É impossível ser feliz e vaiar sozinho!
Carlos Melo
No país do futebol, juizes ouvem, além de vaias, afirmações com sujeito e predicado sobre mães e honestidade. Nem por isso fazem beicinho: tocam em frente; apontam a marca do pênalti. Os mais corajosos até mandam voltar, quando o goleiro se adianta. Portanto, a despeito da vaidade, o ressentimento do presidente Lula não faz sentido; vaia não é questão de Estado. Ridículo falar em orquestração e fazer gestos para a torcida é bumerangue que volta na testa. Além disso, há aquela história de vaiar até minuto de silêncio. O Maracanã é o nosso templo e a vaia a sua oração. Amém, nós todos!
A temeridade foi, por todo esse tempo, acreditar que tudo se resolveria por si; que esperteza é suficiente; que teflon protege sempre. A soberba engana; o mal-estar nasce da consciência íntima da omissão e ou da cumplicidade. Lula sabe que, no geral, ele e seu governo deixam a desejar. Somos certamente o único país que, no ministério da Defesa, há um ministro do Gol-Contra; uma ministra do Turismo que faz humor negro e um ministro da Fazenda de opiniões mais voláteis que o câmbio. No mais, o sistema político tem a eficiência de um Lada, ou pior. É claro que alguém, na hora da vaia, paga por isso, fosse Lula ou qualquer outro. Quem duvida?
Mas, queixumes e muxoxos são bobagens; a tristeza de Lula não é nada que uma vitória do Corinthians não possa superar. Aliás, melhor não falar também do Corinthians. Falemos do sistema político que caducou, da responsabilidade de Lula e das possibilidades do momento.
Na Constituinte de 1988, a euforia das ruas e a conciliação da redemocratização não olharam para o futuro. Os derrotados do regime militar transformaram-se em “dissidentes”; a direita mais tosca naufragou com Maluf ou dissimulou; a esquerda ampliou seu balaio de gatos. Sem Tancredo e sem projeto, fez-se a nova Carta Magna acomodando o futuro econômico que se delineava a um sistema político que se esgotava. Mesmo o que havia de original, os movimentos sociais, rapidamente enrijeceu. O muro caiu. O descompasso era óbvio: o “novo”, que seria a Constituição, nasceu velho!
O Congresso Constituinte, sem ser Assembléia exclusiva, prendeu-se à cláusulas pétreas da Constituição anterior; legislou seus próprios interesses: não fez a reforma do Estado que aqueles tempos já exigiam. Dificultou a reforma futura: a revisão de 1993 foi para o espaço e, atualmente, os três quintos – na Câmara e no Senado –, em duas votações, é regra para constituição perfeita, o que não é o caso. No Brasil, reforma apenas com extraordinário consenso, que as disputas não favorecem, ou com a fisiológica cooptação que o desenho eleitoral facilita.
Como se o presidente não fosse o totem e o tabu da política nacional, Lula tem conseguido passar ao largo de um problema estrutural. Acomodado ao condomínio da governabilidade, fiou-se na enorme capacidade de sair pela tangente, sem assumir responsabilidade por um passado que ainda compromete o futuro. Como se não soubesse como estão os partidos e por não acreditar, deixou que as reformas, sobretudo, a política, ficassem por conta do Congresso. É claro que se inviabilizariam. A cargo do glutão ficou a própria dieta; o regime foi para a Cucuia e a vaia, talvez, seja apenas reflexo inconsciente disso.
O resultado não poderia ser outro: a economia se desenvolveu e se modernizou visivelmente influenciada pelo ambiente externo. A política e suas instituições, restritas ao clube dos políticos, colapsaram, porém. Por exaustão, esgotou-se a validade do sistema político e até as possibilidades de votar legislação ordinária ficaram menores. Menos pela diversidade social do que pelas discrepâncias econômicas, políticas e institucionais, agudizou-se a antiga dicotomia dos “dois brasis”. No mais, a corrupção passou a ser pano de fundo.
Um sistema político aggiornado atualizaria todo o resto. A reforma política é “mãe das reformas” por capaz de parir novas mudanças e instituições. A renovação do sistema político, no entanto, estancou. E por que estancou? Por incorrer no mesmo mecanismo da constituição: acreditar que os passarinhos guardarão o alpiste. Ao que parece, antes de voar, eles comerão o alpiste.
Sabia-se que o Congresso não faria a reforma política. Durante a eleição de 2006, Lula lançou o balão de ensaio da “Mini Constituinte”. Antes de vaiado, foi rechaçado. Naquela situação, a proposta compreendia evidente esperteza: ganhar a eleição, aproveitar a popularidade, influenciar a reforma que lhe fosse mais conveniente, até porque inexistiu debate a respeito. Além disso, havia a suspeita de que o presidente operasse pelo terceiro mandato.
O tempo mostrou que não era para valer: nem o terceiro mandato – para 2010, pelo menos – e nem a disposição reformista. Governabilidade garantida pelos meios de sempre, arrefeceu-se o ímpeto do presidente. Quanto ao Congresso, viu-se que não retrocederá às prerrogativas que lhe foram dadas pela Constituinte de 1988. A renovação do sistema político não se fará por gesto de vontade parlamentar se não por pressão social.
Fica-se, então, à espreita de uma Ópera-Bufa: tipos burlescos, tenores desafinados, barítonos trapalhões; primas-donas crentes que a política se limita ao aplauso; na expressão de Nelson Rodrigues, bate-bocas mais estrondosos que “Quinto Ato do Rigoleto”; mea-culpas os mais patéticos: o choro de Roriz ainda ressoa e constrange mais que revolta. Gaiata, a platéia do Maracanã segue o conselho: relaxa e goza, é claro.
Mas, politizemos a vaia: só mesmo uma Pira Olímpica contra essa escuridão. Ao País-Maracanã caberia abrir faixas pela convocação da Mini Constituinte. Alguém precisará fazê-lo e cedo ou tarde alguém o fará. Exclusiva, sim; com duração máxima de um ano, sim; com a proibição de seus integrantes se candidatarem, sim. A voz da galera ecoando a transformação necessária, articulando-a à eleição do ano que vem, ainda que com inevitável contaminação das disputas municipais. Não há mais tempo para tergiversar.
No mais, é injustiça reduzir a Abertura do Pan ao fiasco mudo de Lula. São Sebastião! Independente disto, o país explodiu nas cores dos retalhos de sua cultura e nas ricas melodias de Antônio Carlos Gomes e Jobim, de Vila-lobos e Ary Barroso, de Buarque e Caymmi. Mostrou-se o nosso melhor: sensibilidade, estética e um jeito de corpo: a humanidade dos relacionamentos. “Isso aqui é um pouquinho de Brasil, Iaiá”: a Amazônia, o Folclore, o Calçadão e a pouca importância à hierarquia. O anarquismo no melhor sentido da expressão.
São Sebastião! Cidade maravilhosa, o Rio não esquece o Brasil porque é sua síntese. Coisa mais linda não há. Fundamental é mesmo o amor. Lula deveria saber que tristeza não tem fim, felicidade sim. Assim como vaiar, é impossível ser feliz sozinho.
Carlos Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Autor de Collor: o ator e suas circunstâncias (Ed. Novo Conceito) (carlos.melo@isp.edu.br)

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