Federalismo e novas Experiências de Integração Regional
Regina Célia dos Reis
Resumo:
Este texto é parte do estudo realizado sobre a articulação política regional desenvolvida na região do Grande ABC Paulista. Os dados indicam o surgimento de uma nova dimensão da política no plano da integração regional, cujos resultados confirmam a hipótese de que esta experiência pode ser considerada como a expressão regional para se pensar a reformulação do pacto federativo brasileiro proposto na década de 80.
INTRODUÇÃO
A Constituição brasileira de 1891 marcou o início do sistema federativo brasileiro. De concepção republicana e federativa, influenciada pela Constituição dos Estados Unidos da América, o texto incluiu o município autônomo como princípios fundamentais da organização política do Brasil.
Neste período, surge a proposta de federalismo cooperativo de modo
que os consórcios intermunicipais foram previstos e considerados
na forma de contratos que, se celebrados entre Municípios, precisavam
da aprovação do Estado e, se celebrados entre Estados, precisavam
da aprovação da União.
Abrucio (1998) ao estudar os dilemas da centralização versus
descentralização do poder na formação do Estado
nacional brasileiro, conclui que, apesar da influência do modelo americano
muito presente nas idéias de seu idealizador Rui Barbosa, o federalismo
brasileiro assumiu características bem distintas. No caso da experiência
americana, antes mesmo do surgimento da União, havia autonomia das
unidades territoriais, já o federalismo brasileiro nasceu em prol
da descentralização em função do descontentamento
que havia em relação ao centralismo imperial.
O autor afirma que durante o período da Primeira República,
no modelo de Campos Sales, caracterizado como a “política dos
governadores”, os governadores tinham papel predominante dentro do
sistema político, legitimados pelas eleições presidenciais
que passava por um acordo entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais.
Apesar de deter o poder moderador, o presidente não conseguia intervir
nos estados mais importantes da Federação. Além disso,
o poder da república se concentrava também nos partidos estaduais,
ao contrário da forte presença dos partidos nacionais durante
o Império.
Contudo, o fim da Primeira República se deu em meio ao discurso nacionalista
de crítica ao modelo oligárquico, embora o federalismo brasileiro
não tenha conseguido estabelecer uma relação de interdependência
entre a União e os estados.
“Havia um desequilíbrio federativo acentuado que contrapunha,
de um lado, dois estados muito fortes – Minas Gerais e especialmente
São Paulo – contra uma União frágil frente a
eles, e de outro, mais de uma dezena de unidades estaduais que mal podiam
sobreviver pelas “próprias pernas”, necessitando de auxílio
do Tesouro federal – o que na prática significava se filiar
automaticamente ao bloco do “café com leite”. Sem real
autonomia para todos os estados, torna-se difícil implementar um
verdadeiro federalismo”. ABRUCIO 1998: p. 40)
O chamado Estado Varguista-desenvolvimentista, do período de 30 a
45, de cunho centralizador, procurou acomodar os interesses do poder central
e os objetivos das unidades estaduais. Após o golpe de novembro de
1937, o Estado Novo redefiniu o padrão de relações
intergovernamentais através de um processo de modernização
administrativa , instituiu-se a prática do intervencionismo para
garantir o controle do poder central sobre os estados.
“A engrenagem das relações “federativas”
do Estado Novo estava completa: as interventorias, os “Daspinhos”
e o Ministério da Justiça coordenavam a administração
estadual, sob o controle geral do presidente da República (Campello
de Souza, op.cit.:19), e a representação dos interesses econômicos
seria feita pela via burocrático-corporativa. Em nome da modernização
econômico-administrativa, os estados ficaram com menos autonomia do
que as províncias do Império. Pensando no ideal de federalismo
republicano, pode-se dizer que na Primeira República o federalismo
tinha se dissociado da república, no Estado Novo o próprio
federalismo tinha desaparecido.” (Idem C. A.. 47)
Abrucio (1998) destaca que, no período seguinte de 45 a 64, a Federação
se tornou multipolarizada, ou seja, “as relações federativas
se tornaram mais equilibradas, pois União e estados se tornaram mais
eqüi-potentes. Os estados recuperaram sua autonomia e a União,
mediante o arranjo Varguista, aumentou seu raio de ação”
(Idem: p. 50). Porém, houve o fortalecimento do poder dos governadores
devido ao uso de políticas clientelistas dos executivos estaduais
.
