Youtube Twitter Facebook
Artigos
Página Inicial | Artigos | Federalismo e novas Experiências de Integração Regional

Federalismo e novas Experiências de Integração Regional

Regina Célia dos Reis

 

Resumo:

Este texto é parte do estudo realizado sobre a articulação política regional desenvolvida na região do Grande ABC Paulista. Os dados indicam o surgimento de uma nova dimensão da política no plano da integração regional, cujos resultados confirmam a hipótese de que esta experiência pode ser considerada como a expressão regional para se pensar a reformulação do pacto federativo brasileiro proposto na década de 80.

 

INTRODUÇÃO

A Constituição brasileira de 1891 marcou o início do sistema federativo brasileiro. De concepção republicana e federativa, influenciada pela Constituição dos Estados Unidos da América, o texto incluiu o município autônomo como princípios fundamentais da organização política do Brasil.


Neste período, surge a proposta de federalismo cooperativo de modo que os consórcios intermunicipais foram previstos e considerados na forma de contratos que, se celebrados entre Municípios, precisavam da aprovação do Estado e, se celebrados entre Estados, precisavam da aprovação da União.


Abrucio (1998) ao estudar os dilemas da centralização versus descentralização do poder na formação do Estado nacional brasileiro, conclui que, apesar da influência do modelo americano muito presente nas idéias de seu idealizador Rui Barbosa, o federalismo brasileiro assumiu características bem distintas. No caso da experiência americana, antes mesmo do surgimento da União, havia autonomia das unidades territoriais, já o federalismo brasileiro nasceu em prol da descentralização em função do descontentamento que havia em relação ao centralismo imperial.


O autor afirma que durante o período da Primeira República, no modelo de Campos Sales, caracterizado como a “política dos governadores”, os governadores tinham papel predominante dentro do sistema político, legitimados pelas eleições presidenciais que passava por um acordo entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais. Apesar de deter o poder moderador, o presidente não conseguia intervir nos estados mais importantes da Federação. Além disso, o poder da república se concentrava também nos partidos estaduais, ao contrário da forte presença dos partidos nacionais durante o Império.


Contudo, o fim da Primeira República se deu em meio ao discurso nacionalista de crítica ao modelo oligárquico, embora o federalismo brasileiro não tenha conseguido estabelecer uma relação de interdependência entre a União e os estados.

“Havia um desequilíbrio federativo acentuado que contrapunha, de um lado, dois estados muito fortes – Minas Gerais e especialmente São Paulo – contra uma União frágil frente a eles, e de outro, mais de uma dezena de unidades estaduais que mal podiam sobreviver pelas “próprias pernas”, necessitando de auxílio do Tesouro federal – o que na prática significava se filiar automaticamente ao bloco do “café com leite”. Sem real autonomia para todos os estados, torna-se difícil implementar um verdadeiro federalismo”. ABRUCIO 1998: p. 40)

O chamado Estado Varguista-desenvolvimentista, do período de 30 a 45, de cunho centralizador, procurou acomodar os interesses do poder central e os objetivos das unidades estaduais. Após o golpe de novembro de 1937, o Estado Novo redefiniu o padrão de relações intergovernamentais através de um processo de modernização administrativa , instituiu-se a prática do intervencionismo para garantir o controle do poder central sobre os estados.

“A engrenagem das relações “federativas” do Estado Novo estava completa: as interventorias, os “Daspinhos” e o Ministério da Justiça coordenavam a administração estadual, sob o controle geral do presidente da República (Campello de Souza, op.cit.:19), e a representação dos interesses econômicos seria feita pela via burocrático-corporativa. Em nome da modernização econômico-administrativa, os estados ficaram com menos autonomia do que as províncias do Império. Pensando no ideal de federalismo republicano, pode-se dizer que na Primeira República o federalismo tinha se dissociado da república, no Estado Novo o próprio federalismo tinha desaparecido.” (Idem C. A.. 47)

Abrucio (1998) destaca que, no período seguinte de 45 a 64, a Federação se tornou multipolarizada, ou seja, “as relações federativas se tornaram mais equilibradas, pois União e estados se tornaram mais eqüi-potentes. Os estados recuperaram sua autonomia e a União, mediante o arranjo Varguista, aumentou seu raio de ação” (Idem: p. 50). Porém, houve o fortalecimento do poder dos governadores devido ao uso de políticas clientelistas dos executivos estaduais .

