espaço dos outros poderes – Legislativo e Judiciário”. A escolha dos ministros continuou sob responsabilidade do Executivo, acrescendo idoneidade moral e conhecimentos específicos no rol das exigências.

 O retorno à democracia e a promulgação da nova Constituição de 1988 devolveram ao TCU antigas atribuições, além de aumentar a sua jurisdição e competência. Com isso, de acordo com o Artigo 72 do atual texto constitucional, cabe ao Tribunal de Contas: auxiliar o Congresso Nacional na análise da execução financeira e orçamentária, operacional e patrimonial da administração pública, tanto direta como indireta, incluindo a apreciação da legalidade de contratos, admissão de pessoal, concessão de aposentadorias, reformas e pensões; e também a atribuição de realizar auditorias em qualquer área do setor público por iniciativa própria ou a pedido do Legislativo ou do Judiciário.

A forma de recrutamento dos ministros do TCU foi ampliada após a Constituição de 1988. O Presidente da República perdeu o monopólio sobre a indicação dos nove membros do plenário do órgão de controle de contas, passando a indicar apenas 1/3 dos ministros, enquanto o Congresso Nacional ficou responsável pela indicação dos outros 2/3, sendo mantida a necessidade de o indicado ser aprovado pelo Senado.

Além disso, o Presidente da República não pôde mais escolher todos os ministros do Tribunal de Contas de sua cota de 1/3 conforme as suas conveniências políticas. Para cada três membros do TCU indicados pelo chefe do Executivo, dois devem ser recrutados entre os auditores de carreira do próprio Tribunal de Contas da União e os representantes do Ministério Público no órgão de controle de contas.

Como requisito obrigatório, manteve-se a idade mínima de 35 anos e fixou-se em 65 anos a idade máxima, além de se exigir idoneidade moral e reputação ilibada do candidato. Passou-se a exigir pelo menos dez anos de exercício em atividade profissional que permita ao candidato a ministro ter adquirido conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos, financeiros ou da administração pública. No caso, fala-se em conhecimento e não em formação acadêmica, fato que pode justificar a existência de conselheiros que não possuem Curso Superior. O julgamento das contas do Executivo pelo Tribunal de Contas passou a ser feito com base na análise dos princípios da Legalidade, Legitimidade e Economicidade.

2.3 Os tribunais de contas em estados e municípios brasileiros

Os tribunais de contas em estados e municípios brasileiros reproduzem o modelo do TCU tanto em atribuições como em organização interna, e sofrem apenas algumas adequações quanto ao número de membros de seu Colegiado Superior – os conselheiros.

No caso dos estados, tendo como base a realidade do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP), o Colegiado é composto por sete conselheiros, sendo 1/3 indicado pelo Executivo e os outros 2/3 pela Assembléia Legislativa. Cabe aos tribunais de contas estaduais não apenas exercer o controle financeiro sobre a administração pública estadual e enviar o parecer com o mérito para a respectiva Assembléia Legislativa, como também controlar as contas de todos os prefeitos de municípios que fazem parte da unidade federativa em que está circunscrito, enviando o parecer relativo ao julgamento das contas para as respectivas câmaras municipais de cada cidade.

O surgimento de tribunais de contas estaduais no Brasil data do período de transição entre os séculos XIX e XX, sendo que o Piauí foi à primeira unidade federativa a criar um órgão de controle estadual no ano de 1892, seguido por Minas Gerais em 1914/20, Bahia em 1915, Pará em 1915, Rio de Janeiro em 1920, São Paulo em 1921 e Ceará também em 1921.

Os tribunais estaduais estão distribuídos pelas 27 unidades federativas do país e, dependendo do Estado, fiscalizam as contas do governo estadual e de todos os prefeitos. Os tribunais dos municípios, presentes em apenas quatro estados (Bahia, Ceará, Goiás e Pará), estão encarregados de fiscalizar a contas de todos os prefeitos da unidade federativa em que atuam.

Os tribunais de contas do município existem exclusivamente nos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro e fiscalizam apenas as contas dos prefeitos dessas capitais.

Os Estados da Bahia, Ceará, Goiás e Pará possuem duas estruturas de controle de contas sobre a administração pública: a primeira é a de um Tribunal de Contas estadual encarregado de avaliar as contas do governador do Estado, e a segunda refere-se a um Tribunal de Contas dos municípios, responsável pelo controle financeiro das contas de todos os prefeitos dos municípios que compõem cada um desses Estados.

