Veredas
Carlos Melo
Sempre há movimento. Até na agonia dos dias modorrentos, há movimento. Dia após dia, disputas se estabelecem; inexorável, a política se constrói em história. Ninguém é candidato apenas de si próprio e é necessário convencer, persuadir e avançar. O conflito abre fendas e brechas: tudo muda ou pode mudar. Mesmo na mesmice da água parada, não é só o mosquito da dengue que se move.
Os mineiros sabem disso. Reticentes, nunca apáticos, são mestres em encontrar veredas onde aparentemente só há sertão. Praticam a arte de "comer quieto"; mas o silêncio que perpetram quase sempre prenuncia transformações. Há alguns meses, quem distraído olhasse Aécio Neves diria: "já era". José Serra, soberbo, seguia soberano em São Paulo, centro do poder. Favorecido do fiasco de Alckmin, em 2006, tornara-se a mais reluzente estrela no céu da sucessão, senão a única. Ainda hoje, amparado em pesquisas, há quem pense assim. Mas, pode não ser nada disso.
Nas Alterosas, Aécio matutava: "a história ignora filas e ninguém é candidato apenas de si mesmo". O quadro está mais para ele do que para José Serra: a popularidade em Minas; a relação com Lula; o vazio aparente e a inquietação latente; pela primeira vez, a ausência de Lula do cenário eleitoral; a inexistência de bom nome no campo petista; o fácil diálogo com setores do PT; o PMDB a fazer-lhe a corte; o esgotamento de modelos; a mesmice que grita o tédio; o anseio pelo "novo"... Obra-prima que procura o artista que a revele. Quando passagem, ainda que estreita, vereda como esta, se abrirá novamente?
A sorte não revisita quem a despreze. Se "a Fortuna é mulher, a quem se deve agarrar pelos cabelos" (Maquiavel), no baile da política, é preciso tirar a moça pra dançar antes que algum valentão o faça, sem vacilos. Aécio entende disso - de política e de mulher - e é justo imaginar que saiba compreender, por instinto, o momento da elegância, o momento do comedimento e o momento da ousadia; com apurada técnica de sedução, combiná-los.
As condições estão postas: o país superou o desafio da estabilidade, progrediu economicamente e avanço social, inegavelmente, houve. Mas, o ambiente político dos últimos anos é o ponto mais frágil do edifício e mal o sustenta: muito som, muita fúria, muito barulho para muito pouco, ao final; disputas eleitorais e nenhum sentido de unidade e projeto. A reforma da política, remodelando agrupamentos e refazendo pactos poderia significar a mais consistente possibilidade de superar o passado e iniciar o futuro. Eis aí uma boa bandeira!
Se Fernando Henrique Cardoso foi o líder intelectual do processo de modernização, e se Lula tem sido a excepcional liderança popular capaz de dar seqüência ao processo e iniciar uma nova fase social, igualmente importante será quem se imponha como liderança política, capaz de estabelecer novo patamar de elaboração, convívio e negociação; juntar e reordenar os cacos do quadro partidário; selar a conciliação.
Não se sabe se Aécio é o nome, claro. Mas, o fato é que se movimenta de modo a gerar expectativa nesse sentido. E nem se diria que isso seja questão de princípios ou o elo perdido com o sonho do avô falecido - o que também pode lhe render votos. Trata-se, antes, de sagacidade e pragmatismo; a correta leitura da história, dos atores e das circunstâncias. Uma razão política nítida e implacável: compreender o momento e agir sobre ele. O momento é da política.
A proeza de BH abre-lhe, assim, novo horizonte: os 85% de petistas que aprovaram sua aliança com o prefeito Fernando Pimentel - número descomunal, em se tratando de PT - permitem-lhe que se apresente como "o" conciliador que promover diálogos e reconstrói pontes possíveis. Aquele que não briga com dados e admite a popularidade de Lula, mas tampouco se ilude com o compromisso da situação. Entre a briga e o apoio; busca conquistar a vez. Nem anti-Lula nem pró-Lula, apenas o "pós-Lula". É ambíguo, mas muito se difere da incompreensível "continuidade sem continuísmo", de Serra, em 2002.
No mais, não será "o Brasil contra São Paulo" - não é do seu feitio. Mas, "tensão em relação ao poder paulista"; possibilidade de descentralização e distribuição de poder; atenuação do "paulistério", equação que nem FHC e nem Lula resolveram e que José Serra elevaria a grau superlativo, conforme afirmam seus críticos talvez por difamação. Por fim, se fechar com Minas, segundo eleitorado; atrair o Nordeste; namorar o Rio; seduzir o Sul; dividir São Paulo... Em 1955, Juscelino ficou atrás de Adhemar, no estado, mas venceu a eleição no país. Os números hoje são outros, mas a lógica pode ser a mesma.
Porém, a rapadura é doce, mas continua sendo dura; há buracos e pedras no caminho. A pouca definição programática pode assustar setores econômicos; o adesismo do PMDB é sempre opção de risco e custos elevados (ainda que sinalize perigo ao PSDB); forçar primárias pode ser um avanço em muitos aspectos para os tucanos, mas pode também abrir os flancos sensíveis, buracos negros.
Nas "pedras do caminho", em primeiro lugar estão os inimigos íntimos. José Serra, como se sabe, é adversário competitivo e bastante duro quando pressionado. Não se lhe pode esperar que, mais do que maduro para concorrer pela última vez à presidência da República, fique de braços cruzados ao ver o moço, Aécio, chacoalhar o limoeiro para derrubar todos seus limões do galho. Não é assim que Serra funciona.
Atolado na realidade complexa de seu primeiro mandato, parece acuado; precisa desesperadamente governar e mostrar serviço rapidamente. Já o segundo mandato de Aécio lhe permite fazer política. Mas folga assim não deve durar muito e o certo é que virá tensão por aí, a começar pelas eleições municipais em SP. A divisão (ou não) dos tucanos paulistas em dois grandes e distintos núcleos de poder pode definir, internamente, o jogo interno para 2010.
Superar a "Serra" (se é que será superada) não implica automaticamente a conquista do "Planalto". Depois disto, restará ainda a explicar como garantir governabilidade e conciliação de interesses, num ambiente de elevado fisiologismo e saturada disputa eleitoral no seio das maiorias aliadas que se formaram nos últimos anos. Maioria numérica, simplesmente, não basta. Para além do charme neo-tucano, do eixo BH-RJ, Aécio será cobrado disto. Sua ação gera imensa expectativa.
Carlos Melo, cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Autor de "Collor: o ator e suas circunstâncias" (Novo Conceito). carlos.melo@isp.edu.br

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