A quarta Constituição brasileira de 1946, influenciada pela situação pós-segunda guerra mundial, foi estabelecida também de forma republicana e federativa, aumentando a autonomia política e financeira dos municípios. “Foi mantida a tríplice distribuição do poder político, registrando-se, entretanto, uma valorização do Município, possivelmente como antídoto à supercentralização imposta pelo governo ditatorial que acabava de ser deposto. Quem analisa com grande precisão essa valorização do nível municipal no sistema federativo definido em 1946 é o eminente jurista MIGUEL REALE, que, em trabalho inserido em sua obra Nos Quadrantes do Direito Positivo (Ed. Michalany, São Paulo, sem data, pág. 53), dá grande ênfase à autonomia municipal consagrada na Constituição, assinalando a conjugação de três requisitos indispensáveis à caracterização de uma unidade federativa: a eleição de seus governantes, a previsão constitucional de competências exclusivas, incluindo competência legislativa, e a atribuição de competência tributária própria.” DALLARI (2005: p. 12)
Ainda de acordo com análises de Dallari (2005), neste período
houve certa evolução e aperfeiçoamento da administração
pública brasileira, apesar das dificuldades decorrentes da insuficiência
financeira que comprometia a real autonomia das unidades federadas, que,
mesmo com a inexistência de subordinação jurídica,
continuavam numa situação real de dependência.
“Apesar dessas imperfeições, no regime da Constituição
de 1946 houve grande desenvolvimento das administrações municipais,
surgindo nessa fase muitos consórcios intermunicipais para a realização
de obras e serviços de interesse comum. A par disso, muitos Municípios
participaram de acordos, com governos estaduais e com o governo federal,
para o recebimento de apoio técnico e financeiro para a realização
de empreendimentos de interesse local ou para a complementação
de serviços estaduais e federais, tendo sido criados vários
modelos jurídicos para a formalização desses acordos.
Manteve-se a organização federativa, com suas características
básicas fixadas na Constituição, sobretudo com a preservação
da autonomia política dos Estados-membros e dos Municípios,
mas, ao mesmo tempo, surgiram inovações importantes na organização
administrativa, procurando dar efetividade às prioridades então
fixadas.” (Idem: p. 14)
Com o golpe militar de 1964, houve um novo processo de centralização
do poder central no Brasil, o regime autoritário passou a controlar
os níveis subnacionais de poder, Estados e municípios perdem
toda autonomia política.
“Setores importantes foram entregues a administradores improvisados,
pelo critério único da absoluta subserviência ao comando
militar superior, os instrumentos jurídicos de expressão da
vontade popular foram eliminados e o exagero de sigilo nas decisões
políticas e administrativas, agravado pela censura à imprensa,
favoreceu a corrupção. Por tudo isso, ainda agravado pelo
uso arbitrário dos instrumentos tradicionais de poder e de controle
social, o novo regime praticamente anulou o federalismo, que só ressurgiu
com o fim do período militar e se redefiniu com a aprovação
da Constituição de 1988 por uma Assembléia Constituinte.”
(Idem C. A.: p. 15)
O sistema federativo teve papel preponderante para o fracasso do projeto
centralizador e autoritário. Os militares demonstraram inabilidade
para controlar os níveis subnacionais e eliminar a base da classe
política, assim dá-se a ascensão dos governadores,
de modo que mais tarde exerceriam importante papel na transição
regime ditatorial para a democracia. (ABRUCIO: 1997)
A Constituição de 1988 consagrou o sistema federativo brasileiro
baseado numa forma de organização em que se estabelece um
pacto, reconhecendo a autonomia das esferas territoriais de poder, porém
permitindo formas de cooperação entre os entes autônomos
da federação. A relação intergovernamental é
uma característica comum de todas as federações, apesar
das similaridades e diferenças existentes em cada modelo implantado.
A nova carta reafirmou o poder central da União e com Estados-membros,
Municípios e o Distrito Federal autônomos como entes federativos
identificados em determinado espaço territorial. “Note-se,
entretanto, que esse novo ente federativo tem autonomia, elegendo seu próprio
governo e exercendo poder legislativo limitado ao seu espaço territorial.”
