RECORD vs. GLOBO
Uma ameaça ainda longínqua
Carla Mortuori
publicado
no Observatório da Imprensa
A revista Carta Capital, do dia 28 de março de 2007, trouxe como
capa a disputa concorrencial entre Record e a Globo, aludindo, finalmente,
para um possível fim da hegemonia da vênus platinada no país,
depois de mais de três décadas de controle e poder no campo
da comunicação televisiva.
Ao ler a reportagem, decidi lançar algumas questões, que perpassam
o campo mercadológico, e vão, a meu ver, de encontro à
possibilidade de novos autores e regras no mercado televisivo brasileiro.
A disputa no dia-a-dia pelo aumento nos índices de audiência
das telenovelas, a contratação de funcionários da emissora
concorrente, as cópias fiéis dos programas jornalísticos,
e outras tantas tentativas da Record para desbancar a concorrência,
ainda representam frágeis estratégias de mercado para afetar
a Globo.
A história da televisão brasileira nos mostra que, por diversas
vezes, programas e estratégias específicas de marketing, semelhantes
às já anunciadas, e advindas de emissoras concorrentes, visavam
da mesma forma fragilizar o poder da líder. Como exemplo pode-se
citar o telejornal Aqui Agora, do SBT, lançado em 1991, que alcançou
altos índices de audiência, chegando a ameaçar o Jornal
Nacional, telejornal de maior audiência da Globo. Extremamente sensacionalista,
o Aqui Agora ficou conhecido pelas reportagens sobre acidentes graves, assassinatos
e crimes chocantes. Seu força junto ao telespectador fez com que,
pela primeira vez na história do telejornalismo da emissora, a Rede
Globo alterasse a estrutura do telejornal mais antigo da sua grade de programação,
passando a incluir no noticiário, imagens de maior grau apelativo.
Sucesso semelhante, obteve a Rede Manchete, em 1990, com a novela Pantanal.
Primeira telenovela não-global apresentada desde a falência
da TV Tupi, em 1980, Pantanal ficou conhecida por bater a audiência
da TV Globo, alcançando a média diária de 40 pontos.
O incômodo foi tão grande que a emissora de Roberto Marinho
acabou submetendo sua grade de programação ao horário
da concorrente. Assim, a Rede Globo passou a esticar a novela das oito,
na época Rainha da Sucata, de Sílvio Abreu, para que os telespectadores
não mudassem de canal.
Na mesma linha, outro grande aborrecimento para a líder surgiu em
2001 com o sucesso estrondoso do programa Casa dos Artistas, lançado
pelo SBT. A primeira versão do programa, que contou com 12 participantes,
foi responsável por desequilibrar a Vênus Platinada em seu
horário mais tradicional: em 28 de outubro de 2001, a Casa dos Artistas
ultrapassou a audiência do Fantástico, que desde 1973, era
imbatível. Em resposta, a Rede Globo acusou o SBT de plagiar a idéia
da produtora Endemol, criadora e detentora dos direitos do reality show
Big Brother, programa que o SBT acabou recusando comprar, para fazer uma
versão sem pagar direitos autorais. Os apelos foram ganhos pelo SBT,
pois não ficou provado o plágio. Mas as brigas judiciais e
concorrenciais entre o SBT e a Rede Globo não pararam por aí,
e estenderam-se, sobretudo, para os programas dominicais, que travam uma
batalha acirrada, que perdura há alguns anos.
Assim como esses, podemos citar outros programas e estratégias concorrenciais
que abalaram a audiência da líder. Penso não ser o caso,
já que meu ponto de reflexão é outro e gira em torno
das relações de poder instaurada pela emissora no país,
desde seu surgimento. Abordando superficialmente os lobbies políticos
da Globo, a reportagem da Carta Capital, infelizmente, não aprofunda
as suas relações com o campo político, fundamentais,
e que ditaram, por diversas vezes, as regras e posições no
mercado comunicacional, ou seja, seu market-share.
Resta lembra que o surgimento da Rede Globo e a posterior implantação
de uma estrutura audiovisual mais moderna e arrojada que as demais concorrentes,
teve inicio em 1965, a partir da união com o grupo americano de multimídia
Time-Life, mesmo conhecendo as normas regulativas do setor e sabendo que
tal acordo infringiria um artigo da Constituição Brasileira
imposta pelo regime militar, que proibia a participação acionária
de empresas estrangeiras na área de comunicação no
país. Para averiguar o fato, foi aberta uma Comissão Parlamentar
de Inquérito, que na época não obteve grandes resultados.
Dessa forma, a Rede Globo criou uma estratégia monopolista, com pesados
investimentos em recursos tecnológicos modernos e mão-de-obra
qualificada, para obter uma programação infinitamente superior
que as demais.