 

A quarta Constituição brasileira de 1946, influenciada pela situação pós-segunda guerra mundial, foi estabelecida também de forma republicana e federativa, aumentando a autonomia política e financeira dos municípios. “Foi mantida a tríplice distribuição do poder político, registrando-se, entretanto, uma valorização do Município, possivelmente como antídoto à supercentralização imposta pelo governo ditatorial que acabava de ser deposto. Quem analisa com grande precisão essa valorização do nível municipal no sistema federativo definido em 1946 é o eminente jurista MIGUEL REALE, que, em trabalho inserido em sua obra Nos Quadrantes do Direito Positivo (Ed. Michalany, São Paulo, sem data, pág. 53), dá grande ênfase à autonomia municipal consagrada na Constituição, assinalando a conjugação de três requisitos indispensáveis à caracterização de uma unidade federativa: a eleição de seus governantes, a previsão constitucional de competências exclusivas, incluindo competência legislativa, e a atribuição de competência tributária própria.” DALLARI (2005: p. 12)


Ainda de acordo com análises de Dallari (2005), neste período houve certa evolução e aperfeiçoamento da administração pública brasileira, apesar das dificuldades decorrentes da insuficiência financeira que comprometia a real autonomia das unidades federadas, que, mesmo com a inexistência de subordinação jurídica, continuavam numa situação real de dependência.

“Apesar dessas imperfeições, no regime da Constituição de 1946 houve grande desenvolvimento das administrações municipais, surgindo nessa fase muitos consórcios intermunicipais para a realização de obras e serviços de interesse comum. A par disso, muitos Municípios participaram de acordos, com governos estaduais e com o governo federal, para o recebimento de apoio técnico e financeiro para a realização de empreendimentos de interesse local ou para a complementação de serviços estaduais e federais, tendo sido criados vários modelos jurídicos para a formalização desses acordos. Manteve-se a organização federativa, com suas características básicas fixadas na Constituição, sobretudo com a preservação da autonomia política dos Estados-membros e dos Municípios, mas, ao mesmo tempo, surgiram inovações importantes na organização administrativa, procurando dar efetividade às prioridades então fixadas.” (Idem: p. 14)

Com o golpe militar de 1964, houve um novo processo de centralização do poder central no Brasil, o regime autoritário passou a controlar os níveis subnacionais de poder, Estados e municípios perdem toda autonomia política.

“Setores importantes foram entregues a administradores improvisados, pelo critério único da absoluta subserviência ao comando militar superior, os instrumentos jurídicos de expressão da vontade popular foram eliminados e o exagero de sigilo nas decisões políticas e administrativas, agravado pela censura à imprensa, favoreceu a corrupção. Por tudo isso, ainda agravado pelo uso arbitrário dos instrumentos tradicionais de poder e de controle social, o novo regime praticamente anulou o federalismo, que só ressurgiu com o fim do período militar e se redefiniu com a aprovação da Constituição de 1988 por uma Assembléia Constituinte.” (Idem C. A.: p. 15)


O sistema federativo teve papel preponderante para o fracasso do projeto centralizador e autoritário. Os militares demonstraram inabilidade para controlar os níveis subnacionais e eliminar a base da classe política, assim dá-se a ascensão dos governadores, de modo que mais tarde exerceriam importante papel na transição regime ditatorial para a democracia. (ABRUCIO: 1997)


A Constituição de 1988 consagrou o sistema federativo brasileiro baseado numa forma de organização em que se estabelece um pacto, reconhecendo a autonomia das esferas territoriais de poder, porém permitindo formas de cooperação entre os entes autônomos da federação. A relação intergovernamental é uma característica comum de todas as federações, apesar das similaridades e diferenças existentes em cada modelo implantado. A nova carta reafirmou o poder central da União e com Estados-membros, Municípios e o Distrito Federal autônomos como entes federativos identificados em determinado espaço territorial. “Note-se, entretanto, que esse novo ente federativo tem autonomia, elegendo seu próprio governo e exercendo poder legislativo limitado ao seu espaço territorial.” DALLARI (2005: p. 16)


A Constituição significa a soma dos fatores reais do poder que rege um país. Lassale (1980) estabelece uma distinção entre duas Constituições presentes numa sociedade: a Constituição real e efetiva e outra Constituição escrita. Com a transformação dos fatores reais do poder, transforma-se também a Constituição vigente no país. Uma Constituição escrita será boa e duradoura somente quando corresponder à Constituição real e tiver suas raízes nos fatores reais do poder.
No caso brasileiro, a Constituição de 1988 significou uma reação ao projeto estatal implantado pelos militares, refletindo as aspirações de uma sociedade multifacetada. Além disso, esta carta não mais resistiu às exigências da globalização, se de algum modo continha aspectos nacionalistas, estes foram amenizados pela necessidade de redução da capacidade de intervenção do Estado na economia. Este é um exemplo de transformação dos fatores reais do poder que, por sua vez, exige mudanças da carta constitucional.