DALLARI (2005: p. 16)
A Constituição significa a soma dos fatores reais do poder
que rege um país. Lassale (1980) estabelece uma distinção
entre duas Constituições presentes numa sociedade: a Constituição
real e efetiva e outra Constituição escrita. Com a transformação
dos fatores reais do poder, transforma-se também a Constituição
vigente no país. Uma Constituição escrita será
boa e duradoura somente quando corresponder à Constituição
real e tiver suas raízes nos fatores reais do poder.
No caso brasileiro, a Constituição de 1988 significou uma
reação ao projeto estatal implantado pelos militares, refletindo
as aspirações de uma sociedade multifacetada. Além
disso, esta carta não mais resistiu às exigências da
globalização, se de algum modo continha aspectos nacionalistas,
estes foram amenizados pela necessidade de redução da capacidade
de intervenção do Estado na economia. Este é um exemplo
de transformação dos fatores reais do poder que, por sua vez,
exige mudanças da carta constitucional.
Embora os conceitos de descentralização e federalismo não
sejam sinônimos, os programas de democratização dos
anos 80 baseiam-se na redução do papel do Estado, através
das políticas de descentralização das instâncias
decisórias e administrativas e, ao mesmo tempo, na construção
de um modelo federativo de organização territorial do poder
político.
Fiori (1995) recupera a hipótese de Vilfredo Pareto de que “a
história das instituições políticas regia-se
por um movimento pendular e recorrente, de forma que os grandes períodos
de centralização do poder seriam irremediavelmente sucedidos
por eras de descentralização política e vice-versa”
. Quase todo século XX caminhou para a centralização
do poder: o período pós-revolução soviética;
a guerra fria após a Segunda Guerra Mundial; os estados do “welfare
states”, os estados socialistas ou ainda os estados desenvolvimentistas,
todos rumaram para forte centralização do poder.
O movimento da globalização econômica do capitalismo,
intensificado a partir dos anos 90, e o forte processo de desregulamentação
afetaram o funcionamento dos estados nacionais e a viabilidade dos sistemas
federativos, principalmente em países como o Brasil de extenso território
e populações heterogêneas. Depois de duas décadas
de globalização constata-se o aumento da concentração
da riqueza, má distribuição do progresso tecnológico
e forte concentração do poder de decisão:
“Independente dos conceitos ou designações, o grande
denominador comum está no reconhecimento de que, hoje, o mundo obedece
a uma hierarquia de poder político, econômico e tecnológico
cujo vértice superior está ocupado por um bloco constituído
por um grupo de três a cinco governos e algumas centenas de empresas
que se constituem, aliás, no que a literatura ideológica chama
de “mercados” responsáveis pela “correta”
alocação dos recursos mundiais. E é a partir desse
oligopólio ou diretório que vem sendo refeita a hierarquização
dos demais países e regiões, segundo o grau de interesse que
elas possam ter para os seus países e as suas firmas constitutivas,
a partir de onde vão estruturando-se as famosas redes interligadas
e “desterritorializadas” da produção e das finanças.”
FIORI (1995: p.29)
Desse ponto de vista, a globalização e interdependência
não são sinônimas de convergência e cooperação,
mas sim de concentração do poder. Observa-se um quadro de
acirrada competição entre governos: a fragmentação
das economias nacionais, onde ocorre uma integração isolada
às redes de produção e comércio globalizadas;
o aumento da guerra fiscal, um processo em cadeia onde se busca transferir
o ônus das ações públicas; aumento das desigualdades
territoriais; além do que, os desequilíbrios macroeconômicos
impedem os governos nacionais de gerirem com eficácia suas funções
sistêmicas. Contudo, todos estes fatores comprometem diretamente a
consolidação de uma institucionalidade federativa, este processo
de descentralização, por sua vez, agrava ainda mais os conflitos
sociais.
Ainda não se encontrou a Constituição que retratasse
a realidade brasileira, haja vista a influência dos vários
períodos de crise do Estado brasileiro. Também, à medida
que o Estado aumenta, percebe-se certo distanciamento entre os que governam
e os que são governados. A legitimidade do poder de representação
só pode se firmar se corresponder às necessidades e aspirações,
materiais e morais, de uma sociedade.
