Os tribunais de contas e o controle financeiro da administração pública no Brasil
Marco Antonio Carvalho Teixeira
Resumo
Neste artigo é abordada a evolução das instituições
de controle financeiro e orçamentário sobre a administração
pública. Apresenta-se um panorama histórico das experiências
nos âmbitos internacional e brasileiro, para assim debater o papel
e limites constitucionais e políticas dos tribunais de contas no
exercício dessa atribuição republicana na realidade
política do Brasil.
1. O controle financeiro da administração pública:
breve panorama histórico sobre a experiência internacional
Controlar o dinheiro público é uma preocupação
que sempre esteve presente nos mais diversos períodos da história
da humanidade e que antecede a criação das atuais instituições
voltadas exclusivamente para a verificação do bom uso do dinheiro
público por parte dos governantes. Segundo COELHO (2002:33), normas
acerca de como se deveriam aplicar os fundos públicos já constavam
nas leis de Manu, na Índia; nos hieróglifos egípcios
e nas leis de Moisés.
Porém, foi na Grécia e em Roma que se registraram o aparecimento
dos primeiros mecanismos de controle sobre o uso dos recursos públicos,
ainda que não tivessem ainda o caráter de uma instituição
voltada exclusivamente para o controle do orçamento público.
Para CRETELLA JR., (1997:106) tais experiências serviram de modelo
para que se chegasse ao atual contorno das organizações de
controle financeiro sobre a administração pública:
o de instituições autônomas criadas exclusivamente para
acompanhar, controlar e julgar os gastos efetuados pelas pessoas que estão
à frente do poder público e que manipulam recursos que devem
ser direcionados para a realização do bem comum.
O quadro 1, reproduzido de SPECK (2000), oferece um rápido panorama
histórico em relação à criação
e evolução das instituições de controle financeiro
sobre a administração pública no âmbito internacional.
PAÍS | ANO | NOME |
Espanha | Séc. XV | Tribunal de Cuentas |
Prússia | 1714 | Generalrechenkammer |
Áustria | 1761 | Hofrechenkammer |
França | 1807 | Cour dês Comptes |
Holanda | 1814 | Algeme Rekenkamer |
Finlândia | 1824 | General Revision Court |
Bélgica | 1830 | Rekenhof |
Grécia | 1833 | Court of Audit |
Luxemburgo | 1840 | Chambre des Comptes |
Portugal | 1842 | Tribunal do Tesouro Público |
Dinamarca | 1849 | Riksrevisionen |
Itália | 1862 | Corte dei Conti |
Inglaterra | 1866 | Controller and Auditor General |
Brasil | 1891 | Tribunal de Contas |
Irlanda | 1921 | Controller and Auditor General |
Suécia | 1921 | National Accounts Board |
Estados Unidos | 1921 | General Accounting Office |
Quadro 1 Criação de instituições
de controle financeiro sobre a administração pública
Fonte: SPECK, 2000.
Como se pode verificar no quadro 1, a proliferação de instituições
de controle financeiro sobre a administração pública
data do período absolutista. Segundo CITADINI (1995:5) os órgãos
de controle de contas surgiram no mesmo momento em que o Estado começou
a se profissionalizar e, conseqüentemente, a se organizar para responder
aos mais diversos tipos de demandas e atividades que se apresentavam com
as rápidas transformações decorrentes do início
da industrialização.
Os órgãos de controle se desenvolveram a partir de duas preocupações
distintas: uma de natureza gerencial, que se voltou para a necessidade de
controlar o uso dos recursos públicos e assim garantir que eles fossem
aplicados de maneira eficiente e naquilo que realmente era necessário;
outra de cunho liberal, que se preocupou com a necessidade de limitar o
poder do governante e assim pautar as suas ações dentro de
regras preestabelecidas, no sentido de se evitar que ele se colocasse acima
da sociedade (SPECK, 2000).
