JAMAC - a arte entre a autonomia e a instrumentalização
Miguel Chaia
O Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC) deve ser visto como uma das possibilidades abertas pela arte contemporânea na qual vem ampliando a liberdade do artista. O atual confronto com a modernidade, a quebra de fronteiras entre suportes, linguagens e áreas de conhecimento, além da aproximação entre camadas da cultura, permitem que a arte atual engendre lócus de novas experimentações estéticas, acopladas às tensões sociais existentes em torno do artista. Se a relação entre arte e estética sempre acompanhou a produção artística, atualmente, a reunião entre elas pode se configurar como uma dimensão básica do fazer artístico. Nessas circunstâncias abertas pela contemporaneidade surge o JAMAC, lugar de encontros entre arte e vida, estética e política, e entre artista e sociedade.
Esse projeto, coordenado por Mônica Nador, levanta questões que remetem ao significado da origem da arte, quando não havia ainda separação entre arte e sociedade; arte e religião; produtor e obra. O JAMAC é uma realização que expressa um desejo de retorno à unidade perdida, que, paradoxalmente, é reivindicada numa época de individualismo crescente, mas também de valorização do hibridismo e da heterogeneidade.
Os anos 60 promoveram a revisão crítica do papel da arte e do sentido da política, permitindo florescer um novo tipo de ativismo que, sendo artístico, se pretendia político e, sendo político, buscava uma face estética. Arte e política se entrecruzavam com ação e conhecimento. Assim, as mobilizações pelos Direitos Humanos, as reações à Guerra do Vietnã, os movimentos estudantis e a expansão da contracultura, não apenas questionaram as mais diferentes formas de poder, as autoridades e os valores institucionais, como demonstraram as aproximações entre contingências sociais e expressões estéticas.
Nesse sentido, vale destacar, como um exemplo, a reflexão e a prática “situacionista“, movimento que inclui a produção artística no interior de uma revolução cultural mundial. Qualquer mudança social deveria passar pela transformação cultural. O eixo desse movimento encontra-se na obra do francês Guy Debord que, entre os anos 50 e 60, elaborou uma análise crítica da “sociedade do espetáculo”, um momento avançado da sociedade capitalista. Na obra Sociedade do espetáculo, de 1967, Debord enfatiza que a arte deve criar situações e não expressar aquelas já existentes. Contra o espetáculo encenado pelo capital – produtor da mercadoria e da forma-imagem –, a arte deve inventar novas paixões, engendrar novas relações e, dessa forma, reativar a vida. Para tanto, assim como a forma de fazer política deve ser refeita, também a arte deve ser superada. Debord propõe uma nova arte contra a arte do capital. Uma outra expressão estética contra a arte-mercadoria, para combater a pressão que limita ou impede a vida. Escreve Debord no item 186 do citado livro: “Ao perder a comunidade da sociedade do mito, a sociedade deve perder todas as referências de uma linguagem efetivamente comum, até o momento em que a cisão da comunidade inativa possa ser superada pelo acesso à real comunidade histórica. A arte, que é essa linguagem comum da inação social desde que se constituiu como arte independente no sentido moderno, quando emerge de seu primeiro universo religioso e se tona produção individual de obras separadas, conhece, como caso particular, o movimento que domina a história do conjunto da cultura separada. Sua afirmação independente é o começo da sua dissolução”. O autor aponta a ocorrência de uma cisão, com a modernidade, entre arte e sociedade, resultando no fato de que a arte independente e a arte institucional levam ao desaparecimento da arte. Esse processo conduz o mundo à “perda do seu centro”, que ocorre quando a arte entra na sua “época de dissolução”. Para Debord, o andamento da modernidade mostra uma tendência de supressão da arte (assim como propõe a necessidade da supressão da política): ”O dadaísmo quis suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo quis realizar a arte sem suprimi-la “(item 191). Nesse sentido, afirma que a posição dos situacionistas “mostrou que a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte” (191). Essas formulações e propostas situacionistas auxiliam a elucidar o significado do JAMAC.