Embora os conceitos de descentralização e federalismo não sejam sinônimos, os programas de democratização dos anos 80 baseiam-se na redução do papel do Estado, através das políticas de descentralização das instâncias decisórias e administrativas e, ao mesmo tempo, na construção de um modelo federativo de organização territorial do poder político.


Fiori (1995) recupera a hipótese de Vilfredo Pareto de que “a história das instituições políticas regia-se por um movimento pendular e recorrente, de forma que os grandes períodos de centralização do poder seriam irremediavelmente sucedidos por eras de descentralização política e vice-versa” . Quase todo século XX caminhou para a centralização do poder: o período pós-revolução soviética; a guerra fria após a Segunda Guerra Mundial; os estados do “welfare states”, os estados socialistas ou ainda os estados desenvolvimentistas, todos rumaram para forte centralização do poder.
O movimento da globalização econômica do capitalismo, intensificado a partir dos anos 90, e o forte processo de desregulamentação afetaram o funcionamento dos estados nacionais e a viabilidade dos sistemas federativos, principalmente em países como o Brasil de extenso território e populações heterogêneas. Depois de duas décadas de globalização constata-se o aumento da concentração da riqueza, má distribuição do progresso tecnológico e forte concentração do poder de decisão:

“Independente dos conceitos ou designações, o grande denominador comum está no reconhecimento de que, hoje, o mundo obedece a uma hierarquia de poder político, econômico e tecnológico cujo vértice superior está ocupado por um bloco constituído por um grupo de três a cinco governos e algumas centenas de empresas que se constituem, aliás, no que a literatura ideológica chama de “mercados” responsáveis pela “correta” alocação dos recursos mundiais. E é a partir desse oligopólio ou diretório que vem sendo refeita a hierarquização dos demais países e regiões, segundo o grau de interesse que elas possam ter para os seus países e as suas firmas constitutivas, a partir de onde vão estruturando-se as famosas redes interligadas e “desterritorializadas” da produção e das finanças.” FIORI (1995: p.29)

Desse ponto de vista, a globalização e interdependência não são sinônimas de convergência e cooperação, mas sim de concentração do poder. Observa-se um quadro de acirrada competição entre governos: a fragmentação das economias nacionais, onde ocorre uma integração isolada às redes de produção e comércio globalizadas; o aumento da guerra fiscal, um processo em cadeia onde se busca transferir o ônus das ações públicas; aumento das desigualdades territoriais; além do que, os desequilíbrios macroeconômicos impedem os governos nacionais de gerirem com eficácia suas funções sistêmicas. Contudo, todos estes fatores comprometem diretamente a consolidação de uma institucionalidade federativa, este processo de descentralização, por sua vez, agrava ainda mais os conflitos sociais.


Ainda não se encontrou a Constituição que retratasse a realidade brasileira, haja vista a influência dos vários períodos de crise do Estado brasileiro. Também, à medida que o Estado aumenta, percebe-se certo distanciamento entre os que governam e os que são governados. A legitimidade do poder de representação só pode se firmar se corresponder às necessidades e aspirações, materiais e morais, de uma sociedade.


A estrutura federativa no Brasil sofreu grandes mudanças, desde o processo de redemocratização, o que levou a modificação da distribuição do poder político no país. Ou seja, após o colapso do modelo centralizador e autoritário erigido no regime militar. Porém, a nova Constituição de 1988 baseou-se numa concepção de descentralização do poder central do Estado, conferindo novas atribuições e maior autonomia dos poderes locais . Vários autores analisaram a descentralização política do estado brasileiro a partir deste período, apontando essencialmente que, apesar dos seus aspectos democráticos, contrários ao modelo centralizador e autoritário do regime anterior, o novo federalismo brasileiro trouxe aos governos sub-nacionais os encargos para os quais estados e municípios não tinham como arcar, ao mesmo tempo induziu à competição e à guerra fiscal predatória. Logo se tornaram evidentes as fragilidades administrativas dos mesmos de tal forma que continuavam dependentes de recursos estaduais e federais.