A estrutura federativa no Brasil sofreu grandes mudanças, desde o
processo de redemocratização, o que levou a modificação
da distribuição do poder político no país. Ou
seja, após o colapso do modelo centralizador e autoritário
erigido no regime militar. Porém, a nova Constituição
de 1988 baseou-se numa concepção de descentralização
do poder central do Estado, conferindo novas atribuições e
maior autonomia dos poderes locais . Vários autores analisaram a
descentralização política do estado brasileiro a partir
deste período, apontando essencialmente que, apesar dos seus aspectos
democráticos, contrários ao modelo centralizador e autoritário
do regime anterior, o novo federalismo brasileiro trouxe aos governos sub-nacionais
os encargos para os quais estados e municípios não tinham
como arcar, ao mesmo tempo induziu à competição e à
guerra fiscal predatória. Logo se tornaram evidentes as fragilidades
administrativas dos mesmos de tal forma que continuavam dependentes de recursos
estaduais e federais.
Abrucio (2001) afirma que a descentralização se reduziu à
municipalização, pois a Constituição de 1988
conferiu a cada ente federativo um rol de políticas públicas,
algo incomum na experiência internacional. O autor destacou três
obstáculos a este projeto:
“a) a grande maioria dos municípios brasileiros não
tem como se auto-sustentar, mesmo recebendo repasse de recursos dos demais
níveis de governo. A desigualdade do país e a heterogeneidade
de situações no plano local inviabilizam o modelo do municipalismo
autárquico. (...)
b) há um desnível muito grande entre os governos locais também
na configuração administrativa e política. Muitos não
têm ainda a capacidade e os quadros técnicos para, sozinhos
resolverem os seus problemas de ação coletiva e produção
de políticas públicas. Além disso, a democratização
local não foi uniforme nem acabou com todos os vícios patrimoniais
de nosso sistema político. (...)
c) os instrumentos de parceria e cooperação no plano subnacional
são reduzidos ou, quando existentes, frágeis institucionalmente.
A ótica neocolonialista prevalecente nos últimos anos teme
a criação de instâncias supramunicipais. Por esta razão,
figuras como as regiões metropolitanas e os consórcios têm
tido pouca efetividade.” ABRUCIO (2001: p.102)
Portanto, a partir dos anos 80, emergiu no Brasil um modelo de federalismo
completamente descentralizado, tendo o município como ente federado,
definindo-se um grande número de competências conjuntas dos
três níveis de poder. Kugelmas (2001) analisa que após
a crise política e econômica, acima de tudo de fragilidade
do poder central, que resultou no afastamento do presidente Collor em 1992,
constitui-se no país uma situação política que
levou o governo brasileiro à implantação do Plano Real,
visando credibilidade fiscal ao plano de estabilização, iniciando-se
um período de reversão da trajetória descentralizadora
. Assim, propunha-se uma reforma profunda do Estado e a inserção
do país na ordem econômica internacional.
Ao mesmo tempo em que se insistiam nas medidas de controle da inflação,
aumentavam os conflitos decorrentes da ampliação das dívidas
dos Estados com a União, mas nem por isso a superação
destes impasses significou o fortalecimento do pacto federativo. Somado
a isto, o autor cita também a ausência de um sistema partidário
forte como mais um aspecto da fragmentação e descentralização
de poder.
O processo histórico de formação do sistema federativo
brasileiro está diretamente vinculado ao tipo de relações
intergovernamentais existentes.
Nos anos 80 ocorre um desmonte gradual do sistema da Região metropolitana,
o esvaziamento desta estrutura de governança metropolitana foi acelerado
pela retração do governo federal no tratamento das questões
metropolitanas, com redução da atenção política
e recursos financeiros.
Gouvêa (2003) cita alguns dos principais fatores que dificultam ações
efetivas de articulação dos municípios das regiões
metropolitanas brasileiras, tais como: a resistência dos grandes municípios
em “ceder parte de sua autonomia em favor de uma instância superior”;
resistências por parte de governos estaduais de que “o surgimento
de um organismo metropolitano, atuando no campo de uma determinada política
estratégica, poderia se sobrepor a alguma instituição
estadual já existente”; ausência de pressão da
sociedade, preocupada com seu cotidiano imediato, pelo fato de que as intervenções
metropolitanas são de difícil percepção dado
seu caráter infra-estrutural; “inadequação dos
recursos financeiros aos objetivos metropolitanos”, sobretudo por
parte da União.
