RCTV e liberdade de expressão
Mônica Simioni *
Desde que o governo venezuelano anunciou que não irá renovar
a concessão da emissora Rádio Caracas Televisión (RCTV),
baseada na Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão
(Resorte), a grande mídia capitalista voltou a investir furiosamente
contra o presidente bolivariano Hugo Chávez. E não só
a venezuelana.
No último domingo (29/04/2007) o Jornal O Globo trouxe um editorial,
sob o título “Poder de mordaça”, no qual mais
uma vez acusa Chávez de ditador, afirma que o espaço para
a “imprensa independente está cada vez mais reduzido”
na Venezuela e acusa o governo bolivariano de intimidar e ameaçar
os funcionários dos meios de comunicação estatais.
O que é imprensa independente? Independente com relação
a que? A falsa afirmação faz parte daquela velha falácia
que as grandes corporações midiáticas usam para explorar
ao máximo o poder que lhe confere a chamada “liberdade de imprensa”
na defesa dos interesses do grande capital. Liberdade esta confundida oportunamente
com outra de teor bem diferente: a de expressão, que garante a todo
e qualquer cidadão expressar suas idéias seja onde for.
A perversa inversão ocorre quando a mídia se auto-proclama
porta-voz da cidadania e se apropria dos direitos conferidos ao cidadão
para justificar sua atuação política, como um partido
político, aliado ou opositor de governos eleitos democraticamente,
sem se submeter à legislação alguma.
No editorial de O Globo (de 29/04/2007) podemos ler: “Se o presidente
Chávez quisesse realmente atender ao clamor popular na Venezuela,
desistiria de cassar a concessão da rede (...), que expira a 27 de
maio”. Clamor popular? É verdade que no final de abril a oposição
venezuelana realizou uma manifestação com milhares de pessoas
contra a não renovação da concessão da RCTV.
Mas vale lembrar que na Venezuela polarizada organizar manifestações
contra ou a favor do governo não é muito complicado. O jornal
ainda cita uma pesquisa segundo a qual 70% dos entrevistados se disse “contrário
à cassação” porque aprecia sua programação.
A RCTV é, junto com a Venevisión do magnata Gustavo Cisneros,
a campeã na produção e exportação de
telenovelas. Grande parte da sua programação é preenchida
por esse tipo de programa, além dos telejornais anti-chavistas. Como
no Brasil, as novelas lá também fazem bastante sucesso.
Lado oficial
Em seguida, O Globo afirma: “A principal acusação de
Chávez contra a emissora é seu suposto apoio à tentativa
de golpe que o afastou da Presidência por horas em 2002. A RCTV apenas
mostra as mazelas do país. Como devem fazer os meios de comunicação
em países democráticos. Porém, para o presidente (Chávez),
trata-se de um ‘canal fascista, golpista e a serviço do imperialismo’”.
O jornal tenta reduzir a importância do golpe de Estado orquestrado
por setores da elite venezuelana apoiada por parte das Forças Armadas
e amparados pelos grandes veículos de comunicação do
país, que comprovadamente mentiram e simularam situações
para gerar o caos de forma a pressionar Chávez e o governo.
No documentário “A revolução não será
televisionada”, o atual presidente da Telesur, ex-ministro da Comunicação
e Informação do governo, e então produtor da RCTV,
Andrés Izarra, conta que pediu demissão depois que veio da
direção do canal a ordem para manipular as informações
sobre a situação no país. Eles queriam “zero
chavismo”, o que significava só dar espaço para os golpistas
nos noticiários.
No editorial pretensioso O Globo ainda mostra preocupação
com uma política de Estado de comunicação, tema que
aqui no Brasil também vem sofrendo críticas furiosas por parte
dos grandes veículos que acusam o governo do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva de estar querendo manipular a informação e divulgar
apenas o “lado oficial”. É uma evidente ameaça
a hegemonia do “lado oficial” do capital.
“Na concepção de Chávez, todas as forças
do país, inclusive a imprensa, devem convergir para o ‘projeto
bolivariano’ de criação do ‘socialismo do século
21’. Com base nisso, o governo – que controla o Congresso e
o Judiciário – empreendeu uma escalada de estatização
dos meios de comunicação: já dispõe de seis
canais de TV, duas estações de rádio, dois jornais
e duas agências de notícias”, diz o jornal.
Não parece que o governo estatizou vários canais que eram
privados? Tentam dar elementos para convencer o leitor de que Chávez
é mesmo um ditador maluco que sai estatizando todos os meios privados,
pobres defensores da democracia. Desde o golpe de Estado de abril de 2002,
nenhum veículo de comunicação foi fechado. A deturpação
dos fatos é grosseira. Porque não cita cada o nome destes
veículos tão ameaçadores? Porque a verdade é
que não é bem assim. A maioria dos meios de comunicação
do Estado bolivariano já existia antes de Chávez. Os novos
são a Vive (tv cabo), Telesur (multi-estatal sul-americana de transmissão
por satélite), a Agência Bolivariana de Notícias (que
antes se chamava Venezuela Press – Venpres), e a Rádio Mundial
YVKE.