No primeiro caso, as instituições se originaram do próprio
poder Executivo, independentemente do regime: absolutista ou democrático.
Na segunda situação, as primeiras instituições
remontam aos primórdios do sistema representativo e ganharam novas
atribuições, ampliando seu raio de autonomia com o desenvolvimento
do Estado moderno e a necessidade de proteger os cidadãos, sobretudo
no que se refere a princípios liberais, como a defesa da liberdade
individual e a proteção da propriedade privada (ibid.).
Com relação aos tipos de instituições de controle
sobre o dinheiro público que surgiram ao longo do desenvolvimento
histórico, CITADINI (1995:11-21) identifica dois modelos distintos:
o de controladorias e o de tribunais de contas, e aponta para as particularidades
de cada um desses modelos.
As controladorias funcionam como órgãos de auditoria cujas
funções são centralizadas na figura de um controlador
geral, a quem cabe toda a responsabilidade sobre a tomada de decisões.
Surgiram nos países de tradição anglo-saxônica
e inicialmente se voltavam, sobretudo, para a realização do
acompanhamento do mérito do gasto efetuado pela administração
pública. Um bom exemplo na atualidade é o General Accounting
Office (GAO), órgão de controle financeiro sobre os gastos
do governo norte-americano. O GAO é dirigido por um auditor geral
(general controller) com mandato de 15 anos, cuja indicação
é de responsabilidade do Presidente da República com referendum
do Legislativo. (PESSANHA, 1996:120).
Os tribunais de contas surgiram com a preocupação de verificar
a legalidade dos gastos efetuados pelo gestor público. Além
dessa diferença básica em relação às
primeiras atividades das controladorias, os tribunais se organizaram numa
estrutura colegiada que acabou servindo como forma de preservar os membros
do seu corpo dirigente do desgaste pessoal que uma eventual polêmica
possa causar.
Apesar das diferenças entre os tribunais de contas e as auditorias,
é necessário lembrar que ambas as instituições
possuem atribuições comuns: examinar e informar a respeito
da utilização dos recursos públicos. Algumas têm
competência para avaliar a economia, eficiência e eficácia
da administração pública. Outras possuem poderes jurisdicionais
e até integram o Poder Judiciário como corte especializada
(ALMEIDA, 1999:1).
Da mesma forma que as instituições de controle financeiro
da administração pública se dividiriam em dois modelos
distintos, os tribunais de contas também assumiram formas diferenciadas
de desempenhar suas atividades. Segundo PESSANHA (1996:119-120), a rápida
criação de diversos tribunais de contas no decorrer do século
XIX na Europa gerou três modelos considerados paradigmáticos:
o modelo francês de controle a posteriori, isto é, as contas
são analisadas depois de o dinheiro ter sido aplicado pela administração
pública; o modelo italiano, com exame prévio dos atos da despesa
e direito de veto absoluto, com que fica impedido o ato contestado; e o
modelo belga, com exame prévio e veto relativo.
Os tribunais de contas, apesar de na maioria dos casos assessorarem o parlamento
no controle financeiro sobre os atos do governo, não estão
formalmente vinculados a nenhum dos poderes constituídos, gozam de
autonomia financeira e recebem diretamente do tesouro público os
recursos necessários para se manterem. Assim, dispõem da possibilidade
de um ambiente favorável para julgar a conduta do governante em relação
aos gastos públicos, de maneira impessoal e livre de pressões
políticas que possam colocar em risco o funcionamento de tais órgãos.
Também contribui para que os tribunais possam desenvolver suas atividades
de maneira autônoma o fato de os conselheiros (os dirigentes máximos
da instituição) possuírem as mesmas garantias que são
usufruídas pelos membros dos mais altos cargos da magistratura.
A forma de recrutamento dos conselheiros varia de acordo com a realidade
política de cada país. Há tribunais de contas em que
a escolha de seu corpo dirigente é feita pelo Executivo ou pelo Legislativo,
como também há locais em que essa escolha é partilhada
entre ambos os poderes. Verifica-se também a existência de
formas de recrutamento profissional decorrentes da prestação
de concurso público, onde as promoções internas são
decididas de acordo com o mérito profissional de cada servidor (SPECK,
2000).
