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Organização espacial, novas tecnologias e intervenção no espaço público

Arnaldo Francisco Cardoso *

 

Neste começo de século marcado pelo atingimento de um patamar tecnológico relativamente superior ao de épocas precedentes, considerando-se a intensidade e escala do uso de novas tecnologias – com destaque para as de informação e comunicação (NTIC), criadoras de novas percepções de tempo e espaço –, é contrastante a persistência de velhos problemas relativos as formas de ocupação do espaço e as correspondentes relações sociais que nele se produzem e reproduzem.


Com a maior concentração populacional em espaços urbanos, que hoje concentram mais de 60% da população mundial, o entrelaçamento de problemas estruturais como os de moradia, saneamento e transporte, com os de emprego, renda, segurança e participação política, tem reforçado as formas de segregação que as cidades historicamente engendram. A esse quadro acresce-se hoje o papel que as NTIC vem desempenhando ao constituírem-se numa nova variável operante nos processos de inclusão e exclusão social.


No presente artigo buscamos refletir sobre as interações entre estrutura urbana, segregação social, novas tecnologias, representação política e formas de intervenção no espaço público.


Como principal referencial teórico, servimo-nos dos estudos de Manuel Castells, que tem se dedicado à reflexão sobre as implicações do atual estágio de desenvolvimento tecnológico em que a humanidade se encontra, como expresso na seguinte passagem: “A convergência da evolução social e das tecnologias da informação criou uma nova base material para o desempenho de atividades em toda a estrutura social.” (CASTELLS, 1999, 499)


Nesse aspecto, a História mostra que o sentido dado a cada momento em que se registrou um grande salto tecnológico, deveu-se às respectivas formas de apropriação e aplicação de novas tecnologias. Uma visada na cronologia de importantes momentos em que convergiram avanços tecnológicos e mudanças na organização sócio-espacial pode ajudar-nos a compreender o momento presente, localizando-o num processo de mais longa duração.


A cidade já foi o espaço da segurança. Na Idade Média, a cidade era murada e dividia os citadinos dos campônios. O século 19 europeu, com a energia deflagrada pela Revolução Industrial, deu à cidade uma outra face, que ainda preserva traços na paisagem do século 21. É interessante recordar a associação entre cidade e caos, feita pelos literatos do século 19, temerosos com o fenômeno da multidão que aflorava simultânea ao desenvolvimento das grandes cidades.


A multidão, que hoje é revisitada por intelectuais e adquire status de sujeito, foi tratada por Victor Hugo como “caos [...] aqueles que jamais se viram, aqueles que não se conhecem [...] atordoante [...] muito mais que um bosque da América ou uma colméia de abelhas.” (Apud BRESCIANI, 1990, 7)
No século 19, o desenvolvimento da atividade fabril e o crescimento desordenado de cidades que saltaram em poucas décadas de uma população de 10 mil para 1 milhão de habitantes, prenunciavam problemas que se tornariam característicos das cidades do século 20 (os bairros operários desguarnecidos de infra-estrutura, e a violência urbana já imprimiam suas marcas na cidade).


Nos marcos do avanço tecnológico, a siderurgia foi a musa das grandes feiras internacionais, como aquela em Paris que, na virada do século 19, apresentou ao mundo a Torre Eiffel. Desde a Revolução Industrial, foi marcante o direcionamento do desenvolvimento tecnológico para o aumento da produção de bens materiais, de valor econômico, enquanto a forma correspondente de sociabilidade, confiada à própria racionalidade do modelo.


Decorridos poucos anos da entusiástica abertura do século 20, o otimismo provocado pelo avanço tecnológico foi soterrado pelos escombros da 1a Guerra Mundial, e depois pelos da segunda, cada qual revelando, é verdade, novas descobertas tecnológicas.