No caso da Região Metropolitana de São Paulo, o sistema de
organização se mostrou ineficaz para articular os municípios
em torno de um planejamento de desenvolvimento metropolitano no sentido
de procurar solucionar os graves problemas. Ao mesmo tempo, o governo federal
nas últimas décadas, conforme já analisado, reduziu
os recursos financeiros agravando ainda mais a realidade dos municípios,
agravando a situação das regiões metropolitanas.
De acordo com Fiori (1995) “as condições de desintegração
em que se encontram a maioria desses Estados periféricos, abalados
pelas suas crises fiscais e políticas e, às vezes, pelo ataque
ideológico e político de um liberalismo extremamente irracional,
podem estar indicando que o caminho de sua reconstrução passará
pelos poderes locais. Porém, nesse caso, ao contrário do que
se imaginou, essa tarefa já não se daria na forma de um programa
de descentralização, mas da reconstrução, a
partir de baixo, dos corpos políticos e identidades cidadãs
e da própria institucionalidade de um novo Estado. Nesse caminho,
os grandes municípios ou metrópoles deverão ocupar,
muito provavelmente, um lugar proeminente de decisivo para as demais unidades
federadas.”
No contexto das mudanças do sistema federativo no Brasil, o forte
movimento de relações de competição entre esferas
de governo pode, ao mesmo tempo, resultar em experiências localizadas
de cooperação, ou seja, a competição paradoxalmente
estimula a inovação. Na esfera da política local, a
articulação entre governos municipais possibilitou outras
formas de organização, modernos laboratórios de políticas
públicas. Diante dos efeitos negativos do processo de descentralização,
os municípios buscam mecanismos de fortalecimento do poder local
a partir de ações políticas regionalizadas.
Um destes exemplos é a prática do consorciamento entre municípios,
formados por dois ou mais entes da federação, para a realização
de objetivos de interesse comum, em qualquer área. A partir da Constituição
de 1988, os municípios assumiram maiores competências em relação
às políticas sociais descentralizadas, com isso, muitos consórcios
públicos se formaram para melhor prestar os serviços da saúde,
promover o desenvolvimento regional, gerir o tratamento de lixo, água
e esgoto da região ou construir novos hospitais ou escolas.
Várias experiências de consórcios públicos tiveram
início embora tendo sido considerados meros pactos de cooperação,
de natureza precária e sem personalidade jurídica, assim como
os convênios. A principal atribuição dos Consórcios
é a gestão pública compartilhada visando a solução
de problemas comuns. Através das relações de parceria
entre entes federativos é possível a ampliação
da capacidade técnica, gerencial e financeira melhorando, deste modo,
a prestação de serviços públicos.
Sabe-se que a partir da década de 80, as transformações
ocorridas no cenário político e econômico internacional,
associadas às mudanças do processo produtivo, exerceram um
impacto negativo principalmente para a economia das regiões mais
industrializadas do país. Além disso, o processo de descentralização
política acentuou ainda mais os problemas de organização
dos estados e municípios brasileiros. Neste contexto, vislumbrou-se
uma tendência à formação de novos arranjos institucionais
de integração horizontal que, particularmente no caso do GABC
, envolveu também a atuação do poder público
e demais setores da sociedade civil.
Nos últimos anos, o governo federal procurou desenvolver um trabalho
de fortalecimento do pacto federativo incluindo o reconhecimento das instituições
de caráter regional, considerando-os importantes arranjos institucionais
capazes de desenvolver projetos de abrangência territorial. Passou
a estabelecer convênios com consórcios intermunicipais objetivando,
sobretudo, a execução de programas nacionais principalmente
de inclusão social.