Dentre os diversos modelos de tribunais de contas que se desenvolveram no
mundo, o que veio a influenciar na modelagem dos tribunais brasileiros foi
o francês. No sistema francês, as contas são examinadas
a posteriori, por meio da emissão de relatórios que atestam
a existência ou não de desvios em relação ao
que foi planejado e ao que está regulamentado.
2. Os primeiros debates sobre o controle financeiro da administração
pública no Brasil
2.1 Experiências no Brasil Império
Da mesma forma que se verificou na realidade de diversos outros países,
a iniciativa de se criar mecanismos de controle financeiro sobre os recursos
públicos no Brasil, ainda que sem a formatação verificada
nos órgãos de controle de contas que começavam a surgir
na Europa, também partiu do Poder Executivo e ocorreu, ainda, em
pleno período colonial do absolutismo português.
Algumas experiências de controle sobre o dinheiro público começaram
a se desenvolver logo após o descobrimento do Brasil. Em 1549, período
de vigência do sistema de governadorias-gerais, foi criado o cargo
de provedor-mor das contas, cuja função era exigir as
prestações de contas anuais dos provedores das capitanias,
tomando providências contra os que não apresentassem tais prestações
de contas (SIQUEIRA, 1998:147).
Também se destaca a criação das Juntas das Fazendas
nas Capitanias e no Rio de Janeiro em 1780, com a função de
fazer a verificação dos livros de receita e despesa da Fazenda
Pública. No ano de 1808, foi criado o Erário Régio,
composto por um presidente, um tesoureiro e três controladores gerais,
que deveriam desempenhar atividades voltadas para coordenar e controlar
todos os dados referentes ao patrimônio público (SIQUEIRA,
1998:149).
Tais experiências, apesar de não produzirem a institucionalização
de um órgão de controle financeiro sobre a administração
pública brasileira ainda no período colonial, acabaram servindo
de base para que o debate se aprofundasse após a proclamação
da independência. Em 1826, os senadores Visconde de Barbacena e José
Inácio Borges viram rejeitados um projeto de autoria de ambos em
que propunham a criação de um tribunal de contas.
O argumento fundamental para a rejeição era que o tribunal
proposto exerceria apenas controle a posteriori, o que não resolvia
o principal desafio de garantir o bom uso dos recursos públicos naquela
época: o controle limitado que o ministro das finanças
tinha sobre a gestão financeira dos administradores (SPECK,
2000:38). Como se pode verificar, a preocupação central que
orientava a criação de um órgão de controle
de contas nesse período era de natureza gerencial e visava estabelecer
mecanismos de controle prévio que adequasse despesas e receitas públicas.
Tal preocupação ficou explícita com a criação
do Tribunal do Tesouro Público, em 1831. Presidido pelo ministro
da Fazenda, o órgão tinha como funções: administrar
a despesa e a receita pública, a contabilidade e os bens nacionais,
receber as prestações de contas anuais de todas as repartições
da fazenda, ainda que dependentes de outros ministérios e demitir
funcionários públicos considerados inidôneos e inabilitados
à ocupação dos cargos (SIQUEIRA, 1998:151). Em SPECK
(2000:38), verifica-se que a criação de instituições
de controle das contas públicas nesse período buscava, sobretudo,
a contenção dos gastos ordenados pelos administradores
sem levar em consideração a liquidez do tesouro.
Portanto, a preocupação liberal de contenção
do poder ainda não se fazia presente na realidade brasileira, a não
ser pelo fato de o deputado Manoel de Nascimento e Castro ter proposto,
em 1835, a criação de uma instituição de controle
que dialogasse diretamente com o Legislativo, o que representava um sinal
de que o parlamento começava a se preocupar em controlar as atividades
do governante (SPECK, 2000:39). Porém, os debates se seguiram e foram
marcados pela preocupação de diversos ministros da Fazenda
em aperfeiçoar as propostas de criação de mecanismos
de controle sobre os fundos públicos.