Abrucio (2001) afirma que a descentralização se reduziu à municipalização, pois a Constituição de 1988 conferiu a cada ente federativo um rol de políticas públicas, algo incomum na experiência internacional. O autor destacou três obstáculos a este projeto:

“a) a grande maioria dos municípios brasileiros não tem como se auto-sustentar, mesmo recebendo repasse de recursos dos demais níveis de governo. A desigualdade do país e a heterogeneidade de situações no plano local inviabilizam o modelo do municipalismo autárquico. (...)

b) há um desnível muito grande entre os governos locais também na configuração administrativa e política. Muitos não têm ainda a capacidade e os quadros técnicos para, sozinhos resolverem os seus problemas de ação coletiva e produção de políticas públicas. Além disso, a democratização local não foi uniforme nem acabou com todos os vícios patrimoniais de nosso sistema político. (...)

c) os instrumentos de parceria e cooperação no plano subnacional são reduzidos ou, quando existentes, frágeis institucionalmente. A ótica neocolonialista prevalecente nos últimos anos teme a criação de instâncias supramunicipais. Por esta razão, figuras como as regiões metropolitanas e os consórcios têm tido pouca efetividade.” ABRUCIO (2001: p.102)


Portanto, a partir dos anos 80, emergiu no Brasil um modelo de federalismo completamente descentralizado, tendo o município como ente federado, definindo-se um grande número de competências conjuntas dos três níveis de poder. Kugelmas (2001) analisa que após a crise política e econômica, acima de tudo de fragilidade do poder central, que resultou no afastamento do presidente Collor em 1992, constitui-se no país uma situação política que levou o governo brasileiro à implantação do Plano Real, visando credibilidade fiscal ao plano de estabilização, iniciando-se um período de reversão da trajetória descentralizadora . Assim, propunha-se uma reforma profunda do Estado e a inserção do país na ordem econômica internacional.


Ao mesmo tempo em que se insistiam nas medidas de controle da inflação, aumentavam os conflitos decorrentes da ampliação das dívidas dos Estados com a União, mas nem por isso a superação destes impasses significou o fortalecimento do pacto federativo. Somado a isto, o autor cita também a ausência de um sistema partidário forte como mais um aspecto da fragmentação e descentralização de poder.


O processo histórico de formação do sistema federativo brasileiro está diretamente vinculado ao tipo de relações intergovernamentais existentes.
Nos anos 80 ocorre um desmonte gradual do sistema da Região metropolitana, o esvaziamento desta estrutura de governança metropolitana foi acelerado pela retração do governo federal no tratamento das questões metropolitanas, com redução da atenção política e recursos financeiros.


Gouvêa (2003) cita alguns dos principais fatores que dificultam ações efetivas de articulação dos municípios das regiões metropolitanas brasileiras, tais como: a resistência dos grandes municípios em “ceder parte de sua autonomia em favor de uma instância superior”; resistências por parte de governos estaduais de que “o surgimento de um organismo metropolitano, atuando no campo de uma determinada política estratégica, poderia se sobrepor a alguma instituição estadual já existente”; ausência de pressão da sociedade, preocupada com seu cotidiano imediato, pelo fato de que as intervenções metropolitanas são de difícil percepção dado seu caráter infra-estrutural; “inadequação dos recursos financeiros aos objetivos metropolitanos”, sobretudo por parte da União.


No caso da Região Metropolitana de São Paulo, o sistema de organização se mostrou ineficaz para articular os municípios em torno de um planejamento de desenvolvimento metropolitano no sentido de procurar solucionar os graves problemas. Ao mesmo tempo, o governo federal nas últimas décadas, conforme já analisado, reduziu os recursos financeiros agravando ainda mais a realidade dos municípios, agravando a situação das regiões metropolitanas.


De acordo com Fiori (1995) “as condições de desintegração em que se encontram a maioria desses Estados periféricos, abalados pelas suas crises fiscais e políticas e, às vezes, pelo ataque ideológico e político de um liberalismo extremamente irracional, podem estar indicando que o caminho de sua reconstrução passará pelos poderes locais. Porém, nesse caso, ao contrário do que se imaginou, essa tarefa já não se daria na forma de um programa de descentralização, mas da reconstrução, a partir de baixo, dos corpos políticos e identidades cidadãs e da própria institucionalidade de um novo Estado. Nesse caminho, os grandes municípios ou metrópoles deverão ocupar, muito provavelmente, um lugar proeminente de decisivo para as demais unidades federadas.”