Obrigação do Estado
O ministro do Poder Popular para a Comunicação e Informação
William Lara, em entrevista à Agência Bolivariana de Notícias
(ABN) em janeiro deste ano, explicou que o governo não está
confiscando a concessão da RCTV. Ela é que se extinguirá.
“O direito de uso que o Estado concedeu ao grupo econômico 1
Broadcasting Caracas (1BC) se extingue em 27 de maio à meia noite
e, em consequência, o dito sinal fica livre, o que envolve a obrigação
do Estado, como administrador do espectro radioelétrico em representação
da nação, a definir seu uso com base na Lei Resorte”.
Segundo Lara, a não renovação da concessão não
é uma medida contra os trabalhadores, como algumas organizações
venezuelanas têm afirmado respaldando as acusações dos
donos da emissora. O ministro explicou que os funcionários poderão
ajudar na próxima etapa da emissora que continuará a ter suas
câmeras, equipamentos, veículos, instalações,
móveis e tudo mais. O grupo continuará a produzir suas telenovelas
e outros programas televisivos e já está estudando a possibilidade
de operar a cabo. “Se Granier [dono do grupo] demitir mais trabalhadores
é por retaliação política”, disse.
Segundo o Ministério, desde 27 de maio de 1987 não tinha havido
a renovação da concessão do canal 2. Além disso,
o canal ocultou a reação do povo venezuelano a favor do presidente
Chávez durante o golpe de Estado em 2002.
Classificação é censura
E no Brasil, como será que ocorrem essas renovações?
Há quanto tempo elas são renovadas automaticamente? Quanto
tempo duram? E o conteúdo que essas empresas disponibilizam corresponde
às necessidades educativas e culturais da sociedade? O tema no Brasil
é uma caixa preta.
Na sexta-feira passada (27/04/2007), o jornal O Globo – do Grupo Globo,
a terceira maior corporação midiática do continente,
junto com o Grupo Cisneros (Venezuela) e o Grupo Clarín (Argentina)
– dedicou uma página para o tema da classificação
dos programas televisivos. “Artistas vêem censura em portaria
do governo”.
O texto, assinado por Elizabete Antunes e Lilian Fernandes, festeja a decisão
do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de suspender a obrigatoriedade
de as emissoras exibirem seus programas nos horários cuja classificação
é apropriada. A matéria, como era de se esperar, cita apenas
a opinião de funcionários da casa.
Entre eles, a atriz fomentadora do pânico Cristiane Torloni (“Estamos
todos assustados. Antes, já houve a tentativa de se criar um órgão
regulador do audiovisual e também de regular a imprensa, e agora,
essa portaria”); o humorista neoliberal Jô Soares (“sob
uma aparência de respeitar a Constituição, esta portaria
é uma forma de burlar uma de suas cláusulas pétreas,
a liberdade de expressão. Não é possível que
a responsabilidade sobre o que se deve ver ou fazer caiba somente ao Estado.
Em primeira instância, isto é responsabilidade de pai e mãe.
O resto é uma imensa hipocrisia”); o dramaturgo apolítico
Domingos de Oliveira (que acha que o Estado deveria se preocupar com assuntos
mais importantes); e o humorista Cláudio Manoel, do preconceituoso
Casseta e Planeta (“Não concordo em transferir para funcionários
públicos, sem desmerecê-los, a minha cidadania, dar uma procuração
a eles para que decidam o que se pode e o que não se pode ser mostrado
na TV”).
Democracia
A liberdade que a Globo defende é a de burlar a lei. É libertinagem
uma vez que ela não quer assumir sua responsabilidade educativa e
cultural com a sociedade. Em um box na mesma página, o jornal diz
que o artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
determina penalidades administrativas para quem exibe programa fora do horário
da classificação, é inconstitucional porque o artigo
21 da Constituição determina que cabe à União
exercer a classificação para efeito apenas indicativo.
A batalha pelo fortalecimento da democracia nas sociedades contemporâneas
está diretamente relacionada com a regulação pelo Estado
das comunicações, exigindo que assumam suas responsabilidades
legais. E isso não tem nada a ver com censura. Mas com regras, saudáveis
a toda democracia.
Precisamos de coragem para avançar neste debate e ousar defender
uma lei no Brasil como a Resorte venezuelana. A digitalização
dos espectros se aproxima e poderá potencializar o alcance do pensamento
único capitalista.
A não renovação da concessão da RCTV é
exemplar. Hugo Chávez nos mostra que é possível construir
uma nova comunicação.
* Mônica Simioni, Jornalista, mestranda no Programa de Ciências Sociais da PUC-SP na área de ciências políticas, membro do IMG-SP e diretora de Relações Internacionais da Associação Nacional de Pós Graduandos.

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