Monitorado por fofoqueiros
José Renato
“Em nosso mundo não haverá outras emoções
além de medo, fúria, triunfo e autodegradação.
Destruiremos tudo mais, tudo. Já estamos liquidando os hábitos
de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos
os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem.
Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro
não haverá esposas nem amigos”.
Esse trecho assustador é extraído do intrigante 1984 escrito
por Eric Arthur Blair (1903-1950) sob o pseudônimo de George Orwell.
Considerado atualmente como o escritor mais influente do século XX.
A obra 1984 é particularmente um livro de caráter político.
De acordo com Wilson Velloso, ela retrata o mundo dividido em três grandes
superestados: Eurásia, Lestásia e Oceania. O enredo, sob a perspectiva
de Oceania, mostra como teletelas permitem que o chefe supremo do Partido,
o Grande Irmão – o Big Brother no original inglês –
vigie os indivíduos e mantenha um sistema político cuja coesão
interna é obtida não só pela opressão, mas também
pela construção de um idioma totalitário, a Novilíngua,
que, quando estivesse completo, impediria a expressão de qualquer opinião
contrária ao Partido.
Desde o dia 9 de janeiro p.p, foi ao ar a sétima edição
do Big Brother Brasil (BBB). Reality-show de alto índice de audiência.
Nessa tapeação espiolhável os participantes competem
entre si numa teatralização barata e vulgar. Em jogo uma bolada
de um milhão de reais.
Na reportagem “A era das câmeras” do Jornal da Cidade, de
14 de janeiro p.p, esse espetáculo televisivo retoma a discussão
acerca da questão do direito à privacidade. Esse é um
dos Direitos fundamentais de 1° geração. Para o advogado
João Antônio Wiegerinck, tais direitos “são aqueles
que surgem com a idéia de Estado de Direito. São os direitos
de defesa do indivíduo perante o Estado, tais como: o direito à
vida, à intimidade, à inviolabilidade do domícilio”.
Ou seja, direitos consagrados a partir de três movimentos singulares
na história-política do Ocidente: a Revolução
Inglesa de 1689, Revolução Americana de 1776 e a Revolução
Francesa de 1789. Três revoluções liberais influenciadas
pelo Iluminismo contra o Absolutismo monárquico.
De fato, no que se refere ao citado show global brasileiro não se trata
de uma invasão de privacidade conduzida por um Estado centralizador
e repressivo frente aos indivíduos. Mas, como afirma a psicóloga
clínica e terapeuta familiar Júlia Verónica Rodriguez
Hernandez: “desde as sociedades pré-industriais até os
dias de hoje, os indivíduos convivem com a presença constante
do olhar do outro, personificado pela família extensa, parentes, amigos,
vizinhos ou conhecidos (...) com maior ou menor gravidade, todo ser humano
age impulsionado por desejos e sentimentos, e possui falhas de comportamento.
Neste sentido, ao vigiar e espiar a vida alheia, seja assistindo o BBB ou
por outros meios - como a Internet e também nos relacionamentos interpessoais
–, ele está fazendo fofoca”.
Constata-se no atual momento que preservar nossa imagem e cuidar de nossa
privacidade é tarefa quase impossível. Além de estarmos
submetidos pelo constante controle social, existe ao redor de nós,
um eficiente controle impessoal, representado, por exemplo, pelas câmeras.
Elas estão por toda parte. E o que é pior, sob a irônica
frase: “sorria, você está sendo filmado”.
A explicação para isso é a busca de segurança.
Ansiamos por proteção, apesar dos malefícios do patrulhamento
digital ou não. Os crachás de identificação, cercas
elétricas, portas giratórias, portões eletrônicos
e outros controles são vistos com naturalidade. “Na verdade existe
uma contradição no modo de vida atual; as pessoas vivenciam
incompatibilidades: querem segurança e ao mesmo tempo privacidade;
desejam ser vistas e ter reconhecimento, mas também se manterem anônimas.
É difícil conciliar tudo isto”, diz Hernandez. Nesse dilema
entre a fama e o anonimato é preciso cautela e discernimento.
Ah, para os interessados, o título acima foi extraído de uma
frase contida em um caminhão na via expressa de Bauru. Nem mesmo George
Orwell teria imaginado tanto.
José Renato Ferraz da Silveira. Professor de Ciência Política no Curso de Direito, Antropologia no Curso de Design e Mercados regionais no Curso de Administração no IESB-PREVE. Professor de Filosofia e Sociologia no Colégio Fênix.

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