No contexto das mudanças do sistema federativo no Brasil, o forte movimento de relações de competição entre esferas de governo pode, ao mesmo tempo, resultar em experiências localizadas de cooperação, ou seja, a competição paradoxalmente estimula a inovação. Na esfera da política local, a articulação entre governos municipais possibilitou outras formas de organização, modernos laboratórios de políticas públicas. Diante dos efeitos negativos do processo de descentralização, os municípios buscam mecanismos de fortalecimento do poder local a partir de ações políticas regionalizadas.


Um destes exemplos é a prática do consorciamento entre municípios, formados por dois ou mais entes da federação, para a realização de objetivos de interesse comum, em qualquer área. A partir da Constituição de 1988, os municípios assumiram maiores competências em relação às políticas sociais descentralizadas, com isso, muitos consórcios públicos se formaram para melhor prestar os serviços da saúde, promover o desenvolvimento regional, gerir o tratamento de lixo, água e esgoto da região ou construir novos hospitais ou escolas.


Várias experiências de consórcios públicos tiveram início embora tendo sido considerados meros pactos de cooperação, de natureza precária e sem personalidade jurídica, assim como os convênios. A principal atribuição dos Consórcios é a gestão pública compartilhada visando a solução de problemas comuns. Através das relações de parceria entre entes federativos é possível a ampliação da capacidade técnica, gerencial e financeira melhorando, deste modo, a prestação de serviços públicos.


Sabe-se que a partir da década de 80, as transformações ocorridas no cenário político e econômico internacional, associadas às mudanças do processo produtivo, exerceram um impacto negativo principalmente para a economia das regiões mais industrializadas do país. Além disso, o processo de descentralização política acentuou ainda mais os problemas de organização dos estados e municípios brasileiros. Neste contexto, vislumbrou-se uma tendência à formação de novos arranjos institucionais de integração horizontal que, particularmente no caso do GABC , envolveu também a atuação do poder público e demais setores da sociedade civil.


Nos últimos anos, o governo federal procurou desenvolver um trabalho de fortalecimento do pacto federativo incluindo o reconhecimento das instituições de caráter regional, considerando-os importantes arranjos institucionais capazes de desenvolver projetos de abrangência territorial. Passou a estabelecer convênios com consórcios intermunicipais objetivando, sobretudo, a execução de programas nacionais principalmente de inclusão social.


Em março de 2003 os prefeitos do GABC entregaram ao Presidente da República um documento intitulado “Carta do Grande ABC” contendo oito pontos de reivindicação: 1. Construção do sistema de coletor para afastamento dos efluentes hídricos das áreas de mananciais da Bacia Billings; 2. Trecho Sul do Rodoanel: participação no cronograma de execução; 3. Viabilização da implantação do Ferroanel; 4. Ampliação da produção do Pólo Petroquímico: fornecimento de matérias-primas; 5. Implantação do Posto Avançado do BNDES na região; 6. Implantação da Universidade Federal do ABC; 7. Criação de um sistema regional de Segurança Pública; 8. Reconhecimento institucional das entidades regionais; sendo que cinco, destes oito itens, foram atendidos.

 

A partir dos anos 90, irão se constituir dois mecanismos de cooperação regional no GABC : o Consórcio Intermunicipal, de caráter formal e estritamente público; a Câmara Regional, de caráter informal envolvendo a participação da sociedade civil e a Agência de Desenvolvimento Econômico, organização não governamental mista, ou seja, envolvendo representantes do setor público e do segmento empresarial.


A experiência de regionalidade do GABC se desenvolveu em condições bastante específicas, se realizou no contexto de relações sociais previamente estabelecidas fruto da capacidade de organização da sociedade civil e da prática compartilhada de novas relações de cooperação na esfera do poder público.
É preciso considerar que o Prefeito de Santo André, Celso Daniel, juntamente com outros atores políticos, exerceu importante papel nesse processo, pois foi capaz de antecipar os acontecimentos e prognosticar que a união das forças políticas era o caminho mais viável para tentar impedir ou minimizar a desaceleração da economia regional. Assim, procurou envolver todos os sete prefeitos da região e os diversos representantes da sociedade civil, comprometidos com a idéia de construção de um novo projeto de recuperação do desenvolvimento regional.