Em março de 2003 os prefeitos do GABC entregaram ao Presidente da
República um documento intitulado “Carta do Grande ABC”
contendo oito pontos de reivindicação: 1. Construção
do sistema de coletor para afastamento dos efluentes hídricos das
áreas de mananciais da Bacia Billings; 2. Trecho Sul do Rodoanel:
participação no cronograma de execução; 3. Viabilização
da implantação do Ferroanel; 4. Ampliação da
produção do Pólo Petroquímico: fornecimento
de matérias-primas; 5. Implantação do Posto Avançado
do BNDES na região; 6. Implantação da Universidade
Federal do ABC; 7. Criação de um sistema regional de Segurança
Pública; 8. Reconhecimento institucional das entidades regionais;
sendo que cinco, destes oito itens, foram atendidos.
A partir dos anos 90, irão se constituir dois mecanismos de cooperação regional no GABC : o Consórcio Intermunicipal, de caráter formal e estritamente público; a Câmara Regional, de caráter informal envolvendo a participação da sociedade civil e a Agência de Desenvolvimento Econômico, organização não governamental mista, ou seja, envolvendo representantes do setor público e do segmento empresarial.
A experiência de regionalidade do GABC se desenvolveu em condições
bastante específicas, se realizou no contexto de relações
sociais previamente estabelecidas fruto da capacidade de organização
da sociedade civil e da prática compartilhada de novas relações
de cooperação na esfera do poder público.
É preciso considerar que o Prefeito de Santo André, Celso
Daniel, juntamente com outros atores políticos, exerceu importante
papel nesse processo, pois foi capaz de antecipar os acontecimentos e prognosticar
que a união das forças políticas era o caminho mais
viável para tentar impedir ou minimizar a desaceleração
da economia regional. Assim, procurou envolver todos os sete prefeitos da
região e os diversos representantes da sociedade civil, comprometidos
com a idéia de construção de um novo projeto de recuperação
do desenvolvimento regional.
As condições sócio-econômicas desfavoráveis
favoreceram a elaboração de um projeto político regional
em torno de propostas e objetivos comuns, em certa medida, acima das divergências
político-partidárias e dos diferentes interesses e tensões
existentes entre as esferas do poder público, privado e da sociedade
civil. Deste modo, teve início no GABC a constituição
de arranjos institucionais como o Consórcio Intermunicipal, Câmara
Regional e Agência de Desenvolvimento Econômico, de modo que
as experiências bem sucedidas do poder público local puderam
evoluir para além dos limites da esfera municipal. O diagnóstico
sobre as conseqüências das transformações macro-econômicas
sobre a economia local indicava, portanto, a necessidade de encontrar alternativas
para a crise social decorrente, sobretudo, da evasão industrial e
da diminuição dos postos de trabalho.
A ação política exigiu o princípio da racionalidade
para alcançar um determinado projeto político, utilizando-se
dos instrumentos de um planejamento regional estratégico. A percepção
de uma situação de conflitos, tensões, instabilidades
e de mudanças, permitiu o desdobramento da própria política
e a transição para um período de grandes transformações
e inovações presentes nas relações políticas
institucionais na região.
Em 1990, foi criado o primeiro arranjo institucional de caráter regional,
o Consórcio Intermunicipal GABC. Diferentemente da maioria dos consórcios,
originou-se em meio a concepções mais amplas de integração
regional. Desde os primeiros anos, o Consórcio atuou como órgão
articulador de políticas públicas integradas e multisetoriais,
mediante atuação de grupos temáticos formados por técnicos
das sete prefeituras, utilizando-se de recursos próprios das municipalidades
como também de outras fontes de financiamento. Após quase
quinze anos verifica-se que a existência deste instrumento institucional
foi determinante para a atuação conjunta dos sete prefeitos,
permitindo o desenvolvimento de uma política regional como forma
mais eficiente para a solução dos principais problemas regionais,
contrariamente à atuação individual dos municípios.
Neste sentido, houve a possibilidade uma política integrada entre
os sete municípios na condução de temas que mereciam
tratamento regionalizado através da implantação de
importantes projetos e programas sociais.
Além disso, a partir atuação consorciada entre municípios,
foi possível uma maior abertura do poder público no sentido
de dialogar e estabelecer relações e acordos com diversos
setores da comunidade local. O Consórcio Intermunicipal constituiu-se
a base institucional fundamental para a formação de outros
importantes mecanismos democráticos, envolvendo maior diálogo
com a sociedade civil.