Em 1838, o ministro da Fazenda Marques de Abrantes propôs a criação
de um Tribunal de Contas. O projeto tramitou na Câmara dos Deputados,
mas não foi aprovado. No ano de 1845, um projeto de autoria do também
ministro da Fazenda Manoel Alves Branco, propondo a criação
de um órgão de controle de contas, teve o mesmo destino. Até
o final do Império, diversos ministros das Finanças e outras
autoridades públicas também manifestaram suas preocupações
com a necessidade de se criar um órgão de controle que acompanhasse
a gestão do dinheiro público.
Tais acontecimentos demonstram como o debate sobre o controle financeiro
da administração pública foi constante durante o Brasil
imperial. Porém, as experiências de controle sobre os gastos
públicos nesse período estiveram muito mais voltadas para
a preocupação gerencial de se evitar os abusos financeiros
cometidos pelos administradores do que de controlar o poder político
que eles detinham.
É no Brasil republicano que o debate sobre a criação
do tribunal de contas vai se concretizar para além da necessidade
de se controlar os gastos dos administradores (preocupação
gerencial), abraçando também a necessidade de se estabelecerem
mecanismos de controle sobre o poder dos governantes (preocupação
liberal).
2.2 A criação do Tribunal de Contas da União (TCU)
Com a Proclamação da República, em 1889, e a conseqüente
necessidade de se elaborar uma Constituição que se assentasse
no novo regime político brasileiro, as discussões acerca da
criação de um órgão de controle financeiro sobre
as contas do governo foram retomadas. Porém, como os direitos políticos
ainda eram bastante restritos, os debates sobre o conteúdo da nova
Carta Magna ainda ficaram circunscritos aos membros do poder público
e à elite política que se formou durante o período
imperial.
O governo provisório encarregado de fazer a transição
da Monarquia para a República, por meio de uma iniciativa de Rui
Barbosa, seu Ministro das Finanças, lançou as bases para a
formação do Tribunal de Contas da União, ao editar
o Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890, criando um Tribunal
de Contas para o exame, revisão e julgamento dos atos concernentes
à receita e despesa pública (BARROS, 1999:232-233).
Apesar de tal Decreto ter criado o órgão de controle financeiro
sobre as contas do governo, o Tribunal de Contas acabou não tendo
ainda existência de fato, em razão de um grupo de trabalho
que havia se encarregado da elaboração do projeto de regulamentação
do órgão não ter conseguido entregar a conclusão
da proposta no tempo hábil para inscrevê-la no projeto inicial
do novo texto constitucional (ibid.).
Foi o próprio Rui Barbosa que se encarregou de inserir no texto constitucional,
aprovado em fevereiro de 1891, a criação do Tribunal de Contas.
A justificava da institucionalização do órgão
de controle se baseava na necessidade de:
Liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade,
antes de serem prestadas ao Congresso. Dizia, ainda, que os membros deste
Tribunal serão nomeados pelo Presidente da República com aprovação
do Senado, e somente perderão seus lugares por sentença. [CONSTITUIÇÕES
do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1958. Apud BARROS (1999:233)].
Com o objetivo de garantir a autonomia do Tribunal de Contas em relação
ao Executivo e aos demais poderes, e também visando provê-lo
dos instrumentos para o desempenho de suas funções e para
a punição ao uso inadequado do dinheiro público, as
competências do TCU ficaram assim definidas, de acordo com o Art.
