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CPMF: esperteza demais que pode comer o esperto

Carlos Melo

 

A aprovação da CPMF era “jogo jogado”: 14 partidos compunham a base governista e a oposição pouco podia. O governo, que nada além buscava, resumiria a isto suas vitórias em 2007. “Imprescindível e suficiente”, é possível que dissesse. Ultrapassada a emenda, o objetivo seria escapar dos “3/5”, o resto se adequaria à dinâmica interna: PAC; “Bolsa Família”, viagens presidenciais e Medidas Provisórias. Tudo aclimatado à mesmice, a mais perfeita ordem à qual somente a arte da mediocridade é capaz de garantir.

 

Desinteligências na formação do segundo escalão e o Renangate, porém, azedaram os ânimos, quebraram o ritmo e anularam vantagens iniciais. Ao abrir mão da agenda, o governo perdeu iniciativa. “Reformas estruturais”, por comodidade e falta de consenso, foram retiradas do foco. O Executivo passou ao largo do processo legislativo e permitiu que a bandeira “anti-impostos” fosse veementemente empunhada; uma barricada se ergueu na sociedade; a turma do “é dando que se recebe” naturalmente elevou os preços.

 

Estratégias assim dependem essencialmente da estultice e da incapacidade de o adversário se antecipar. Os atuais aliados, no entanto, são mestres da precaução quando o assunto é espaço político. Deu na vista; ninguém é bobo. O PMDB, por exemplo, sabe que sua força reside no tamanho de sua bancada e na habilidade de esticar a corda, fazendo de uma agenda anódina algo, digamos, vibrante: criar dificuldades, vender facilidades e valorizar-se.

Não é o único; no Congresso, há congêneres de mesmo princípio ativo. Mas, dividido em sub-partidos regionais, o PMDB é o caso de legenda que vive a esquizofrenia de ser e não ser governo e lucrar nas “duas pontas”. No mais, preso a uma espécie de dilema do seqüestrador, reluta em “devolver o refém” apenas porque sua íntima convicção lhe diz que o resgate poderia ser maior.

 

Dizem os jornais, por exemplo, que para aprovar a CPMF na Comissão, os peemedebistas do Rio exigiram nada menos que o comando de Furnas. No plenário, com um olho na Petrobrás, os mineiros teriam reclamado a perda de Furnas (a mesma). A inacreditável derrota da “MP da Sealopra”, com a exposição do ministro Mangabeira, serviu, assim, como aviso: não há fidelidades automáticas e nem apetites saciáveis. O governo engoliu e silenciou. Tantos foram os erros que a aprovação da CPMF depende da alimentação dessa fera e já não é mais favas contadas.

 

Como tudo, há trade-offs: o discurso ambíguo e a formação de coalizões amarradas em laços não programáticos implicam elevados custos também. Como de quem anda de cadarços soltos, se requer destreza e atenção em dobro ou o tombo é certo. A articulação política deve agir em sintonia fina e algum tipo de liderança precisa se impor acima dos desejos individuais. Sem isso, a ambigüidade apenas atrai interesses contraditórios que se valem do “dito pelo não dito” e a falta de programa dá liberdade a todo tipo de oportunismo.

 

Há ilusões com a esperteza, mas, ao final, pressente-se que nada é mesmo melhor que sol, sabão e água corrente: transparência.

 

No momento, o governo combate em duas frentes: na externa, enfrenta a oposição, associações de profissionais liberais, mídia, classe média e o empresariado; na interna, confronta-se com aliados que aproveitam o sufoco e os riscos por um cadinho ainda mais amplo e arejado de espaço na máquina. O risco sobe, o preço acompanha. Internalizou-se o câmbio flutuante; o fisiologismo delira!

 

Assim, a CPMF ferve num caldeirão de cálculos, interesses, disputas, maldades e vinganças, cujo aspecto fiscal é condimento insensível a paladares tão rústicos. Perde-se o sentido econômico e nada indica que a importância fiscal da Emenda garanta, exclusivamente, sua aprovação. A disputa compreenderá mecanismos amplamente conhecidos.

 

Oposição e sociedade

 

Na oposição, vislumbra-se a rejeição da CPMF como questão de ânimo e sobrevivência; no governo, além do aspecto fiscal, ponto de afirmação do poder; entre os aliados, uma chance de aperfeiçoar a técnica do garrote. O clima é de jogo de pôquer; blefes e concessões impedem o ponto de equilíbrio. A negociação pode entrar em loop infinito.

 

É evidente, para a oposição, melhor seria “derrotar o governo” e assumir a representação de setores ligados à mídia, ao empresariado e à classe média urbana. Expulso dos rincões, o PFL (atual Democratas) sonha com um novo espaço de ação política e uma nova “classe” para representar, ocupando assim, espaços tucanos.

 

Além disso, a primeira grande derrota significativa de Lula explicitaria a fragilidade da coalizão e a má qualidade da articulação. Paralelamente, acenderia o estopim de conflitos entre PT e PMDB, agravados pelo caso Renan. Insofismáveis seriam conseqüências já para 2008, como também para os esforços de uma candidatura única em 2010; algo desde já pouco provável. O diabo é que, ao contribuir para elevação do fisiologismo, a oposição vê suas fileiras arrastadas, como tem se dado no PFL do Senado.

 

Já o PSDB parece flutuar dividido. No modelo em que se sentem confortáveis, tucanos ponderam argumentos fiscais, pensam nos interesses de seus governos estaduais e no hipotético retorno ao governo federal; buscam alguma conciliação. Temem ser usados pelo fisiologismo, mas a possibilidade de que possam ajudar e fortalecer o governo federal lhes corrói as vísceras.

 

Para a sociedade, o ocaso da CPMF seria discurso mais fácil e caminho apenas aparentemente mais rápido para a redução de impostos. O “imposto do cheque” simboliza a desorganização tributária, a sanha arrecadatória e a ineficiência dos gastos públicos; dizem, os especialistas, que é mau tributo. Mas, na ausência de uma necessária e imprescindível reforma fiscal e tributária, transforma-se a emenda em mero bode expiatório. No mais, nada impede que um revés, por fim, acabe com o aumento de outros impostos.

 

Erroneamente, se interpretará eventual derrota do governo como inequívoco sinal de força da sociedade. Mais ampla que os formadores de opinião, a sociedade não parece, no entanto, preocupada com isso, como mostram os índices de aprovação de Lula e do governo. Ademais, a maioria parlamentar não é suscetível exatamente a esse tipo de argumento; não seria uma vitória política. Se vier realmente a ser rejeitada, será por muito menos: será porque o fisiologismo entrou em colapso, explodindo os limites do possível, impedindo a negociação.

 

Não seria de todo mal e talvez fosse mesmo conveniente. Mas, ao custo de R$ 40 bilhões? Seria um escárnio. Mais uma vez, não terá sido a sociedade, mas a esperteza demais que cresceu e comeu o esperto. Aconteceu tantas vezes em nossa história. É da política: nem sempre acaba melhor do que começou. Melhor mesmo seria apostar numa agenda de reformas.

 

Carlos Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Autor de Collor: o ator e suas circunstâncias (Ed. Novo Conceito) (carlos.melo@isp.edu.br)

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