Em 1997 constituiu-se também na região a Câmara do Grande
ABC , um amplo fórum de debates e acordos regionais, formado pela
associação entre o poder público (governos locais,
governo estadual, governo federal e poder legislativo) e a sociedade civil
organizada (Empresários, Sindicatos de Trabalhadores e Organizações
Não Governamentais). Outras experiências envolvendo relações
de cooperação precederam e inspiraram o surgimento da Câmara
Regional com este formato destacando-se a experiência da câmara
setorial do complexo automotivo no início dos anos 90, que teve a
participação direta do Sindicato dos Metalúrgicos do
ABC; e também a experiência do Fórum da Cidadania do
GABC, criado em março de 1995.
Além da participação do governo estadual no conselho
deliberativo da Câmara Regional, esta é a primeira experiência
em que se verifica a participação de uma bancada suprapartidária
de deputados federais e estaduais, buscando aprovação de propostas
e projetos inseridos no planejamento regional estratégico.
O impacto das transformações econômicas e sociais (globalização)
indicava a necessidade de desenvolvimento de uma política regional,
ou seja, agir na esfera local através de um planejamento estratégico
de cenário futuro desejado. A união entre o setor público
e a sociedade civil, incluindo o setor privado, foi fundamental para se
criar condições ideais de governabilidade em torno de um projeto
comum. Sob o princípio da pluralidade, da cooperação,
da unidade em meio à diversidade, da colaboração e
da parceria, foram envolvidos expressivos e representativos setores da sociedade,
comprometidos com o desenvolvimento regional. Dessa forma foi possível
compreender as mudanças, mapear as demandas e contemplar os diversos
interesses num planejamento regional estratégico, pensar as cidades
a partir de um outro “cenário futuro desejado”.
Em 1997, também foi constituída a Agência de Desenvolvimento
Econômico do Grande ABC como resultado de um dos primeiros acordos
da Câmara Regional. Surgiu com a ampliação das discussões
temáticas, sobretudo, a partir do intenso debate a respeito do processo
de reestruturação produtiva que vinha afetando bruscamente
a economia regional. O principal objetivo desta instituição
foi impulsionar os trabalhos da Câmara Regional, oferecendo suporte
técnico para o processo de modernização e fomento empresarial
da região, principalmente das micro e pequenas empresas, como uma
das formas de promoção do desenvolvimento sustentado.
No entanto, a partir de 2001, três principais fatores contribuíram
para o refluxo e enfraquecimento da ação regional. O primeiro
deles, a morte do governador do estado de São Paulo Mário
Covas, que até então havia desempenhado relevante papel para
a formação e concretização de importantes acordos
regionais; e, em seguida, fatalmente a morte do Prefeito Celso Daniel, em
2002. A ausência dessas lideranças deixou marcas profundas
e comprometeu o dinamismo da regionalidade do GABC. Os melhores períodos
contaram com a participação destes importantes atores que
demonstraram boa capacidade de articulação política
dos vários grupos de diversos interesses unidos em torno de um único
projeto. O segundo aspecto diz respeito às fragilidades institucionais
provenientes da falta de uma regulamentação jurídica
do Consórcio e da dificuldade de fazer com que houvesse o cumprimento
dos acordos da Câmara Regional por parte do governo estadual. O terceiro
aspecto se refere ao fato de que em alguns momentos a conjuntura favoreceu
a desmobilização ou a redução da participação
de importantes segmentos da sociedade civil.
A partir de agosto de 2003, o governo federal iniciou vários debates
sobre a formação e funcionamento dos consórcios públicos,
sob a coordenação da Secretaria de Coordenação
Política e Assuntos Institucionais e participação dos
ministérios da Casa Civil, Integração Nacional, Cidades,
Saúde e da Fazenda. Estas discussões resultaram na finalização
de uma proposta de regulamentação do artigo 241 da Constituição
que trata de proporcionar maior segurança jurídica e administrativa
às parcerias entre os entes consorciados. Baseado neste dispositivo,
em julho de 2004, o Presidente da República encaminhou ao Poder Legislativo
o projeto de lei sobre as normas gerais de contratação de
consórcios públicos, tendo sido aprovado e publicado decreto
regulamentar, nº 6.017, em janeiro de 2007. Pretende-se maior consistência
e operacionalidade aos consórcios, fortalecer estes arranjos intermunicipais,
como os consórcios públicos, como uma das principais medidas
com vistas às condições ideais para o estabelecimento
de um novo pacto federativo.