4º do Decreto 966-A (BARROS, 1999:267):
1º Examinar mensalmente, em presença das contas e documentos
que lhe forem apresentados, os resultados mensais;
2º Conferir esses resultados com os que lhe forem apresentados pelo
Governo, comunicando tudo ao Poder Legislativo;
3º Julgar anualmente as contas de todos os responsáveis por
contas, seja qual for o Ministério a que pertençam. Dando-lhes
quitação, condenando-os a pagar, e quando o não cumprirem,
mandando proceder na forma de Direito;
4º Estipular aos responsáveis por dinheiros públicos
o prazo de apresentação de suas contas, sob as penas que o
regulamento estabelecer.
O Tribunal de Contas da União (TCU) nasceu fortemente influenciado
pelo modelo francês, por verificar as contas públicas após
a execução dos gastos e em razão da sua independência
em relação aos outros poderes, sobretudo no que se refere
às garantias de permanência dos ministros no cargo uma
questão fundamental para se evitarem obstáculos políticos
na obtenção de informações necessárias
à apreciação das contas públicas.
Também se registra um grande avanço no que se refere à
forma de escolha dos ministros do TCU, se comparada com as propostas que
foram apresentadas durante o período do Brasil Império. Numa
proposta elaborada em 1845, previa-se que os integrantes do Tribunal de
Contas seriam indicados pelo Ministro da Fazenda. Tratando de tal questão,
SPECK (2000:43) destaca que Rui Barbosa instituiu a indicação
pelo presidente e a confirmação pelo Senado. Essa modificação
era a base para a criação de um órgão eqüidistante
de ambos os poderes.
Porém, mesmo com a escolha dos ministros sendo de responsabilidade
do Executivo e necessitar da aprovação do Senado, o órgão
continuou sempre próximo do mundo político e não ficou
livre de sofrer pressões por parte de políticos de grande
envergadura. Logo nos primeiros anos de existência do TCU, tais pressões
já começaram a surgir.
Ainda em 1893, durante as primeiras seções de trabalho do
TCU, o órgão começou a entrar em conflito com o Executivo.
A principal razão foi o veto de diversos atos governamentais considerados
danosos aos cofres públicos (SIQUEIRA, 1999:164-165). Com isso,
o Executivo começou a indagar sobre a autoridade do TCU, alegando
que ele estava se colocando acima do presidente da República, fazendo
crer que na visão dos membros do governo naquele período,
o presidente não deveria ter seus atos questionados pelo Tribunal
de Contas.
Também contribuiu para que o governo começasse a questionar
a autoridade exercida pelo Tribunal de Contas o fato de o órgão
não ter atendido a uma deliberação do presidente da
República, Marechal Floriano Peixoto, que nomeou um parente de Deodoro
da Fonseca, seu antecessor na presidência do Brasil, como membro do
Tribunal, por meio da criação de um lugar específico
para ele. Os ministros do TCU rejeitaram tal indicação sob
a alegação de que o Governo não poderia criar
lugares (ibid.).
Como forma de retaliação pela rejeição de atos
relativos à receita e à despesa do Executivo e pelo veto à
nomeação de uma pessoa indicada por Floriano Peixoto, a presidência
da República redigiu decretos reduzindo a competência do Tribunal
para impugnar despesas do Executivo. Em protesto, o Ministro da Fazenda
Serzedello Corrêa, demitiu-se do cargo e demonstrou num documento
público datado de 27 de abril de 1893 toda a sua indignação:
Esses decretos anulam o Tribunal, o reduzem a simples Ministério
da Fazenda, tiram-lhe toda a independência e autonomia, deturpam os
fins da instituição, e permitirão ao Governo a prática
de todos os abusos e vós o sabeis - é preciso antes de tudo
legislar para o futuro. Se a função do Tribunal no espírito
da Constituição é apenas a de liquidar as contas e
verificar a sua legalidade depois de feitas, o que eu contesto, eu vos declaro
que esse Tribunal é mais um meio de aumentar o funcionalismo, de
avolumar a despesa, sem vantagens para a moralidade da administração.