Os primeiros anos da segunda metade do século 20, experimentaram o vigor do modelo de desenvolvimento que encontrou nas cidades destruídas pela 2ª Guerra Mundial o laboratório ideal para a materialização de suas premissas. O Plano Marshall foi aquele que, ao financiar a reconstrução, Imprimiu um novo padrão espacial para importantes cidades européias, promovendo a afirmação de uma nova potência mundial. Exaltava-se as virtudes da urbanização e de um novo ciclo mundial de industrialização, onde o subdesenvolvimento seria apenas uma etapa a ser superada.


A crítica a esse modelo não tardou a chegar. A idéia-síntese de Henri Lefebvre de que “A totalidade do espaço se converte no lugar da reprodução das relações de produção” (Apud, CORRÊA, 1990, 72), pontuou as teses da corrente da geografia crítica que se desenvolveu nos anos de 1970, articulando conceitos da geografia e das ciências sociais, tomando como objeto a sociedade em sua organização espacial, ou seja, a sociedade espacializada. Entre seus principais nomes deve-se mencionar Yves Lacoste, David Harvey, William Bunge, e o brasileiro Milton Santos, entre outros.


Na argumentação da corrente crítica da geografia, o desemprego, a favelização, a degradação do meio ambiente, a violência urbana, o aumento da desigualdade social passaram a constituir o contraponto às teses exaltadoras dos benefícios da industrialização e urbanização.


Com o avanço das grandes corporações na última quadra do século 20, estas passaram a criar de modo mais sistemático uma organização espacial própria, de acordo com seus interesses, dando corpo a expressão “espaço do capital”.


Marcadamente a partir da década de 1970, concomitante ao desenvolvimento do capital cada vez mais internacionalizado, registrou-se o aparecimento e crescimento de novos movimentos sociais de base urbana – sobretudo nos países em desenvolvimento –, denunciando a insuficiente oferta de equipamentos de necessidade coletiva (habitação, transporte, saúde, cultura...) e a desigual alocação destes. Desse momento é importante observar que o alvo da crítica é o Estado.


Sistematizou-se então a crítica ao tipo de ação realizada pelo Estado, demonstrando que a força da pressão do capital sobre o Estado, torna cada vez mais ambígua essa relação, uma vez que o Estado extrai parte de sua força do capital e, ao retribuir-lhe, termina se tornando agente da desigualdade, que se cristaliza no espaço.


Do evoluir desse processo de crítica das formas tradicionais de atuação do Estado na concepção e implementação de políticas públicas, viu-se o desenvolvimento de novas formas de organização da sociedade civil.


Inicialmente, esse tipo de ação por ser organizada no plano local, caracterizou-se pela fragmentação e pelo reduzido alcance de suas reivindicações e proposições, em contraste com a organização e estratégias cada vez mais globais do capital.


Entretanto, a evolução de novos tipos de ação política e o engajamento de novos atores sociais na pressão sobre o Estado, produziu um “novo espaço”, que vem sendo chamado de espaço público não estatal que, em boa medida, pode ser visto como um processo de reapropriação do público pela coletividade. Nesse particular, é estimulante observar a importância das NTIC no desenvolvimento desse processo de constituição de novos atores com capacidade de intervir na cena pública. O caráter democrático dessas novas tecnologias dá-se por sua acessibilidade e maleabilidade.


Das experiências da administração pública, como as cooperações entre prefeituras de diferentes cidades, socializando know-how, estendendo-se do plano nacional ao internacional, sendo disso exemplo a Rede Mercocidades composta por 17 cidades (Buenos Aires, Córdoba, General San Martin, Mar Del Plata, Rio Cuarto, Rosário, Belo Horizonte, Curitiba, Guarulhos, Juiz de Fora, Porto Alegre, Salvador, Santa Maria, Santo André, São Bernardo do Campo, São Paulo e Vitória), às ações de diferentes organizações e movimentos sociais, são as NTIC convertidas em ferramentas de ação que propiciam a velocidade e o alcance necessários para seu êxito.