Indiscutivelmente não há como considerar o papel e funcionamento
dos consórcios públicos fora do contexto da articulação
política metropolitana, pois estas ações poderão
interferir na gestão metropolitana dos Estados. No que diz respeito
à nova lei dos consórcios públicos, do ponto de vista
jurídico, Dallari (2005) afirma que a participação
em consórcios de municípios integrantes da região metropolitana
não viola os artigos 25, § 3º, e 43 da Constituição
Federal que orienta a instituição de Regiões Metropolitanas
pelos Estados, responde que tais artigos possuem “caráter genérico,
objetivando a organização e o planejamento integrados, para
execução de funções públicas de interesse
comum, de Municípios limítrofes situados no mesmo Estado.
É apenas medida de racionalização administrativa, que
não implica a gestão associada de serviços públicos
nem autoriza a transferência de encargos, serviços, pessoal
e bens. Assim, pois, a criação de Regiões Metropolitanas
não será afetada, de qualquer modo, pela instituição
dos consórcios públicos, não havendo e nem se estabelecendo
com a aprovação do Projeto impedimento algum para que o mesmo
Município integre Região Metropolitana e participe de consórcio
público.” (Idem N.A.p.34) O autor afirma também que
não há “incompatibilidade entre a inclusão de
um Município numa região em desenvolvimento e sua participação
num consórcio público. São esferas jurídicas
diferentes, subordinadas a objetivos e regras diferentes, sem que uma interfira
na outra. Não há, portanto, na participação
em consórcios públicos, por parte de Municípios integrantes
de regiões metropolitanas ou de regiões em desenvolvimento,
nenhuma violação dos artigos 25, §3°, e 43 da Constituição,
sendo juridicamente compatível essa dupla participação.”
(Idem N.A.p.34,35)
No entanto experiências de articulação intermunicipal,
como do GABC, demonstram que somente a regulamentação jurídica
dos consórcios não será suficiente para se alcançar
a esperada eficiência na gestão pública e o desenvolvimento
das regiões. A concretização dos principais projetos
regionais do GABC se deu, sobretudo, como resultado da vontade política
dos representantes do poder público em relações formais
e informais de parceria com a sociedade civil. Neste caso, se constituíram
dois mecanismos de cooperação regional no GABC: o Consórcio
Intermunicipal, de caráter formal e estritamente público;
a Câmara Regional, de caráter informal envolvendo a participação
da sociedade civil e a Agência de Desenvolvimento Econômico,
organização não governamental mista, ou seja, envolvendo
representantes do setor público e do segmento empresarial.
Os dados indicam que a capacidade de articulação de todos
expressivos setores da sociedade precedeu a criação dos aparatos
institucionais, como o consórcio, câmara regional e agência
de desenvolvimento econômico. E, neste caso, o poder local, a condução
da administração pública quando transcende os limites
da esfera municipal para o nível regional, adquire um dinamismo raramente
observável em setores da administração pública.
Com isso, percebe-se que o princípio de regionalidade continua presente,
pois certos mecanismos e atividades se consolidaram e fazem parte da prática
cotidiana e das ações coletivas das municipalidades, e poderá
adquirir ainda novas dimensões.
No contexto do processo recente de redemocratização política
no país, a nova Constituição de 1988 previu a formação
dos consórcios intermunicipais, lançando uma semente para
que na região do GABC tivesse início um novo modelo de gestão
de abrangência territorial regional. Embora embrionário, ou
seja, em fase de desenvolvimento essa experiência de articulação
política regional, apresenta significativos resultados para o desenvolvimento
da região. Apesar de grandes fragilidades, a experiência é
inovadora exatamente porque apresenta importantes aspectos principalmente
fora do nível institucional, ou seja, decorrente de novas e democráticas
formas de relações políticas. Além disso, traz
importantes contribuições para as discussões sobre
reformulação do pacto federativo proposto na década
de 80.
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