O JAMAC foi criado e vem se realizando com o objetivo de superar um tipo de arte por uma outra perspectiva de arte, sem que a sua autonomia seja afetada. A obra, o resultado final, segue o procedimento individualizado de produção situada no âmbito coletivo, deixando-se guiar pela lógica do fazer artístico, sem portar conteúdos ou narrativas. Esse projeto não é impessoal, pois, mesmo sendo uma associação o JAMAC é resultado do esforço de uma artista, Mônica Nador. E seu cotidiano é a expressão de uma subjetividade. Não se trata de um coletivo em ativismo político programático, partidário ou ideológico, mas, sim, de uma concepção estética realizada tendo em vista opor-se à cisão arte-comunidade. É uma reação à arte que quer ser imune à realidade circundante. Trata-se, portanto, de uma artista que se posiciona na complexa polêmica sobre o sentido e o destino da arte, numa sociedade capitalista e, no caso brasileiro, geradora de graves desigualdades sociais.
Pode-se, então, dizer que Nador investe contra as instituições artísticas e contra a modernidade, buscando a unidade perdida entre arte-sociedade. Nessa direção, essa artista da Geração 80 deixa de produzir suas belíssimas pinturas a partir de 1994 (deve-se lembrar que ela era muito bem reconhecida pelo sistema da arte no Brasil) e recolhe-se a um auto-exílio de quase dez anos. Ao final desse período de reflexão e avaliação crítica, ela ressurge com o projeto de uma arte voltada à sociedade. Dois críticos contemporâneos podem melhor elucidar tanto a natureza desse interregno existencial e artístico quanto o resultado dessa nova consciência estética de Nador: no plano nacional, Aracy Amaral, autora do livro Arte para quê: a preocupação social na arte brasileira, 1930 – 1970, obra editada em 1984; e, na área internacional, o crítico norte-americano Douglas Crimp, autor de Sobre as ruínas do museu, cuja discussão relativa ao fim da pintura sensibilizou Nador, levando-a a polemizar com o modernismo, com o formalismo e com o ato isolado do ofício de pintora.
Os antecedentes do JAMAC estão, portanto, na nova concepção de arte que Nador recompõe e na afirmação da sua sensibilidade social. Esse projeto, em realização e aberto para múltiplas interpretações do seu significado, deixa-se caracterizar claramente por meio dos artigos do seu estatuto. Consta do artigo 2: “O JAMAC tem por finalidade lutar contra a exclusão social; desenvolver a consciência crítica e trabalhar a noção de cidadania dos moradores do bairro Jardim Miriam; constituir-se como centro de trabalho da arte social, onde artistas interessados possam desenvolver essa atividade; tirar as artes plásticas do ‘circuito protegido‘ das artes, explorando efetivamente seu potencial transformador”. E o artigo 3 especifica os objetivos da associação: criar um núcleo gerador de ações artísticas que visem melhorar a qualidade de vida do bairro, oferecer uma opção de lazer e cultura para a comunidade e capacitar seus moradores nas suas habilidades artísticas.
A partir dos anos 90, Nador insiste em recuperar o poder da arte e do artista que o modernismo usurpou, uma vez que esse movimento centralizou tais poderes nas instituições ou na arte formalista. Ela pretende, isto sim, apropriar-se do poder transformador da arte para adensar a sua existência e ampliar as condições de vida do outro. Baseando-se nessa relação de alteridade, o JAMAC é a expressão da ruptura de Mônica Nador com uma certa visão de arte, numa direção próxima daquela levantada pelo situacionismo. Contra a arte, superando a arte, Nador propõe uma antiarte. Essa antiarte surge como negação dos limites impostos institucionalmente à arte, que separa arte e sociedade.
Mônica Nador, com o projeto JAMAC, aproxima duas áreas diferenciadas e específicas: arte e política. Complexo e polêmico encontro entre duas densidades, que podem ou não se misturar, resultando em criativas situações, nas quais a arte mantém condições de autonomia da linguagem ou em perigosas circunstâncias nas quais a arte desaparece o exacerbado manuseio do poder institucional.