As condições sócio-econômicas desfavoráveis favoreceram a elaboração de um projeto político regional em torno de propostas e objetivos comuns, em certa medida, acima das divergências político-partidárias e dos diferentes interesses e tensões existentes entre as esferas do poder público, privado e da sociedade civil. Deste modo, teve início no GABC a constituição de arranjos institucionais como o Consórcio Intermunicipal, Câmara Regional e Agência de Desenvolvimento Econômico, de modo que as experiências bem sucedidas do poder público local puderam evoluir para além dos limites da esfera municipal. O diagnóstico sobre as conseqüências das transformações macro-econômicas sobre a economia local indicava, portanto, a necessidade de encontrar alternativas para a crise social decorrente, sobretudo, da evasão industrial e da diminuição dos postos de trabalho.


A ação política exigiu o princípio da racionalidade para alcançar um determinado projeto político, utilizando-se dos instrumentos de um planejamento regional estratégico. A percepção de uma situação de conflitos, tensões, instabilidades e de mudanças, permitiu o desdobramento da própria política e a transição para um período de grandes transformações e inovações presentes nas relações políticas institucionais na região.


Em 1990, foi criado o primeiro arranjo institucional de caráter regional, o Consórcio Intermunicipal GABC. Diferentemente da maioria dos consórcios, originou-se em meio a concepções mais amplas de integração regional. Desde os primeiros anos, o Consórcio atuou como órgão articulador de políticas públicas integradas e multisetoriais, mediante atuação de grupos temáticos formados por técnicos das sete prefeituras, utilizando-se de recursos próprios das municipalidades como também de outras fontes de financiamento. Após quase quinze anos verifica-se que a existência deste instrumento institucional foi determinante para a atuação conjunta dos sete prefeitos, permitindo o desenvolvimento de uma política regional como forma mais eficiente para a solução dos principais problemas regionais, contrariamente à atuação individual dos municípios. Neste sentido, houve a possibilidade uma política integrada entre os sete municípios na condução de temas que mereciam tratamento regionalizado através da implantação de importantes projetos e programas sociais.


Além disso, a partir atuação consorciada entre municípios, foi possível uma maior abertura do poder público no sentido de dialogar e estabelecer relações e acordos com diversos setores da comunidade local. O Consórcio Intermunicipal constituiu-se a base institucional fundamental para a formação de outros importantes mecanismos democráticos, envolvendo maior diálogo com a sociedade civil.


Em 1997 constituiu-se também na região a Câmara do Grande ABC , um amplo fórum de debates e acordos regionais, formado pela associação entre o poder público (governos locais, governo estadual, governo federal e poder legislativo) e a sociedade civil organizada (Empresários, Sindicatos de Trabalhadores e Organizações Não Governamentais). Outras experiências envolvendo relações de cooperação precederam e inspiraram o surgimento da Câmara Regional com este formato destacando-se a experiência da câmara setorial do complexo automotivo no início dos anos 90, que teve a participação direta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC; e também a experiência do Fórum da Cidadania do GABC, criado em março de 1995.


Além da participação do governo estadual no conselho deliberativo da Câmara Regional, esta é a primeira experiência em que se verifica a participação de uma bancada suprapartidária de deputados federais e estaduais, buscando aprovação de propostas e projetos inseridos no planejamento regional estratégico.
O impacto das transformações econômicas e sociais (globalização) indicava a necessidade de desenvolvimento de uma política regional, ou seja, agir na esfera local através de um planejamento estratégico de cenário futuro desejado. A união entre o setor público e a sociedade civil, incluindo o setor privado, foi fundamental para se criar condições ideais de governabilidade em torno de um projeto comum. Sob o princípio da pluralidade, da cooperação, da unidade em meio à diversidade, da colaboração e da parceria, foram envolvidos expressivos e representativos setores da sociedade, comprometidos com o desenvolvimento regional. Dessa forma foi possível compreender as mudanças, mapear as demandas e contemplar os diversos interesses num planejamento regional estratégico, pensar as cidades a partir de um outro “cenário futuro desejado”.


Em 1997, também foi constituída a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC como resultado de um dos primeiros acordos da Câmara Regional. Surgiu com a ampliação das discussões temáticas, sobretudo, a partir do intenso debate a respeito do processo de reestruturação produtiva que vinha afetando bruscamente a economia regional. O principal objetivo desta instituição foi impulsionar os trabalhos da Câmara Regional, oferecendo suporte técnico para o processo de modernização e fomento empresarial da região, principalmente das micro e pequenas empresas, como uma das formas de promoção do desenvolvimento sustentado.