(www.tcu.gov.br/institucional/historico.html acesso em 10 de janeiro de
2003)
Daí em diante o TCU sobreviveu às mais diversas transformações
políticas: em alguns momentos, teve suas atividades restringidas
pelos governantes de períodos autoritários, e em outros, recuperou
antigas atribuições, além de exercer funções
que antes não desempenhava.
Com a Constituição Federal de 1934, o órgão
assumiu as tarefas de realizar o acompanhamento da execução
orçamentária, emitir parecer sobre as contas prestadas pelo
Presidente da República para posterior encaminhamento ao Legislativo,
proceder ao registro prévio das despesas e dos contratos, bem como
ao julgamento das contas dos responsáveis por bens e dinheiro públicos
(FERNANDES, 2001:64-67). A escolha de seus ministros continuava a cargo
do Executivo, com a devida aprovação pelo Senado, não
se registrando quaisquer exigências quanto à qualificação
ou à idade como critério para se escolher um novo ministro
(SPECK, 2000:46).
Em 1937, período autoritário conhecido como Estado Novo, o
TCU teve suprimida a sua função de emitir parecer prévio
sobre as contas do Presidente da República. Com o retorno da democracia,
em 1945, e a promulgação de uma nova carta constitucional,
em 1946, o Tribunal de Contas da União retomou a função
de elaborar parecer sobre as contas do governo e incorporou o encargo de
julgar a legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e
pensões (FERNANDES, 2001:64-67). Nessa mesma Constituição
Federal constavam como exigências básicas para se ocupar o
cargo de Ministro do TCU: ser brasileiro, ter no mínimo 35 anos de
idade e gozar plenamente dos direitos políticos. (SPECK: 2000, 46).
Com a supressão da democracia, em razão do golpe de Estado
ocorrido em 1964, as atribuições do TCU sofreram algumas modificações
que passaram a constar tanto na Constituição Federal de 1967,
como na Emenda Constitucional nº 1, de 1969. O órgão
ganhou a prerrogativa de realizar auditorias nas entidades por ele fiscalizadas,
mas algumas atribuições lhe foram retiradas, dentre elas o
julgamento prévio dos atos e contratos geradores de despesas e o
das aposentadorias, reformas e pensões. Restou ao TCU a possibilidade
de identificar ilegalidades e comunicá-las ao Congresso Nacional
para que o próprio Legislativo tomasse as providências (FERNANDES,
2001:67-68).
Explicando a razão de o regime militar suprimir o controle prévio
das atribuições do Tribunal de Contas, BRUNO SPECK (2000:
67) conclui que um dos pilares do autoritarismo militar era o fortalecimento
do Executivo e a sucessiva limitação do espaço dos
outros poderes Legislativo e Judiciário. A escolha dos
ministros continuou sob responsabilidade do Executivo, acrescendo idoneidade
moral e conhecimentos específicos no rol das exigências.
O retorno à democracia e a promulgação da nova
Constituição de 1988 devolveram ao TCU antigas atribuições,
além de aumentar a sua jurisdição e competência.
Com isso, de acordo com o Artigo 72 do atual texto constitucional, cabe
ao Tribunal de Contas: auxiliar o Congresso Nacional na análise da
execução financeira e orçamentária, operacional
e patrimonial da administração pública, tanto direta
como indireta, incluindo a apreciação da legalidade de contratos,
admissão de pessoal, concessão de aposentadorias, reformas
e pensões; e também a atribuição de realizar
auditorias em qualquer área do setor público por iniciativa
própria ou a pedido do Legislativo ou do Judiciário.
A forma de recrutamento dos ministros do TCU foi ampliada após a
Constituição de 1988. O Presidente da República perdeu
o monopólio sobre a indicação dos nove membros do plenário
do órgão de controle de contas, passando a indicar apenas
1/3 dos ministros, enquanto o Congresso Nacional ficou responsável
pela indicação dos outros 2/3, sendo mantida a necessidade
de o indicado ser aprovado pelo Senado.
