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Um copo meio cheio e meio vazio

Carlos Melo

 

Formalmente, os últimos 20 anos foram de avanços. Apesar de tudo, o país estabeleceu uma importante agenda: implantou e consolidou o regime democrático; impôs a estabilidade como valor; criou ambiente mais exigente quanto à “responsabilidade fiscal”. Recentemente, tenta recolocar o tema “desenvolvimento” no centro das atenções nacionais e há hoje inequívoca preocupação em distribuir renda. “Avançamos significativamente” é o raciocínio do governo. Mas nem tudo parece suficiente; há escombros e uma impressão de obra inacabada ou de casa que se edificou sem piso. O inevitável clichê estabelece a metáfora: trata-se de um copo meio cheio e meio vazio.

 

Estabelecer a democracia não foi tarefa simples. Na verdade, nossa tradição sempre teimou em caminhar em sentido diverso. A rigor, este é o período democrático mais longo de nossa história; ao contrário de outrora, não há oligarquias que dominem e se revezem no poder; não houve perigos e nem prenúncios de golpes; os partidos e agrupamentos políticos estão na legalidade; as eleições são livres e limpas – e até mesmo moderna e eficientemente realizadas; houve alternância de poder.

 

Ainda assim, teimando em ser pouco efetivo, nosso regime político não tem acelerado mudanças necessárias; há inegável disfuncionalidade que leva ao desgaste, resultado talvez do anacronismo quando comparado à sociedade e à economia que se modernizaram celeremente. Constituição detalhista e rígida, instituições e sistemas que se obsoletaram (federativo, tributário, fiscal e eleitoral), organizações partidárias, dinâmica parlamentar, autonomia e sintonia entre poderes – a funcionalidade interna de cada um deles --, todos esses pontos precisam ser repensados. Mas uma razão interna e uma dinâmica -- mais que própria, autista e míope -- não permitem a revisão do velho e a remoção do vencido. Empacamos. Numa sociedade conservadora e sem tradição democrática, é um risco. Murmúrios autoritários nunca surpreendem na América Latina.

 

No que se refere à estabilidade também não é diferente: de modo inteligente, enfrentamos a inflação inercial; admitimos, finalmente, o problema fiscal como raiz dos nossos males e colocamos uma perspectiva de futuro para os agentes econômicos. Todavia, esse valor volta e meia se vê contestado; falta ainda maior preocupação com gastos públicos e, novamente num murmúrio, se admite que “alguma” inflação não nos faria mal, afinal. Uma imagem do economista Dionísio Carneiro revela o absurdo: “é dar uma cachaça a ex-alcoólatra”. O governo está repleto de desinteligências desse tipo e, até aqui, quem tem resolvido a parada é um Banco Central que parece, no âmbito do governo, contar, somente com o apoio de Lula. Na sociedade, não faltam críticas ao que chamam de “extrema ortodoxia do BC”. Há enorme fragilidade em tudo isso.

 

Já a responsabilidade fiscal foi um grande avanço num país patrimonialista como o Brasil. Políticos e gestores precisaram (e ainda precisam) aprender o óbvio: não se gasta mais do que se arrecada. No mais, a coisa é pública e não pessoal. Todavia, existem idas e vindas e, volta e meia, são cogitadas mudanças e “ajustes” à lei. Há confusões e reclamos de setores – inclusive no governo – que exigem prioridade à “responsabilidade social” como se ela fosse incompatível com a fiscal ou como se a fiscal fosse secundária Ora, ora, ora... Desculpas, jeitinhos, maneirismo, tergiversações? Não raro, sucessores chegam ao poder premiados por dívidas e “buracos” apenas contornados por grandes e pequenos acordos de nossa insuperável capacidade de conciliação. Uma luta pelo meio do caminho, portanto.

 

Quanto ao tema “desenvolvimento” é sempre alvissareiro que esteja na “boca do povo”. Não há mesmo mágica e nem a vontade política é capaz de tudo. Sem crescer, não dá. Mas muito desse ímpeto fica na “retórica do desenvolvimento” e não numa “determinação voltada para o desenvolvimento”. PACs precisam sair do papel e carecerão sempre de capacidade gerencial e administrativa. Temos gestão para realizá-los? No quesito “reforma gerencial do Estado”, avançamos pouco, o que nos faz atropelar processos ao mesmo tempo em que somos atropelados pelas circunstâncias: a questão energética é reincidente e continua o nó, o gargalho, que, literalmente, nos deixa sem gás. Além disso, ambientes institucionais saudáveis são valiosíssimos para dar garantias e previsibilidade a investidores e isto, exatamente, não temos: agências regulatórias e o estabelecimento de marcos desse tipo continuam numa tangencial obscuridade. Quanto a formação de capital humano habilitado às tarefas do desenvolvimento moderno, bem... Melhor nem começar a desfiar esse rosário.

 

Por último, a questão da distribuição de renda: houve avanços e programas sociais são sempre importantes em países cujas raízes da desigualdade se assemelhem ao processo brasileiro. Ainda assim, as dificuldades em estabelecer o desenvolvimento sustentável e continuado por vários anos botam em risco a efetividade desses programas. Há também a questão da educação como instrumento mais efetivo como “porta de saída” desses programas e das políticas complementares. Apontam especialistas que, ultimamente, voltamos a avançar nesse campo. Elogios ao ministro Fernando Haddad são mais que esporádicos, mas o esforço é de longo prazo – só pode ser de longo prazo. Tão cedo, não sairemos da rabeira dos rankings internacionais de qualidade educacional. E, neste campo, da educação e do conhecimento, a velocidade é extraordinária e o risco de ficar para trás enorme. O tempo urge e ruge.

 

Enfim, o copo está meio cheio e meio vazio. Têm razão os apologistas e ufanistas? Não estão completamente errados. Mas, razões não faltam também aos críticos. Ainda que apologistas e ufanistas se melindrem, o certo é que patinamos na concepção “gradualista” de mudança. Gradualismo que, no entanto, depende da pressão de uma sociedade também desorganizada e ou resignada e ou acomodada ao “mais ou menos”. “Mais ou menos”, adversário do “bom”; inimigo do “ótimo”. Avançamos em ritmo de cágado. O líquido que enche o copo não corre; pinga.

 

Carlos Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Autor de Collor: o ator e suas circunstâncias (Ed. Novo Conceito) (carlos.melo@isp.edu.br)

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