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O Estado e o poder paterno

José Renato Ferraz da Silveira

 

No atual e fragilizado Parlamento Brasileiro, estamos diante de um polêmico projeto de lei. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, e já seguiu para deliberação do Senado, um projeto de lei, de autoria conjunta de cinco deputados petistas – Maria do Rosário (RS), Ângela Guadagnin (SP), Selma Schons (PR), Luiz Couto (PB) e Fátima Bezerra (RN) -, já apelidado “Projeto da Palmada”, que prevê sanções para qualquer tipo de violência contra crianças, praticada por pais, responsáveis ou educadores, mesmo sob a alegação da aplicação educativa. Diga-se, de passagem, que os castigos corporais já estão incluídos no crime de maus-tratos previstos no Código Penal, assim como nas sanções estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069 de 13 de julho de 1990).

No entanto, a percepção observada dessa busca de arregimentar-se a relação entre pais e filhos embute a presença impactante do Estado no seio familiar. Até que ponto o Estado pode interferir para determinar o que seja ou não boa educação dada pelos pais a seus filhos? A competência e a responsabilidade de decidir o que pensam ser o melhor para os filhos não deveriam ser de caráter exclusivo e obrigatório dos pais dada às “leis e a ordem da natureza”? Caracteriza-se nessa pretensa “sabedoria” da instância estatal que as fronteiras delimitadoras do espaço familiar e do público estão profundamente abertas, rompidas e instáveis.

Tendo em vista a melhor das intenções de aperfeiçoar o comportamento social, pois, a punição física, mesmo leve, não significa a melhor pedagogia, necessariamente tem-se a idéia de cerceamento completo, por parte do Estado, da liberdade de atuação pessoal, familiar ou grupal. Leve-se em conta até o fato da proibição semelhante já existir, desde 1979, em 14 países, a saber: Suécia, Alemanha, Áustria, Dinamarca, Noruega, Letônia, Israel, Chipre, Islândia, Itália, Canadá, Reino Unido, México e Nova Zelândia.

Na obra clássica, A Política, Aristóteles ressalta que o homem é um ser eminentemente político (zoon politikon), sua tendência natural é para a vida em sociedade, ou seja, a busca da ampliação da capacidade de socializar e politizar. O homem é necessariamente ligado a vínculos sociais. Onde quer que se observe, o homem, seja em qual época e por mais rude e selvagem que possa ser na sua origem, ele é sempre encontrado em estado de convivência com os outros. À medida que a sociedade torna-se mais complexa, ele torna-se um ser “político”, membro de uma polis, de uma cidade, de um Estado e, como membro de tal organismo, ele adquire certos direitos e assume certos deveres. Portanto no espírito associativo está a origem do Estado.

A família constitui-se como o primeiro grupo social, a gênese da sociedade humana, segundo alguns autores, a célula primária do Estado. Em Roma, a lenda de Rômulo e Remo, tendo o primeiro como o grande fundador e ancestral de todos os romanos, dá ao Estado romano a idéia de pátria, uma grande família originária de um herói mítico.
Na Grécia, o Estagirita afirma que a família é um elemento fundamental na constituição das cidades-estados. Ele destaca existirem dois tipos de poder predominantes na ordem familiar diferentes do poder político: o poder paterno e o despótico. O primeiro, o pai exerce com os filhos. O segundo, a relação é entre o chefe (o mesmo pai) e os escravos.

Nesse sentido, o filósofo grego afirma que na Grécia (Antiga), esses dois poderes ocorrem em âmbito doméstico, onde o indivíduo cumpre com seus afazeres e obrigações com o lar e satisfaz suas necessidades naturais (alimentação, higiene, sexo, fisiológicas).

Ao sair da esfera doméstica, o indivíduo transcende o oikos (doméstico), relaciona-se com os outros, busca novas maneiras de pensar, sentir e agir, transforma-se em cidadão, participa do espaço público e atua de forma direta com a presença ativa nas arenas decisórias. Nestes espaços públicos, na Ágora, praças públicas, desenvolvem-se as discussões, os debates, inúmeras rivalidades entre discursos, votos constantes, arbitragens múltiplas, decisões das mais variadas.

