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Corra Lula, corra

Carlos Alberto de Melo

 

Reeleição não precisa ser apenas prolongamento de primeiro mandato. Pode também assumir um “começar de novo”; uma oportunidade de corrigir rumos, refazer percursos sem repetir erros. Governo novo, vida nova capaz de realizar expectativas que a realidade sepultou nos quatro anos anteriores. Em virtude disto, forças políticas se aglutinam. Estabelecem novas alianças, redefinindo adversários. Mas, ao mesmo tempo, grupos de interesses antes dispersos e desiludidos retomam a pressão, na intenção de reavivar a chama de programas enfraquecidos ou abandonados. Ao (novo) governo caberia não se intimidar com as expectativas geradas. Nitidez de objetivos e firmeza de rumos espantam intrigas e disputas e definem dinâmicas sociais. Por direito e dever, isto cabe ao presidente da República, o condutor do processo.

Não é, porém, o que tem acontecido às vésperas do segundo mandato. Por esperteza, falta de alternativa ou de rumo, o presidente tergiversa. Ao limite, exerce a arte da ambigüidade e o fascínio da caneta que nomeia. Mas, como não diz para onde vai, estimula disputas internas como método de gerenciamento. Tudo seria desimportante não houvesse uma sociedade dividida e pulsante no seu aguardo; setores esperançosos com o desafio de desenvolver o país em ritmos mais acelerados que os passos de cágado das últimas décadas. A indefinição, ainda que dê fôlego à composição, desorganiza a sociedade; acirra disputas e obscurece o futuro. Quem tem o mínimo de amizades e uma única gota de sensibilidade política já percebeu que as evasivas do governo estão se transformando em bate-boca social.

Nos debates de TV, os exemplos são inúmeros. Mas, nem precisa tanta abstração. Basta organizar uma pequena reunião de amigos que apóiem o presidente. O leitor perceberá a torre de babel que se constrói: convide velhos e bons camaradas para congratular; deixe o assunto correr solto; de preferência, forme o grupo com um ou dois que ficaram no PT; um ou dois que foram para o governo; aquela ovelha desgarrada que deu certo no mercado financeiro; os dois que fizeram a vida na Universidade – de preferência, um que tenha optado pela pública e outro com PhD no exterior. Por fim, junte a eles mais dois pistolões ligados à “indústria paulista”. Pois bem: você presenciará diálogos, monólogos e até solilóquios inacreditáveis.

Na perspectiva de um novo mandato, os presentes se mostrarão crentes ressuscitados, esperançosos de que, agora sim, Lula fará “as escolhas corretas”. Para “o mercado”, é claro, o presidente optará por uma fuga para frente, aprofundando reformas estruturais, definindo marcos regulatórios, ajustando o ajuste e garantindo a estabilidade do Banco Central. Para os remanescentes petistas – repare – o verdadeiro governo “democrático-popular” começará somente agora, em 1º de janeiro de 2007; teremos, enfim, o Plano B do Plano B que nunca veio.

Para o professor da Universidade pública, já não era sem tempo, finalmente os juros serão decepados a facão (“as taxas mais altas do mundo”); para o PhD: “ora, que bobagem, os juros são endógenos!”. Para o pessoal da indústria, mudanças no câmbio, financiamento barato e proteção à produção nacional – “incentivos, investimentos e abaixo a exploração dos chineses!”. Quanto aos membros do governo... Bem, depende de duas coisas: 1) daquilo que acreditem o presidente está pensando e; 2) daquilo que esperam o presidente venha a pensar. O saldo será igual a zero; os discursos se anularão.

Do mesmo modo se dá “o diálogo nacional”. Não há entendimento simplesmente porque não existe quem dirija o processo por meio de uma proposta aglutinadora. No íntimo, todos os mais relevantes atores políticos no campo do governo fazem o que os americanos chamam de wishfull tinking: a capacidade de acreditar naquilo que se gostaria fosse a realidade. O presidente Lula, assim, se transforma num “campo em disputa”; última e mais importante trincheira na guerra de interesses e visões de mundo. Luta-se para convencê-lo. Mas Lula, que não nasceu ontem, enrola o pito, observa o movimento, tenta descobrir de onde vem a chuva para definir em qual lado buscar abrigo. Velho marinheiro, leva o barco devagar. Ouve a todos; colhe opiniões, adesões e aliados. Mas, de quem realmente gosta – como no fado – nem às paredes confessa.