No entanto, a partir de 2001, três principais fatores contribuíram para o refluxo e enfraquecimento da ação regional. O primeiro deles, a morte do governador do estado de São Paulo Mário Covas, que até então havia desempenhado relevante papel para a formação e concretização de importantes acordos regionais; e, em seguida, fatalmente a morte do Prefeito Celso Daniel, em 2002. A ausência dessas lideranças deixou marcas profundas e comprometeu o dinamismo da regionalidade do GABC. Os melhores períodos contaram com a participação destes importantes atores que demonstraram boa capacidade de articulação política dos vários grupos de diversos interesses unidos em torno de um único projeto. O segundo aspecto diz respeito às fragilidades institucionais provenientes da falta de uma regulamentação jurídica do Consórcio e da dificuldade de fazer com que houvesse o cumprimento dos acordos da Câmara Regional por parte do governo estadual. O terceiro aspecto se refere ao fato de que em alguns momentos a conjuntura favoreceu a desmobilização ou a redução da participação de importantes segmentos da sociedade civil.


A partir de agosto de 2003, o governo federal iniciou vários debates sobre a formação e funcionamento dos consórcios públicos, sob a coordenação da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais e participação dos ministérios da Casa Civil, Integração Nacional, Cidades, Saúde e da Fazenda. Estas discussões resultaram na finalização de uma proposta de regulamentação do artigo 241 da Constituição que trata de proporcionar maior segurança jurídica e administrativa às parcerias entre os entes consorciados. Baseado neste dispositivo, em julho de 2004, o Presidente da República encaminhou ao Poder Legislativo o projeto de lei sobre as normas gerais de contratação de consórcios públicos, tendo sido aprovado e publicado decreto regulamentar, nº 6.017, em janeiro de 2007. Pretende-se maior consistência e operacionalidade aos consórcios, fortalecer estes arranjos intermunicipais, como os consórcios públicos, como uma das principais medidas com vistas às condições ideais para o estabelecimento de um novo pacto federativo.


Indiscutivelmente não há como considerar o papel e funcionamento dos consórcios públicos fora do contexto da articulação política metropolitana, pois estas ações poderão interferir na gestão metropolitana dos Estados. No que diz respeito à nova lei dos consórcios públicos, do ponto de vista jurídico, Dallari (2005) afirma que a participação em consórcios de municípios integrantes da região metropolitana não viola os artigos 25, § 3º, e 43 da Constituição Federal que orienta a instituição de Regiões Metropolitanas pelos Estados, responde que tais artigos possuem “caráter genérico, objetivando a organização e o planejamento integrados, para execução de funções públicas de interesse comum, de Municípios limítrofes situados no mesmo Estado. É apenas medida de racionalização administrativa, que não implica a gestão associada de serviços públicos nem autoriza a transferência de encargos, serviços, pessoal e bens. Assim, pois, a criação de Regiões Metropolitanas não será afetada, de qualquer modo, pela instituição dos consórcios públicos, não havendo e nem se estabelecendo com a aprovação do Projeto impedimento algum para que o mesmo Município integre Região Metropolitana e participe de consórcio público.” (Idem N.A.p.34) O autor afirma também que não há “incompatibilidade entre a inclusão de um Município numa região em desenvolvimento e sua participação num consórcio público. São esferas jurídicas diferentes, subordinadas a objetivos e regras diferentes, sem que uma interfira na outra. Não há, portanto, na participação em consórcios públicos, por parte de Municípios integrantes de regiões metropolitanas ou de regiões em desenvolvimento, nenhuma violação dos artigos 25, §3°, e 43 da Constituição, sendo juridicamente compatível essa dupla participação.” (Idem N.A.p.34,35)


No entanto experiências de articulação intermunicipal, como do GABC, demonstram que somente a regulamentação jurídica dos consórcios não será suficiente para se alcançar a esperada eficiência na gestão pública e o desenvolvimento das regiões. A concretização dos principais projetos regionais do GABC se deu, sobretudo, como resultado da vontade política dos representantes do poder público em relações formais e informais de parceria com a sociedade civil. Neste caso, se constituíram dois mecanismos de cooperação regional no GABC: o Consórcio Intermunicipal, de caráter formal e estritamente público; a Câmara Regional, de caráter informal envolvendo a participação da sociedade civil e a Agência de Desenvolvimento Econômico, organização não governamental mista, ou seja, envolvendo representantes do setor público e do segmento empresarial.


Os dados indicam que a capacidade de articulação de todos expressivos setores da sociedade precedeu a criação dos aparatos institucionais, como o consórcio, câmara regional e agência de desenvolvimento econômico. E, neste caso, o poder local, a condução da administração pública quando transcende os limites da esfera municipal para o nível regional, adquire um dinamismo raramente observável em setores da administração pública. Com isso, percebe-se que o princípio de regionalidade continua presente, pois certos mecanismos e atividades se consolidaram e fazem parte da prática cotidiana e das ações coletivas das municipalidades, e poderá adquirir ainda novas dimensões.