O poder político ocorre fora dos lares domésticos, entre iguais, relações entre cidadãos. O poder paterno e despótico ocorre nos lares, entre desiguais, relações de pai/filhos/escravos. Verifica-se então não existir “violência explícita” entre os cidadãos. Um exemplo do período é o filósofo Sócrates obrigado a tomar o copo de cicuta, não havendo, portanto, “derramamento de sangue”. Nos lares domésticos, a punição para com os filhos e os escravos se baseia no binômio: força (violência) e ameaça. Nem sempre os filhos são castigados pela força, mas em certos momentos, o pai exerce seu “direito natural”, recorrendo à violência na busca de obediência. Quanto aos escravos o fundamento de poder do senhor repousa no ex-delictu. Portanto, o escravo deve manter estrita e rigorosa obediência salvo pena de punição.

O que a política significa aqui e agora é resultado de um longo processo, histórico-social, aberto a constantes e sucessivas transformações. O Estado passa, portanto, por um processo de intensa modificação ao longo das épocas históricas. Esta organização jurídico-administrativa, é um elemento dinâmico, por excelência, vem evoluindo sempre, e refletindo, nessa evolução, a trajetória ascensional da civilização humana. O seu desenvolvimento não segue, naturalmente, uma progressão retilínea: avanços arrojados, retrocessos profundos, longas estagnações e até mesmo eclipses duradouros assinalam a sua marcha no tempo e no espaço.

Há, portanto, uma própria evolução cultural dos povos acompanhando o Estado, que os fez entender melhor o papel educativo de uma geração em relação a outra, assim como a complexidade do relacionamento familiar. As relações de pais e filhos se fez anterior e sob o abrigo do Estado, a partir de regras jurídico-sociais que foram evoluindo conforme as circunstâncias históricas. É inegável que tais transformações atingem os mais variados campos das relações humanas, alterando, significativamente, o poder paterno. Este perde, por tendência, o seu caráter autoritário e repressivo. Os pais já não exercem poder de morte e vida de seus filhos. O ordenamento jurídico não permite tais abusos e agressões graves. Este normatiza os mínimos pormenores o comportamento das pessoas numa sociedade. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude da lei. Há uma consciência social de que os maus-tratos e a real violência não são admitidos nesse estágio de evolução dos povos.

Contudo, o autor Donald Barthelme, na obra O Pai Morto, ironiza a ausência desse poder paterno e entende que o poder se mostrará mais presente ainda: “Agora sem pai, tens que lidar com a lembrança de um pai. Muita vez, essa lembrança é mais poderosa que a presença viva de um pai, é uma voz interna a ordenar e arengar, dizendo sim e não – um código binário, sim não sim não sim não sim não, a reger cada um de teus menores movimentos, mentais ou físicos. Em que momento te transformas em ti mesmo? Nunca por inteiro: és sempre ele, em parte. Essa posição privilegiada em teu ouvido interior é sua última “prerrogativa”, e nenhum pai jamais a desprezou”.

Aos pais renunciar a esse “poder tradicional” ou delegar plenos poderes para o Estado gerir as relações familiares é dar mais um passo para uma condição servil. Trata-se de uma destituição de autoridade parental. Se esta se debilita, anula, cria-se o desvinculo da autoridade dos pais, gerando uma situação de anomia, de ausência de regras, a partir da qual as situações de agressão, ameaças, e de desrespeito podem-se desenvolver.

O Estado em sua onipotência, onipresença, onisciência aplica normas, vigia, espiona, fiscaliza, apodera, domina, pune, controla ainda mais a vida de cada cidadão, reduz a liberdade de escolha, ação do cidadão e pode minar com a aprovação do projeto de lei em questão a estrutura histórica da base familiar: o poder paterno.

 

José Renato Ferraz da Silveira. Mestre em Ciência Política. Doutorando em Ciência Política. Professor de Ciência Política do IESB-PREVE – Curso de Direito - jreferraz@hotmail.com

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