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Carlos Alberto de Melo

Carlos Alberto de Melo

 

Em política não se deve pensar em termos ideais. O ideal não existe sequer como utopia, pois utopia é projeto e os projetos políticos estão subordinados ao conflito. O consenso, quando construído, é resultado do apenas possível. A realidade é mulher sofrida, que não se dobra a palavras doces. No fim, são mesmo as circunstâncias o diapasão da ação política. Ainda assim, cabe ao ator político o esforço de conduzir mais do que ser conduzido, articular ao invés de ser envolvido, mobilizar, representar alternativas às circunstâncias que lhe são impostas. Cabe ao ator uma pitada de projeto e uma boa dose de ousadia.

 

Desse modo, pergunta-se: qual o projeto e que dose de ousadia terá o próximo presidente da República? Neste sentido, os dois principais candidatos à eleição de outubro estão devendo. O presidente Lula tremula as bandeiras das realizações de seu governo, mas é sabido que o que fez não basta para um novo mandato. Como também é sabido que, em vários aspectos, seu atual mandato deixa a desejar. Para além do arroz-com-feijão da política econômica e das políticas compensatórias, o que mais Lula tem a dizer? Lula se arroga como um estadista, mas, concretamente, o que deixará para os próximos dez, vinte anos? Com ele próprio admitiu em Brasília Teimosa, o sistema político é uma ferida brasileira e se apresentou como um grande problema para seu governo. Implicitamente, atribuiu a isto as mazelas, os pecadilhos e os pecadões de seus companheiros e aliados. Muito bem.

 

Geraldo Alckmin, por sua vez, tem escamoteado seus planos nos aspectos mais nevrálgicos. O discurso é o de praxe, politicamente correto e desejável pelos formadores de opinião: choque de gestão, reformas tributária e da previdência e, se der, a trabalhista também. Mas, questionado a respeito da viabilidade dessas reformas diante de um Congresso com as características do atual, é comum que recorra ao batido clichê da “reforma política como a mãe de todas as reformas”, começando pela aprovação da “fidelidade partidária, logo em primeiro de janeiro”. Muito bem também. O ideal seria esse mesmo. Mas é necessário estragar o prazer dos discursos feitos e assumir o papel de “o chato da estória”: enfiar o dedo na ferida e questionar inconsistências.

 

Até pelo histórico das últimas eleições, acredita-se que algo em torno de 50% dos parlamentares seja barrado pelas urnas, renovando numericamente o Congresso Nacional. Todavia, não há, pelo menos hoje, indícios de que esta renovação implique nalguma melhoria de qualidade (ética e/ou legislativa). As regras de 2006 são, praticamente, as mesmas de sempre e o cardápio de candidatos oferecido pelos partidos não se diferencia significativamente daquilo que tem sido o costume. A dinâmica política prenhe de crítica e ceticismo tampouco deve contribuir para a melhora geral da situação.

 

Este quadro torna ainda mais consistente um cenário em que o próximo presidente – seja ele quem for – se depare com problemas assemelhados aos atuais. Os desafios do governo e da governabilidade chamam ao pragmatismo e a possibilidade da reedição das atuais mazelas, convenhamos, é considerável. Objetivamente, não haverá forma de fugir à necessidade de formação de maiorias (3/5) quer seja para a aprovação das reformas citadas, quer seja para outras emendas constitucionais que, no final de 2007, proporão a renovação da CPMF (R$ 29 bi, em valores de 2005) e da DRU (desvinculação de 20% das receitas da União, algo que gira em torno dos R$ 60 bilhões). Medidas tão importantes do ponto de vista fiscal cuja hipótese de não aprovação sequer pode ser cogitada.

 

Há, no entanto, por parte dos candidatos, um enorme vazio de propostas objetivas para esta questão. Se o sistema político é um problema, se a reforma política é a mãe das reformas, como tirar essa pedra da bota e resolver logo a parada da mudança de regras e da renovação qualitativa do Congresso? Como mobilizar o sistema político e os partidos para a sua própria transformação e, em alguns casos, liquidação? Como se diz, há de tudo no Congresso, menos bobo; ninguém dá tiro no pé.

 

O fato de existirem propostas de reforma política no Congresso não implica, de forma alguma, na aprovação. Os pontos são controversos e nem é possível saber ao certo sua efetividade. No cenário brasileiro, são apostas. De modo que, para não estender desnecessariamente este artigo, podemos nos ater aos aspectos mais populares das propostas de reforma política: financiamento público de campanha, voto de lista e ou fidelidade partidária.