Afinal, o que prepara? Quem são seus interlocutores? No que consiste suas decisões quando decide não decidir? Acredita mesmo que tudo se resolverá numa rodada de discussões, na criação de fóruns e reuniões, essa forja fria de consensos? Pode ser. Talvez não haja mesmo alternativa defronte do sistema político reafirmado pelas urnas de 2006. Em recente programa de TV o deputado Delfim Netto alertava para o fato de que “não há mandato político” para nada muito ousado. “O carro terá que ser abastecido e os pneus serão trocados com o veículo em movimento”, disse. A interpretação possível da fala do ex-ministro é a de que o caminho se fará mesmo andando, sentido o ronco do motor e o latejar dos calos. É mesmo o mais provável, mas a questão é: deixaremos apenas às curvas do caminho a definição dos pneus e combustível a usar?

Há muitos anos o Brasil vive um empate de forças. Uma queda-de-braço inconclusa. Desde a constituinte de 1986 tem sido assim. Nos primeiros meses de Fernando Henrique fez-se a reforma possível da ordem econômica, mas no Estado ninguém tasca, ninguém põe a mão. Quando Lula chegou, apenas consolidou fato consumado de reformas possíveis e parciais. Mais não fez, simplesmente, porque não faria mesmo que tentasse. Não somos o Chile, violentamente esclarecido diante do trauma sangrento; e nem a Espanha exaurida que recolheu seus cacos e se integrou à força inexorável da União Européia. Somos o Brasil e, às vezes, temos a “íntima convicção de que não vale a pena” (Sérgio Buarque). No mais, o sistema político não pode dar além daquilo para que foi eleito.

Mas, posto isto, não podemos omitir a necessidade da liderança política. É certo que a reeleição não traz as mesmas esperanças e nem a lua-de-mel de um primeiro mandato, mas, afinal, temos presidente pleno de legitimidade. Cumpre que assuma sua liderança e o protagonismo de um novo processo, num novo mandato. Há novamente um percurso a cumprir. Será preciso refazer escolhas, com a experiência dos erros do passado e a intransferível coragem de aceitar algum desgaste no próprio campo.

A indefinição já não serve até porque a eleição passou e agora é o que se tem é o desafio diante da história. Nesta fase, a indefinição é desagregadora e apenas necrosa as bases. A manifestação de Ciro Gomes ao seu velho estilo talvez seja apenas o primeiro sinal de um processo que se inicia: muito mais profundo e desgastante, pois pode resultar, ao contrário do que se pretende, no isolamento e na solidão presidencial. Um homem não substitui um partido, um governo e nem tampouco uma nação. Por isso, é preciso ter lado e defini-lo para que as águas deixem de ser turvas. As cenas que se prenunciam nas disputas entre PT e PMDB, a começar pelas mesas da Câmara e do Senado, soam estranhas diante de um presidente que, de público, apoiou (ou disse apoiar) Aldo Rebelo. Essa fita já passou e vimos que o roteiro foi de péssima qualidade.

Por falar nisso, nos últimos tempos, um dos mais criativos filmes do cinema alemão foi “Corra Lola, corra”. Narra a história de uma garota com não mais que vinte minutos para descolar uma grana preta e salvar o namorado da degola. O roteiro é fantástico: a moça de cabelos vermelhos sai pelas ruas em disparada para encontrar com o destino. Na primeira tentativa, é claro, fracassa. Mas, o tempo volta, a ação se repete por mais duas vezes, ocasiões em que a mocinha retoma o processo, corrige erros, redefine o caminho, refaz escolhas e vai construindo o acerto. Por fim, controla o inesperado. Um filmaço!

O presidente Lula passa por situação assemelhada: possui mais quatro anos para repetir o trajeto, revendo percalços, reafirmando e refazendo escolhas. Não terá, porém, uma terceira chance. Sua tarefa é um tanto quanto mais difícil, principalmente, porque nesse percurso não lhe faltam “palpiteiros” e torcedores interessados. Gente buzinando, trânsito pesado e desrespeito à sinalização. Ainda assim, tal qual Lola, Lula terá que enfrentar o desafio, redefinindo ele próprio o melhor trajeto que sua experiência intuir. Entrar à direita ou à esquerda e ir em frente. Vale a pena, isto sim, chamar os amigos para assistir a este filme: Corra Lula, corra!

Carlos Alberto de Melo
, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. (carlos.melo@isp.edu.br)

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