A sede de poder: o complexo Ricardo III
José Renato Ferraz da Silveira
A peça Ricardo III escrita por William Shakespeare entre 1592 e
1593, integra a tetralogia da Guerra das Duas Rosas, drama histórico
que goza de enorme popularidade e prestígio pelo vigor poético
e temática envolvente. Trata-se de um dos textos mais encenados de
Shakespeare e, desde o dia 18 de maio a capital paulista abriga duas montagens
simultâneas de profunda sensibilidade nos quesitos interpretação
e adaptação. No teatro Ágora, a montagem de Ricardo
III é dirigida por Roberto Lage com adaptação do texto
por Celso Frateschi que, também, encabeça o elenco de quatorze
atores. No teatro da Faap com tradução e adaptação
do escritor, humorista e apresentador Jô Soares que dirige elenco
de quinze atores, entre outros, Marco Ricca, Glória Menezes e Denise
Fraga.
Tanto o teatro como a política são espaços nos quais
somos levados a participar. Ambos exigem engajamento, envolvimento, unidade
entre representantes e representados, cumplicidade entre ator (político)
e público (cidadãos). William Shakespeare nos revela, através
da presente obra, o diálogo entre a política e arte e, consegue
manter, evidentemente, a atualidade da peça para os nossos dias.
Vivemos uma época em que as práticas e o discurso político
são associados à mentira, a farsa, ao engodo de maneira descarada.
A ética do indivíduo concebida e desenvolvida no Renascimento
se hipertrofiou na contemporaneidade como se fosse algo fundamental na essência
humana. Notam-se as conseqüências desse ultra-individualismo
nas inúmeras doenças culturais que se manifestam na sociedade
brasileira: cultura da esperteza, da transferência de responsabilidade,
do imediatismo e do superficialismo, do negativismo e da baixa auto-estima,
da vergonha da cidadania e patriotismo, do piadismo ou do rir da própria
desgraça, do emocionalismo exarcebado e da ciclotimia, do desperdício,
do consumismo, do tecnicismo, do corporativismo, da politicagem, do fisiologismo
e do nepotismo e, por último, a cultura do conformismo. Tais comportamentos
viciosos proliferam-se na esfera dos três poderes do Estado - Executivo,
Legislativo e Judiciário – como se observa nos sucessivos escândalos
que marcam os noticiários políticos dos últimos anos.
Sabe-se que o poder político permeia as relações humanas
e sociais de forma intensa e, por vezes, devastadora. Na visão de
Jean-Marie Domenach, todos somos, ao mesmo tempo, vítimas e culpados,
ao estarmos imersos no mundo da política; não há saídas,
nem lugares para fugir, as forças políticas opostas se confrontam
e se justificam num estado de contradição impactando na sociedade.
Inúmeros pensadores, tais como: Maquiavel, Montesquieu, Locke, Michel
Foucault, Bertrand Russel ocuparam-se em discutir as práticas coletivas
dos meandros do poder e das ações sociais. Shakespeare vai
além. Em Ricardo III, o poder político se apresenta sem disfarces.
O bardo inglês realiza a teatralização da política
expressando as tensões e paradoxos que atravessam a esfera do poder:
o potencial com que a Política pode contribuir ou impedir a melhoria
da condição humana. Nesse sentido, a política para
Shakespeare é uma atividade tipicamente humana caracterizada pelo
binômio: motivação pelo poder e a inevitabilidade do
conflito. Surge daí, uma das novidades da nova perspectiva de compreensão
da política, ou seja, o reconhecimento da permanência do conflito.
Caracterizar, portanto, a política moderna ou contemporânea
é entendê-la como jogo de forças opostas resultantes
dos inconciliáveis desejos humanos. Tal "choque de interesses"
evidencia o caráter trágico do jogo político: conquista,
manutenção e perda do poder.
A tragédia do rei Ricardo III trata da permanente disputa do poder
a qualquer preço e a falta de escrúpulos para a conquista
e manutenção dele. Nela, o protagonista é um sujeito
manco e corcunda, cuja aparência disforme, segundo o próprio,
o impede de usufruir dos prazeres da conquista amorosa, mas não alçar
vôos mais altos. No solilóquio inicial ele planeja como chegar
ao poder mesmo sendo o sétimo na linha sucessória. Para alcançar
seu objetivo, se utiliza de expedientes vis: conspira, manipula, explora,
agrega apoios, promove alianças por conveniências momentâneas,
articula adesões e coalizões, persegue e condena à
morte os opositores. Movido pela sede de poder Ricardo III articula-se nas
sombras, ao longo dos atos e cenas, até alcançar o triunfo
almejado: o trono inglês. Para se livrar de quaisquer suspeitas de
seu envolvimento nas tramas e urdiduras palacianas ele faz uso de subterfúgios
conhecidíssimos: esconde-se sob o manto da religiosidade, sobriedade,
humildade e outros artifícios de valores éticos e morais.
Assim o escritor inglês nos ensina, entretém e diverte. Através
da arte teatral fornece elementos constitutivos do homem contemporâneo
e suas relações. Essas movidas, muitas vezes, por uma ética
individual refletida no uso indiscriminado de inúmeras máscaras
como no jogo teatral; múltiplos disfarces agindo conforme interesses
ou determinadas circunstâncias. Temos, então, o religioso,
o ateu, o humilde, o simples, o culto, o ignorante, o moralista, o liberal,
o caipira, o urbano, o ético, o ideológico, o pragmático,
o vilão, o herói, o solidário, o benemérito,
o sensível, o delicado, o paz e amor, etc. Todos, devidamente, direcionados
ao público alvo a ser atingido.
Na tragédia política Ricardo III captamos essa ética
sendo forjada e desenvolvida. Shakespeare nos revela essa “ética”
como um instrumento de poder e nos proporciona ironicamente mergulhar em
nossas consciências individuais e notar em nosso interior a presença
da sede de poder: o complexo Ricardo III. O teatro moderno representado
nas peças de Shakespeare, bem como o exercício da política
na contemporaneidade concebe os homens como sujeitos da história
impulsionados à participação - uma das exigências
da democracia - não se admite o desinteresse, a passividade e fundamentalmente
a despolitização. No palco da política sejamos atores
e não espectadores, público da tragédia política.
José Renato Ferraz da Silveira é professor
do IESB-PREVE na disciplina de Ciência Política no Curso de
Direito. Doutorando em Ciência Política pela Pontifícia
Universidade Católica, PUC-SP. Mestre em Ciência Política
pela Pontifícia Universidade Católica.

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