Além disso, o Presidente da República não pôde
mais escolher todos os ministros do Tribunal de Contas de sua cota de 1/3
conforme as suas conveniências políticas. Para cada três
membros do TCU indicados pelo chefe do Executivo, dois devem ser recrutados
entre os auditores de carreira do próprio Tribunal de Contas da União
e os representantes do Ministério Público no órgão
de controle de contas.
Como requisito obrigatório, manteve-se a idade mínima de 35
anos e fixou-se em 65 anos a idade máxima, além de se exigir
idoneidade moral e reputação ilibada do candidato. Passou-se
a exigir pelo menos dez anos de exercício em atividade profissional
que permita ao candidato a ministro ter adquirido conhecimentos jurídicos,
contábeis, econômicos, financeiros ou da administração
pública. No caso, fala-se em conhecimento e não em formação
acadêmica, fato que pode justificar a existência de conselheiros
que não possuem Curso Superior. O julgamento das contas do Executivo
pelo Tribunal de Contas passou a ser feito com base na análise dos
princípios da Legalidade, Legitimidade e Economicidade.
2.3 Os tribunais de contas em estados e municípios brasileiros
Os tribunais de contas em estados e municípios brasileiros reproduzem
o modelo do TCU tanto em atribuições como em organização
interna, e sofrem apenas algumas adequações quanto ao número
de membros de seu Colegiado Superior os conselheiros.
No caso dos estados, tendo como base a realidade do Tribunal de Contas do
Estado de São Paulo (TCESP), o Colegiado é composto por sete
conselheiros, sendo 1/3 indicado pelo Executivo e os outros 2/3 pela Assembléia
Legislativa. Cabe aos tribunais de contas estaduais não apenas exercer
o controle financeiro sobre a administração pública
estadual e enviar o parecer com o mérito para a respectiva Assembléia
Legislativa, como também controlar as contas de todos os prefeitos
de municípios que fazem parte da unidade federativa em que está
circunscrito, enviando o parecer relativo ao julgamento das contas para
as respectivas câmaras municipais de cada cidade.
O surgimento de tribunais de contas estaduais no Brasil data do período
de transição entre os séculos XIX e XX, sendo que o
Piauí foi à primeira unidade federativa a criar um órgão
de controle estadual no ano de 1892, seguido por Minas Gerais em 1914/20,
Bahia em 1915, Pará em 1915, Rio de Janeiro em 1920, São Paulo
em 1921 e Ceará também em 1921.
Os tribunais estaduais estão distribuídos pelas 27 unidades
federativas do país e, dependendo do Estado, fiscalizam as contas
do governo estadual e de todos os prefeitos. Os tribunais dos municípios,
presentes em apenas quatro estados (Bahia, Ceará, Goiás e
Pará), estão encarregados de fiscalizar a contas de todos
os prefeitos da unidade federativa em que atuam.
Os tribunais de contas do município existem exclusivamente nos municípios
de São Paulo e Rio de Janeiro e fiscalizam apenas as contas dos prefeitos
dessas capitais.
Os Estados da Bahia, Ceará, Goiás e Pará possuem duas
estruturas de controle de contas sobre a administração pública:
a primeira é a de um Tribunal de Contas estadual encarregado de avaliar
as contas do governador do Estado, e a segunda refere-se a um Tribunal de
Contas dos municípios, responsável pelo controle financeiro
das contas de todos os prefeitos dos municípios que compõem
cada um desses Estados.
Nos municípios, a criação de tribunais de contas é
bem mais recente. Com relação às experiências
que ocorreram em cidades paulistas, elas só foram possíveis
com o advento da Constituição estadual de 1967. Tal Constituição,
em seu artigo 106, previa que o município de São Paulo
e os que tiverem renda superior a cinco por cento da arrecadação
deste, poderão ter regime administrativo especial e Tribunal de Contas
próprio, na forma que a Lei Orgânica dos municípios
estabelecer.