No contexto do processo recente de redemocratização política no país, a nova Constituição de 1988 previu a formação dos consórcios intermunicipais, lançando uma semente para que na região do GABC tivesse início um novo modelo de gestão de abrangência territorial regional. Embora embrionário, ou seja, em fase de desenvolvimento essa experiência de articulação política regional, apresenta significativos resultados para o desenvolvimento da região. Apesar de grandes fragilidades, a experiência é inovadora exatamente porque apresenta importantes aspectos principalmente fora do nível institucional, ou seja, decorrente de novas e democráticas formas de relações políticas. Além disso, traz importantes contribuições para as discussões sobre reformulação do pacto federativo proposto na década de 80.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRUCIO, Fernando. A Nova Política dos Governadores. São Paulo: Lua Nova N°40/41, 1997.

ABRUCIO, F. “A reconstrução das funções governamentais no federalismo brasileiro”. In: Federalismo na Alemanha e no Brasil/ Wilhelm Hofmeister e José M. B. Carneiro (Org.) – Fundação Konrad Adenauer, Série Debates n° 22, Vol. I, 2001.

ABRUCIO, Fernando. Os Barões da Federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Editora Hucitec, 1998.

ABRUCIO, Fernando. MÁRCIA Miranda S. Redes Federativas no Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, Série Pesquisas n° 24, 2001.

ARRETCHE, Marta. Políticas Sociais no Brasil: Descentralização em um Estado Federativo. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, Junho, 1999.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Parecer de 14 de janeiro de 2005. Subchefia de Assuntos Federativos da Casa Civil
FIORI, J.L. “O federalismo diante do desafio da globalização”. In: A Federação em Perspectiva. Rui Affonso e Pedro Luiz Barros da Silva (Orgs.). Fundap, São Paulo, 1995.

FIORI, José Luís - Os Moedeiros Falsos - O novo papel do Estado frente à Globalização. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

GOUVÊA, Ronaldo G. O nascimento da consciência metropolitana. Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Revista do Legislativo: N° 37 – julho/dezembro/2003.

IANNI, Octavio. A Cidade Global. V. 88, n. 2 mar/abr, 1994.

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

JUNG, Winfried e REZENDE, Fernando. A Política Regional na Era da Globalização – Debates. São Paulo: Editora Konrad-Adenauer e IPEA, 1996.

KUGELMAS, Eduardo. A evolução recente do regime federativo no Brasil. In: Hofmeister, Wilhelm, e Carneiro, J. M. M. Federalismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, Série Debates n° 22, Vol. I, 2001.

LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre/ RS. Editorial Villa Martha, 1980.

MONTAGNER, Paula e BRANDÃO, Sandra M. C. "Desemprego - novos aspectos de um velho problema". Revista São Paulo em Perspectiva - Volume 10/Nº1 Dia 20 de Maio de 1998.

MORIN, Edgar. Saberes Globais e Saberes Locais – O olhar Transdisciplinar. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2000.

PORTER, Michael E. Competição – Estratégias Competitivas Essenciais Rio de Janeiro: Editora Campus, 2003.

PUTNAM, Robert. Comunidade e Democracia: A experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2003.

REIS, Regina C. Articulação Política Regional: a experiência do Grande ABC (1990 – 2005) – Tese de Doutorado: Programa de Ciências Sociais. PUC/SP, 2005.

SINGER, Paul - Desemprego e exclusão social, em Revista São Paulo em Perspectiva. São Paulo: vol.10, nº1, Fundação SEADE, Jan/Mar/1996.

SINGER, Paul - Globalização Positiva e Globalização Negativa: A Diferença é o Estado. São Paulo: Revista Novos Estudos CEBRAP, nº48, julho/97.

SOUZA, Marcelo Lopes. O Desafio Metropolitano. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 2001.

STEPAN, Alfred (Org.) Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988.

compartilhe
Neamp - Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política    Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001    São Paulo - SP - Brasil    Tel/Fax.: (55 11) 3670 8517    neamp@pucsp.br
Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) de Miguel Chaia e Vera Lúcia Michalany Chaia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Unported. Based on a work at www.pucsp.br. Permissions beyond the scope of this license may be available at http://www.pucsp.br.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Design DTI-NMD