Daí para frente pouca coisa mudou para a Rede. Sofreu, é claro,
uma sensível queda de audiência em função do
ingresso da TV por assinatura no Brasil . Por outro lado, seu poder de se
estabelecer na posição de líder, utilizando sua influência
e pressionando políticos e setores do governo, por meio de lobbies
e relações de troca simbólica, parece permanecer arraigado
na estrutura comunicacional brasileira.
A própria revista Carta Capital constatou recentemente essa revelação
em matéria publicada no dia 18 de agosto de 2004, questionando os
problemas para a criação da Agência Nacional de Cinema
e do Audiovisual (ANCINAV). Nessa reportagem, a revista esclareceu que,
em 2004, o Ministério da Cultura, sob o comando do Ministro Gilberto
Gil, reabriu o projeto da Ancinav, para que o Estado retomasse as responsabilidades
de atuar como regulador do mercado audiovisual. Entretanto, o projeto previa
interferência do governo na programação das emissoras,
além da cobrança de um novo imposto, denominado Condecine,
que atrelava o pagamento de uma taxa de 4% sobre o faturamento publicitário
no cinema e na TV. Todas as redes de televisão questionaram a taxa,
mas a maior prejudicada seria a Rede Globo. O dispositivo atingia em cheio
os seus interesses financeiros, já que a emissora possui 51% de audiência
e abarca 70% da verba publicitária do setor.
Preocupada com o caráter pouco lucrativo da proposta, antes mesmo
de ser divulgada oficialmente pelo governo, a Rede Globo ingressou em uma
batalha contra o anteprojeto. No dia 5 de agosto de 2004, o Jornal Nacional
dedicou cinco minutos de seu tempo para atacar as propostas do Ministério
da Cultura, acentuando que a agência poderia influenciar diretamente
no conteúdo editorial das emissoras, desrespeitando a liberdade de
expressão.
No dia 6 de agosto de 2004, foi a voz de Arnaldo Jabor que soou de maneira
ofensiva contra o projeto. Insinuando uma tendência despótica
do ministério, Jabor diz em sua crônica que o Governo Federal
durante o dia finge ser liberal e, à noite, deixa apontar uma vocação
autoritária. As ondas de ataques ao Ministro continuaram nos dias
seguintes, comandadas pelos telejornais da emissora, formando uma espécie
de conspiração contra Gilberto Gil, o que de fato impediu
que o projeto fosse apresentado e explicado de forma clara à população.
Assim, não tardou para que o projeto fosse derrubado. Segundo esclarece
a revista Carta Capital, no dia 13 de janeiro de 2005, o Palácio
do Planalto resolveu banir a parte fundamental do projeto que criava a Agência
Nacional do Cinema e do Audiovisual. Em uma reunião, de que participaram
nove ministros de Estado, todas as cláusulas relativas à regulamentação
do setor, ponto que mais incomodava a Rede Globo, foram retiradas do texto.
Por trás da ação, estava a diretora da emissora, Marluce
Dias, que empenhou-se pessoalmente na tarefa de convencer os integrantes
do governo e os representantes do Conselho Superior de Cinema que o projeto
era autoritário e deveria ser barrado, ou pelo menos as cláusulas
reguladoras deveriam ser extintas.
Para o leitor mais atento, esse episódio, aparentemente descontextualizado,
não traz nada de original, perante tantas interferências da
emissora no campo político, a exemplo da eleição para
governador do Rio de Janeiro, em 1982, a famosa disputa presidencial entre
Collor e Lula, e as mais diversas manipulações da emissora
nesse setor.
Por outro lado, esse acontecimento recente serve de reflexão sobre
a possível mudança no cenário televisivo atual. Mesmo
incomodando a líder, com programas sofisticados e estratégias
de marketing agressivas, a Record ainda não é provável
concorrente da Globo. A força da emissora perpassa o padrão
de qualidade e os programas televisivos, e se instaura na própria
política do país. É uma retroalimentação
que já dura décadas, e solidifica-se , no jogo clientelista
com o poder, e, principalmente, nos poderosos e tradicionais aliados políticos
da emissora, a começar pelo ex-presidente José Sarney e por
Antônio Carlos Magalhães.
E como é muito tênue o ponto que separa a mídia Global
e a política no Brasil, fica uma pergunta: será possível
desbancar a Globo por meio de estratégias simples de mercado? Talvez,
a grande possibilidade para a Record alcançar o posto de líder,
não se restringe a construção de uma grade de programação
mais atraente, com programas estéticos semelhantes ao da líder,
mas sim na busca por um maior espaço político, angariando
maior representatividade no setor.

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