Nos municípios, a criação de tribunais de contas é bem mais recente. Com relação às experiências que ocorreram em cidades paulistas, elas só foram possíveis com o advento da Constituição estadual de 1967. Tal Constituição, em seu artigo 106, previa que “o município de São Paulo e os que tiverem renda superior a cinco por cento da arrecadação deste, poderão ter regime administrativo especial e Tribunal de Contas próprio, na forma que a Lei Orgânica dos municípios estabelecer”.

A Constituição paulista de 1967, no artigo 107, estipulava: “municípios da mesma região, que, em conjunto, atingirem o limite de renda estabelecido no artigo anterior, poderão ter Tribunal de Contas próprio”. Dessa maneira, era possível que municípios circunvizinhos criassem um único órgão de controle de contas para eles próprios.

As conseqüências financeiras resultantes da proliferação de tribunais de contas em municípios e a repercussão negativa na sociedade obrigaram o governo federal, em 1969, período do regime militar, a elaborar uma emenda à Constituição de 1967, no seu artigo 16, restringindo a possibilidade da existência de tais órgãos “a municípios com população superior a dois milhões de habitantes e renda tributária acima de quinhentos milhões de cruzeiros novos”.

Assim, apenas a cidade de São Paulo manteve o seu próprio Tribunal de Contas, sendo que os demais órgãos semelhantes que já existiam em outros municípios brasileiros foram extintos. Somente o município do Rio de Janeiro poderia criar seu órgão de controle de contas, por se enquadrar nos requisitos previstos na Emenda Constitucional de 1969. O órgão de controle de contas da capital fluminense veio a ser criado em outubro de 1980.

A Constituição de 1988, em seu artigo 31, reafirmou a proibição de se criar Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais, permitindo que continuassem a existir apenas os Tribunais de Contas dos Municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro.

3. Considerações finais

Verificou-se que o desenvolvimento dos órgãos de controle sobre a administração pública ocorreu de maneira concomitante ao surgimento do Estado moderno, e buscou cumprir duas funções básicas: garantir que os recursos públicos tivessem como destino a realização do bem comum e verificar se os governantes estavam desempenhando as suas funções dentro das regras preestabelecidas, para evitar o surgimento de tiranos. Alem disso, as instituições voltadas para o controle do orçamento e do gasto público acabaram nascendo dentro do Poder Executivo.

Também foi mostrado que as instituições de controle financeiro sobre a administração pública assumiram duas características distintas: a de auditorias, cujas atividades estão fortemente centradas na figura do auditor-geral; e a de tribunais de contas, cujas decisões são tomadas de forma colegiada e assumem o caráter de julgamento da conduta dos gestores em relação ao dinheiro público.
No caso brasileiro, a preocupação em se criar um órgão para controlar a execução do orçamento público também teve origem no Executivo. Tanto que coube, durante o Império, a vários ministros das finanças, a função de apresentar projetos de lei propondo a criação de um Tribunal de Contas, como também, no início da República, coube a um Ministro (Rui Barbosa), a iniciativa de criar o Tribunal de Contas da União (TCU).

O TCU sobreviveu aos diversos momentos políticos que provocaram avanços e retrocessos na ordem democrática brasileira. Desse modo, o órgão ganhou, perdeu, recuperou e ampliou funções de acordo com cada novo período da história da política brasileira.

Também foi demonstrado que, paralelamente ao desenvolvimento do Tribunal de Contas da União, estados e municípios também criaram seus próprios órgãos de controle financeiro sobre a administração pública. Tais instituições, ao se proliferarem pelo país, tornaram-se mais visíveis e, portanto, objeto de debates acerca da natureza de seus trabalhos.

Essas instituições em tese deveriam ter uma função meramente técnica, mas acabaram apresentando um vício de origem – a escolha de seu corpo dirigente inicialmente era de responsabilidade do próprio governante e posteriormente passou a ser dividida entre o Executivo e o Legislativo, num processo em que a legitimidade política é condição fundamental. O caráter de conflito entre o técnico e o político torna-se inevitável, uma vez que nos momentos em que os trabalhos dos auditores são analisados pelos ministros (no caso do TCU) ou pelos conselheiros (nos casos dos tribunais de contas de estados e municípios) para que se emita o parecer final acerca da conduta do administrador público.

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