É de Castells a seguinte avaliação: “Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura.” (CASTELLS, 1999, 497)


No centro dessas NTIC está a internet (world wide web) que, na definição de um de seus idealizadores, Vinton Cerf, é um meio de comunicação capaz de sediar modelos de compartilhamento de informações. Segundo Cerf “99% das aplicações a serem usadas no futuro ainda não foram inventadas”. (FOLHA DE S. PAULO, 29/01/2006)


Se em 1995, quando se deu o lançamento comercial da internet, ela parecia servir exclusivamente ao grande capital em seu novo estágio de produção, acumulação e desterritorialização, os usos que essa nova ferramenta de comunicação passou a ter, extrapolaram todas as previsões.


O crescimento do número de usuários da internet saltando dos 16 milhões em 1995 para 1 bilhão em 2005, e as estimativas apontando para a casa dos 2 bilhões de usuários em 2010, endossam as análises que reconhecem nessa tecnologia um excepcional potencial revolucionário.


Dada a acessibilidade e maleabilidade dessa nova tecnologia, suas potencialidades vem se materializando ao sabor da experiência e da motivação de seus usuários/agentes, revelando inclusive o hiato hoje existente entre as transformações em curso e nossa compreensão sobre elas.


Dois acontecimentos marcantes desse começo de século (os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA; e a mobilização cidadã realizada após o atentado ao metrô de Madri em 11 de março de 2003 que desencadeou a mudança nos rumos da sucessão política na Espanha) revelaram os diferentes usos que, sob diferentes motivações, as novas tecnologias podem propiciar. Esses acontecimentos lançaram-nos questões tão graves que, as respostas que estão sendo dadas a elas configurar-se-ão em importantes parâmetros para a vida social nas cidades do século 21.


É sabido que os membros da rede Al Qaeda que perpetraram os atentados de 11 de setembro, serviram-se amplamente da internet como meio de comunicação, organização e obtenção de informações necessárias para o êxito de sua ação. Sobre os atentados ao metrô de Madri, os resultados já obtidos nas investigações também revelaram que a internet constituiu-se em importante ferramenta para a execução do plano.


O uso dessas tecnologias por grupos terroristas tem exigido das autoridades públicas e demais profissionais incumbidos de investigar esses crimes, uma atualização de seus conhecimentos incorporando essas novas tecnologias, para uma compreensão de seus usos e potencialidades.


Em Madri, o juiz Juan Del Olmo, responsável pelo processo contra Hassan el Haski, viu-se diante da necessidade de compreender detalhes técnicos do uso da internet para poder comprovar a participação do acusado nos atentados. Como divulgado recentemente pela mídia, os executores do atentado ao metrô de Madri, para não deixar uma trilha digital que pudesse ser seguida, salvavam suas mensagens na pasta “rascunho” e assim disponibilizavam informações que podiam ser compartilhadas através do uso de uma senha conhecida por todos os membros do grupo, sem o efetivo “envio de mensagem” (ato que poderia ser rastreado).


Ainda mais notável foi o uso que as NTIC tiveram no que se seguiu aos atentados ao metrô de Madri.


Poucas horas após os atentados, milhões de pessoas se reuniram no centro de Madri, contestando a versão oficial dos fatos (apresentação do grupo basco ETA como autor dos atentados) e exigindo a verdade de seu governo. A convocação e mobilização desse imenso contingente de cidadãos se deu por meio da internet, conectada por computadores e/ou celulares, em progressão geométrica. Cada usuário, acionando suas ferramentas de correio eletrônico, distribuíram em minutos, milhares de mensagens convocando a presença na praça pública. O resultado final foi uma surpreendente reversão das tendências para o pleito, levando à vitória o candidato do PSOE, J.L. Zapatero, opositor de J.M. Aznar que tentava se reeleger.


