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Diante do Gato de Cheshire

Carlos Alberto de Melo

 

Em “Aventuras de Alice no país das maravilhas”, há um momento em que a menina encontra o Gato de Cheshire, ao qual pergunta pelo caminho que poderia tirá-la daquele estranho lugar. Numa lógica irrepreensível, para um gato, o bichano pondera que a resposta depende, antes, de para onde se pretende ir. Paralisada, Alice admite que não importa; ao que o Gato concluiu: “então não importa que caminho tome”. Moral da estória: para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve. Passadas as primeiras semanas da reeleição, o presidente Lula busca libertar-se do crescimento anêmico, mas não demonstra saber em que direção caminhar. Menos, muito menos que projeto, tem expressado angústia; menos, muito menos que a determinação de uma liderança, do presidente transparece uma ansiedade fugaz. Ao contrário da fábula de Lewis Carroll, um caminho qualquer, nesse caso, não apenas não serve, como pode mesmo significar um desastre.

Enquanto procuram o rumo, governistas recorrem a malabarismos discursivos sem objetividade: 5% de crescimento já em 2007; considerações a respeito do “novo desenvolvimentismo”; política monetária menos ortodoxa; política fiscal mais flexível; política cambial mais camarada; ou, o oposto disto tudo: um aperto fiscal sem precedentes, reformas estruturais para valer. Nada faz muito sentido quando não se sabe aonde se quer chegar. E, é claro, a escolha de um caminho supõe a recusa de outro, os tais trade-offs de que nos falam os bons economistas.

O que, de fato, pretende o presidente? Lula não diz. Limita-se a repudiar a mesmice; quer mais ousadia da equipe. Talvez sonhe com o melhor de dois mundos: aceleração do crescimento e aumento de despesas, sem aumento de tributos, sem aperto fiscal e sem risco inflacionário. Só falta querer também a Demi Moore!

Sem a pretensão superar a lógica corrosiva do Gato de Alice, é o caso de perguntar: não deveria Sua Excia. ter pensado nisso antes de se candidatar a mais um mandato? Águas passadas, a campanha eleitoral se resumiu à luta do Santo Guerreiro do Bolsa Família contra o Dragão da Maldade das privatizações. Perdeu-se a oportunidade de sair das urnas com um projeto referendado pela maioria. É tarde. Agora, o que fica é a realidade e, na realidade, pelo menos aparentemente, o que se nota é que o presidente reluta em encarar a inevitabilidade dos trade-offs, como se eles não existissem. Eles existem, embora nem todos os economistas admitam.

Por isso dá voltas em torno do próprio eixo: protela, adia, resmunga, tergiversa e não apresenta nem a novos aliados e nem a velhos adversários quais sejam suas intenções. Dá ainda mais espaços para demandas que ele próprio criou e que não consegue controlar. Governadores, prefeitos, movimentos sociais, petistas, peemedebistas e outras legendas menos cotadas querem o quinhão que o governo nem consegue dar e nem negar. Lula lida com todos como se tentasse ganhar tempo; barganha interesses e crê religiosamente no poder milagroso da lábia e da negociação. Supostamente, assim estabelecerá o consenso e a paz. Mas a paz será curta se não possibilitar avanços reais e duradouros, por meio de uma determinação reformista, que apontem saídas para os entraves da economia e da sociedade brasileiras. Isto, às vezes, parece estar fora do rol de preocupações presidências, ou, antes, não importar, como no caso de Alice.

 

Dois pontos


No momento, pelo menos dois pontos demonstram a indefinição e a confusão que o governo, conscientemente ou não, suscita. O primeiro relaciona-se à propensão de que o novo ministério seja definido somente depois de escolhidas as mesas da Câmara e do Senado. Mais uma vez, fulaniza-se a operação e a ocupação de espaços e se retira a dimensão propositiva da política. De modo que tudo volta a depender de fidelidades pessoais ao invés de compromissos assumidos publicamente. Finca-se o pé pelos nomes de Aldo e Renan. Já foi assim com Sarney e João Paulo e deu no que deu. No mais, há ou não confiança entre os novos parceiros?
O segundo ponto emerge de declarações do ministro Tarso Genro e diz respeito à Reforma Política. A intenção, agora, é “acelerar” o processo para que a reforma seja aprovada até meados de 2007. Realmente, em 2008, novo ciclo político será aberto e, se nada for modificado até lá, as vacas vão mesmo para o brejo e para os currais municipais. Contudo – para não sobrecarregar este artigo com a diversidade controversa das propostas –, o problema está, sobretudo, na forma como se esboça a condução do processo.

Há meses pairam no ar conversas entre o governo e organizações da sociedade civil, principalmente, a OAB. O próprio Lula, após um desses encontros, soltou o balão de ensaio da mini-constituinte exclusiva para a reforma política. Não deu certo. Agora, ao se avistar com Roberto Busato, presidente da entidade, o ministro Genro indicou que o governo prefere iniciar o processo de discussão da reforma a partir de projeto daquela entidade de advogados e por meio do CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social).

Surge como óbvia a desconfiança de que se pretende pressionar pela reforma, atuando por fora do próprio sistema político. Pode ser e talvez não haja outro modo. “Em terra de barões não há acordo coletivo durável a não ser por uma força externa e temida” (Sérgio Buarque). Mas, em política, sabe-se que a esperteza, quando é demais, cresce e come o próprio esperto. Jogos pouco claros e repletos de indefinições não combinam com setores que lutam pela preservação do status quo. A principal advertência que se pode fazer deposita-se na suspeita de que parlamentares, favorecidos pelas regras atuais, tendem se proteger do incerto e inesperado, antecipando-se e podendo entornar o barco do governo, colocando em risco a agenda legislativa econômica. Em política, cuidado nunca é demais.