A Constituição paulista de 1967, no artigo 107, estipulava:
municípios da mesma região, que, em conjunto, atingirem
o limite de renda estabelecido no artigo anterior, poderão ter Tribunal
de Contas próprio. Dessa maneira, era possível que municípios
circunvizinhos criassem um único órgão de controle
de contas para eles próprios.
As conseqüências financeiras resultantes da proliferação
de tribunais de contas em municípios e a repercussão negativa
na sociedade obrigaram o governo federal, em 1969, período do regime
militar, a elaborar uma emenda à Constituição de 1967,
no seu artigo 16, restringindo a possibilidade da existência de tais
órgãos a municípios com população
superior a dois milhões de habitantes e renda tributária acima
de quinhentos milhões de cruzeiros novos.
Assim, apenas a cidade de São Paulo manteve o seu próprio
Tribunal de Contas, sendo que os demais órgãos semelhantes
que já existiam em outros municípios brasileiros foram extintos.
Somente o município do Rio de Janeiro poderia criar seu órgão
de controle de contas, por se enquadrar nos requisitos previstos na Emenda
Constitucional de 1969. O órgão de controle de contas da capital
fluminense veio a ser criado em outubro de 1980.
A Constituição de 1988, em seu artigo 31, reafirmou a proibição
de se criar Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais,
permitindo que continuassem a existir apenas os Tribunais de Contas dos
Municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro.
3. Considerações finais
Verificou-se que o desenvolvimento dos órgãos de controle
sobre a administração pública ocorreu de maneira concomitante
ao surgimento do Estado moderno, e buscou cumprir duas funções
básicas: garantir que os recursos públicos tivessem como destino
a realização do bem comum e verificar se os governantes estavam
desempenhando as suas funções dentro das regras preestabelecidas,
para evitar o surgimento de tiranos. Alem disso, as instituições
voltadas para o controle do orçamento e do gasto público acabaram
nascendo dentro do Poder Executivo.
Também foi mostrado que as instituições de controle
financeiro sobre a administração pública assumiram
duas características distintas: a de auditorias, cujas atividades
estão fortemente centradas na figura do auditor-geral; e a de tribunais
de contas, cujas decisões são tomadas de forma colegiada e
assumem o caráter de julgamento da conduta dos gestores em relação
ao dinheiro público.
No caso brasileiro, a preocupação em se criar um órgão
para controlar a execução do orçamento público
também teve origem no Executivo. Tanto que coube, durante o Império,
a vários ministros das finanças, a função de
apresentar projetos de lei propondo a criação de um Tribunal
de Contas, como também, no início da República, coube
a um Ministro (Rui Barbosa), a iniciativa de criar o Tribunal de Contas
da União (TCU).
O TCU sobreviveu aos diversos momentos políticos que provocaram avanços
e retrocessos na ordem democrática brasileira. Desse modo, o órgão
ganhou, perdeu, recuperou e ampliou funções de acordo com
cada novo período da história da política brasileira.
Também foi demonstrado que, paralelamente ao desenvolvimento do Tribunal
de Contas da União, estados e municípios também criaram
seus próprios órgãos de controle financeiro sobre a
administração pública. Tais instituições,
ao se proliferarem pelo país, tornaram-se mais visíveis e,
portanto, objeto de debates acerca da natureza de seus trabalhos.
Essas instituições em tese deveriam ter uma função
meramente técnica, mas acabaram apresentando um vício de origem
a escolha de seu corpo dirigente inicialmente era de responsabilidade
do próprio governante e posteriormente passou a ser dividida entre
o Executivo e o Legislativo, num processo em que a legitimidade política
é condição fundamental. O caráter de conflito
entre o técnico e o político torna-se inevitável, uma
vez que nos momentos em que os trabalhos dos auditores são analisados
pelos ministros (no caso do TCU) ou pelos conselheiros (nos casos dos tribunais
de contas de estados e municípios) para que se emita o parecer final
acerca da conduta do administrador público.
Bibliografia
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