A surpreendente e veloz sucessão de acontecimentos que compôs a cena em torno dos atentados ao metrô de Madri gerou um considerável número de análises sobre seus significados. Entre as problemáticas levantadas, destaca-se aquela que aponta para uma obsolescência do Estado-Nação e de sua capacidade para a manutenção da aliança tradicional deste com seus súditos (cidadãos), que tem na questão da segurança seu eixo central. Também as formas convencionais de representação e participação política no modelo de democracia liberal predominante nos países ocidentais e o papel dos tradicionais meios de comunicação nas sociedades modernas foram postos em questão.


Sobre o 13-M espanhol, o professor Victor F. Sampedro Blanco desenvolveu importantes análises, apontando elementos de grandeza e de miséria da multidão e da “tecnopolítica”. No que diz respeito ao âmbito da ação da multidão e a liberdade de consciência dos indivíduos, Blanco resgata que: “A multidão do 13-M se preocupou, antes de tudo, em saber a verdade, em denunciar a mentira antes de realizar o ato mais individual, mais pessoal e intransferível da democracia: o exercício do voto”. (BLANCO: 2005; 292) Essa observação de Blanco responde às especulações sobre um traço totalitário associado à multidão, do tipo visto nas experiências fascista e nazista.


Outro aspecto importante do 13-M espanhol foi a crítica à ação dos meios convencionais de informação e comunicação (canais de televisão, jornais...) diante da versão defendida pelo governo de José Maria Aznar, sobre a autoria do atentado. A respeito das tevês públicas acusadas de serem “armas de desinformação massiva” encontra-se no livro “13-M Multitudes on line” de Vitor Blanco a seguinte indagação: “Que fazer diante de uma televisão paga por todos os cidadãos (também os que votam na oposição) e que faz campanha eleitoral permanente a favor do Poder Executivo?” (BLANCO: 2005; 282-3).


Se, a defesa de uma maior e mais efetiva participação popular na vida política de uma sociedade é o que se projeta como melhor antídoto para os problemas das sociedades modernas (vistas também na sua dimensão espacial, como sociedades espacializadas), é arriscada a confiança irrestrita nos benefícios automáticos derivados de uma tal participação.


A maximização da democracia participativa, ampliando os meios para uma participação real e um desenvolvimento mais pluralista da democracia parece ser um caminho que o estágio de desenvolvimento material e intelectual hoje atingido permite-nos vislumbrar. Mas é também prudente salientar que não são poucos os riscos contidos na exaltação incondicional da participação popular em mecanismos de tomada de decisões. A participação permanente de todos é uma ficção e a insistência numa tal idéia poderia levar ao seu extremo oposto, uma imobilidade total e ausência de consensos.


Ainda citando Vitor Blanco, “A dificuldade de elaborar teses categóricas sobre a multidão e o potencial mobilizador das NTIC reside em sua própria natureza mutante, de múltiplas faces” (BLANCO: 2005; 21)


Ainda assim, parece-nos justificado afirmar que a possibilidade aberta de apropriação de novas tecnologias de informação e comunicação por amplos setores da sociedade civil, possibilitando o desenvolvimento de novas e mais abrangentes formas de participação política visando a melhoria dos padrões de vida social (contemplando aí uma mais justa e sustentável ocupação do espaço), tem o potencial de singularizar nosso tempo.

 

* Arnaldo Francisco Cardoso, cientista político, professor do curso de Relações Internacionais do UniFMU e pesquisador do NEAMP/PUC-SP

 

Referência bibliográficas:
BLANCO, Vitor F. Sampedro. 13-M Multitudes on line. Madri, 2005.
BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003
CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. São Paulo: Ed. Ática, 1990
FOLHA DE S. PAULO. O meio sem a mensagem. 29/01/2006, Caderno Mais!

Arnaldo Francisco Cardoso, cientista político, professor do curso de Relações Internacionais do UniFMU e pesquisador do NEAMP/PUC-SP
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