 

Dado o sistema de fiscalização presente, nada garante que o financiamento público venha a ser, na prática, realmente exclusivo de forma a abolir as contribuições que cobram a fatura depois da eleição. É mais do que compreensivo que a maioria da população olhe para esta proposta com ceticismo. Com deputados que dão nó em pingo de sangue e com poucas garantias de controle social, a medida pode soar mais a abuso do que a moralização.

 

O voto de lista tende a fortalecer as direções partidárias e enfraquecer os parlamentares, avulsos e independentes de partido desde sempre. Embora, em tese, no longo prazo pudesse criar mecanismos de participação e disputa mais efetivos e menos viciados, parece pouco provável que parlamentares eleitos no atual sistema de liberdades tão amplas abram mão desta “autonomia”. Afinal, no raciocínio individualista vale a máxima “em time que está ganhando não se mexe”. O auto-interesse deve determinar as funções de utilidade de suas excelências.

 

A fidelidade partidária é um recurso que visa tanto fortalecer as legendas como minimizar o custo de negociação do Executivo com o Congresso, limitando-o ao diálogo com lideranças de bancada e executivas partidárias. Comparado ao varejão atual, seria um enorme salto de qualidade. Mas, se fosse tão simples, o próprio Fernando Henrique teria feito. Portanto, não será tão simples fazê-lo no primeiro dia de governo, como afiança o candidato tucano. A rigor, a fidelidade partidária se assemelha ao voto de lista. Os partidos são fragmentados e heterogêneos; não há unidade programática nem no PT (Heloisa Helena foi expulsa empunhando o programa do partido). Como “fechar questão” em partidos ainda mais fragmentados? Ademais, porque os deputados abririam mão da possibilidade de negociação direta com o Executivo? Sem esse instrumento, como dar resposta às demandas da base, como operar o clientelismo?

 

Certamente, este será um debate que se estenderá por muito tempo. Há ainda pouca pressão externa para acelerar esse tipo de transformação. Caberia aos principais candidatos estimular o debate, ao invés de mitificá-lo como solução mágica. Interesses eleitorais, no entanto, silenciam a defesa contundente dessas bandeiras transformando-as em idéias-força. Geraldo Alckmin promete algo mais objetivo a respeito do tema. É importante que explique como contornará a questão com partidos aliados como o PFL, hoje, e o PMDB, na eventualidade de uma vitória.

 

A saída clássica, dizem alguns estrategistas de campanha, seria o aproveitamento da “popularidade presidencial do primeiro ano” de modo a “forçar” a aprovação de uma agenda de reformas, sendo a primeira delas a reforma política. Ainda assim, esse “modelo clássico” normalmente se conjuga com composições políticas que resultam em verdadeiros loteamentos. Neste caso, não haveria mudança de cultura e, portanto, a reforma já nasceria com vícios de origem. Ademais, se a lua-de-mel do presidente com o povo dura um ano, o mandato parlamentar dura quatro anos. Logo, vale apenas resistir até o fogo da paixão apagar e o presidente, naturalmente, se enfraquecer.

 

Como alternativa, os mesmos estrategistas têm mencionado à boca pequena que, eleitos, seus candidatos recorrerão diretamente à sociedade – não usam a expressão “recorrer às massas” para não causar ainda pior impressão. Não deixa de ser uma saída; mas o eterno problema desse modelo é o risco de confundir jeito com força e parir um desses tipos de populista tão em voga na América Latina.

 

O recurso do “apelo à sociedade”, acima (ou independente) dos partidos e dos poderes constituídos, requer engenho e arte. Será preciso se lançar num enorme esforço de interlocução com a sociedade viva por meio de entidades representativas, fóruns nacionais, espaços públicos e, se for o caso, partir para a construção de mobilizações populares. O mais provável, porém, é que se fique no meio do caminho, com pouca ou nenhuma efetividade, como tem sido o caso do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social proposto pelo presidente Lula e que causou tanta polêmica no primeiro ano de seu mandato.

 

Esse esforço deveria ser construído durante esta campanha eleitoral, não depois. Seria mais transparente, democrático e efetivo. Numerosa ou não, haveria bancada eleita e mobilizada para travar esse desafio. Ter-se-ia, pelo menos em parte, o apoio da opinião pública. Mas a lógica das composições partidárias desvitaliza o tema, deixando o debate na periferia do assunto. Afinal, os atuais candidatos se elegerão com o auxílio desse mesmo sistema político que temos aí, o qual soube se impor barganhando tempo de televisão, composições e palanques nos estados e estruturas de campanha.

 

Acreditar que a reforma política será aprovada apenas pela candura do sorriso do próximo presidente é acreditar também um pouco em Papai Noel. É ceder uma boa dose de projeto e até temer uma pitada (que seja) de ousadia. Esperemos pela manifestação dos candidatos.

 

Carlos Alberto de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo (carlos.melo@isp.edu.br)

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