A ação sugerida por Tarso Genro, ao desconsiderar a via tradicional das comissões temáticas e do Congresso Nacional, abre espaço para reação. Melhor seria houvesse projetos e intenções claros, e atores que jogassem às claras e que o debate se estabelecesse. Bastariam coragem e liderança para isto. Mas o rio não parece correr para esse mar. Além do mais, o tema esteve fora do debate eleitoral e para reabri-lo agora haverá, logicamente, constrangimentos. Imagine-se o fim da reeleição, por exemplo: por que, voluntariamente, governadores eleitos para primeiro mandato abririam mão do direito sem contestação? Só se tivessem outros projetos e não quisessem mesmo continuar nos governos recém conquistados, como é o caso de José Serra.

Mesmo para soltar balões de ensaio é preciso jeito e tato. Quanto mais para abrir um debate nacional complexo e politicamente pouco viável, como seria o caso de uma reforma política de verdade. Ademais, ex ante, os proponentes precisam saber onde, afinal, pretendem chegar. Em todo nosso sistema político, poucos demonstram essa habilidade; raríssimos são os que sabem que caminho trilhar.

 

Coelhos


Assim como nas aventuras de Alice, também há na cena política nacional coelhos que correm apressados. Estes, porém, com direção e propósitos bem definidos. Como na fábula, trazem relógios no bolso do colete e não tiram o olho do tempo que falta para 2010. José Serra e Aécio Neves são dois coelhos desse tipo e já fazem, sutilmente, a disputa que se prenunciava desde que Geraldo Alckmin foi escolhido candidato pelos tucanos. Já sinalizam caminhos e constroem estratégias. Ao contrário de Lula, a partir de suas cidadelas, buscam criar bases para a proposta de governo que pretendem apresentar em pouco menos de quatro anos.

Aécio prepara-se para assumir a linha de frente de governadores e prefeitos sedentos por restaurar a enfraquecida idéia de federalismo e, é claro, abocanhar parte das receitas federais. Articula-se para obter condições de liderança em relação a seus iguais, pressionando o governo federal pela revisão do ICMS, da Lei Kandir, da repartição da Cide e tudo aquilo que, fortalecendo estados e municípios, também fortaleça sua imagem. Se tudo correr bem (ou mesmo que corra mal), o papel de reconstrutor do federalismo o colocará como credor político de uma mancheia de governos e prefeituras quebrados por todo país. Não se sabe o quanto isto possa comprometer a saúde financeira da União, mas, além de grande visibilidade, a perspectiva de conquistar enorme capilaridade em território nacional não é nada desprezível. Excelente para quem pretende disputar o poder nacional.

Menos simpático, mais soturno e ensimesmado, José Serra busca lidar com as forças econômicas e ideológicas diferentes de governadores e prefeitos. Quer vocalizar a crítica ao crescimento medíocre, expressar o novo projeto desenvolvimentista; romper com a mesmice da qual Lula tanto se queixa aos seus economistas. Político que se acredita economista mais que tudo, insinua medidas arrojadas: câmbio, juros, despesas correntes... Sinaliza, com insistência que seu campo está à esquerda (tanto de Lula quanto de Aécio) e, num balão de ensaio, vislumbrou até a criação de um novo partido. Busca ocupar o vazio da social-democracia dos tucanos e até mesmo de parte dos petistas. Quer renegociar dívidas estaduais, promover um governo realizador, em que pese algum eventual e inevitável custo às contas públicas. Mostrará que dedicou a vida ao desenvolvimento. Como interlocutores, terá uma boa parte do PIB, na Fiesp e na agricultura paulista. Precisará se acertar com o mercado financeiro. Seu canhão de enorme visibilidade será o maior estado da federação e a irrefreável propensão a discutir as causas nacionais.

Nenhum dos dois hostilizará Lula frontalmente, pelo menos por enquanto. Para quê, se o presidente não é candidato à re-reeleição? Por outro lado, para conter este processo e não ver seu capital político rapidamente diluído, Lula buscará reagir rápido. Como já se disse, primeiro por meio de sua autoproclamada capacidade de diálogo. Serão dezenas de reuniões: reunir-se-á com governadores aliados, provavelmente como uma forma de pôr anteparos à ação de Aécio. Mas, bem sabe o presidente que não há relação com governadores que não compreenda gastos para a União; reunir-se-á com os movimentos sociais como forma a resguardar seu espaço de esquerda, mas também bem sabe que não há movimento social sem reivindicação geral ou pontual e nem passível de satisfação plena; reunir-se-á com empresários e agricultores, mas também é de se supor que à sua mão estendida respondam com queixas por mais crédito, mais incentivos, menos juros e câmbio “favorável”; mais gasto, portanto; reunir-se-á com deputados e senadores, mas sabe que isto compreenderá em mais cargos, mais disputas internas, mais concessões.

Fará tudo isto sem um articulador definido, encarando o desgaste pessoal, sem resguardar nem a si e nem ao cargo. Mais fácil e proveitoso tivesse ele um plano mínimo que apresentasse a todos, que assimilasse algumas defecções inevitáveis, mas que assegurasse alianças sólidas, publicamente negociadas e comprometidas; apontando para algum lugar que se possa antever. Mas, falta-lhe saber para onde. Enfim, enquanto Aécio – ao estilo de seu avô – se porta como o articulador e Serra se comporta como o realizador de esquerda; Lula se queda paralisado como se fosse Alice diante do Gato de Cheshire.

Carlos Alberto de Melo, Cientista Político, Doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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