O JAMAC encontra-se numa posição intermediária entre a “arte crítica” (situação na qual o artista independente resguarda sua obra da pressão política programada, emergindo como cidadão combativo e pesquisador da linguagem) e a “estetização política” (que supõe a ingerência ideológica, partidária ou estatal na produção artística, instrumentalizando a arte para a mudança da totalidade da sociedade). O JAMAC estaria, assim, na instância da “politização da arte”, como estiveram o surrealismo, o muralismo mexicano e os teatros Oficina e Arena no Brasil. Ou seja, esse projeto cria uma situação na qual a artista privilegia seu papel de ativista, às vezes militante, trazendo sua obra para parâmetros externos à sua subjetividade, mas mantendo a liberdade de decisão e a pesquisa de linguagem. Nesse sentido, significados sociais ou ideológicos passam a alimentar e justificar as ações artísticas, sem que se percam a direção da liberdade de criação e o desenvolvimento formal. Por isso, as paredes, casas ou praças pintadas por Nador e associados almejam a beleza pelas leis da beleza.
Mônica Nador, por meio do JAMAC, buscando unidades perdidas, engendra novas tensões, como o conflito entre vontade individual da artista e a vontade do outro ou a vontade coletiva; e entre a formação e informação da artista e o aprendizado do outro ou do coletivo. Essas são questões permanentes em uma associação como o JAMAC, que tem sua dinâmica baseada no circuito relacional artista-outro-comunidade. A arte aqui não é entendida apenas na sua dimensão contemplativa (o resultado final sim), mas como parte de uma estratégia na qual a estética é geradora de novas sensibilidades, de construção de subjetividades, da afirmação da humanidade e de novas condições sociais. Mônica Nador e o JAMAC caminham na direção da micropolítica, ao recortar um restrito âmbito de ação e ao reconhecer os embates entre múltiplos poderes. A questão, para Nador, não é transformar a sociedade no seu conjunto, como quer a “estetização da política” que elege a grande utopia para nortear as ações, como ocorreu com o realismo socialista ou a arte nazista. Nador pensa a mudança de subjetividade no interior do grupo associado, da casa do outro ou dentro do bairro, mesmo que guarde o desejo da transformação global do sistema. A artista e a associação estão voltadas para as pequenas transformações. Assim, o palco dos acontecimentos gerados pelo JAMAC é o ateliê. O JAMAC é a vontade de fazer o ateliê funcionar como local de formação, aprendizado, reflexão e produção. Como contraponto encontra-se a casa, o ambiente nuclear da vida que deve ser pintado a partir da participação dos proprietários, que deverão descobrir padrões ou estruturas plásticas recolhidas no próprio ambiente doméstico. Entre essas duas unidades – ateliê e casa – existem as paredes e os muros externos, locais de passagem, sejam elas faces externas de edificações, praças, muros de galerias ou paredes de museus. As pinturas de paredes são projetos prioritários do JAMAC, motivos de encontros e colaboração com jovens ou donas-de-casas.
O JAMAC pode ser pensado como um ateliê aberto, que funciona como uma zona de atração, acolhimento, debate, treinamento técnico e produção de obras. Mônica Nador pretende recuperar a vivência estética experimentada pelo artista cercada por outros artistas, característica de um longo período da história da arte, definitivamente eliminado na modernidade. Contra a visão romântica do artista, Nador propõe o trabalho na arte sendo realizado em grupo e nela caberia a seguinte frase: “É necessário mudar esta concepção do artista isolado em si. O artista precisa se fazer necessário”. A produção na arte é trabalho a ser gasto na companhia do outro e o resultado final deve contar com as contribuições do outro sensível. O eu-artista compartilhando sua vivência com o outro-em-formação. Com o projeto JAMAC, Mônica Nador quer dizer “O produto final do meu trabalho artístico deve ser o reflexo da minha relação com o outro”. A arte não é entendida como um ato isolado, mas compartilhado. E essa associação pode levar a transformações de subjetividades e/ou mudanças sociais. A arte não se realiza, assim, no movimento convergente em direção ao interior do artista, mas deve ser feita na expansão da subjetividade do artista para fora de si.
Por isso ganham destaque algumas características do JAMAC. Antes de mais nada, a estrutura e o funcionamento desta associação estão fundamentados no processo e não na obra, no método e não na distribuição do produto. É assim que processo e método constituem as tipicidades desse ativismo que se desenrola no Jardim Miriam. O JAMAC também produz um deslocamento da arte do espaço privado para o espaço público. Não há mais separação entre ateliê interno e externo. Entretanto, mesmo que a sensibilidade social de Mônica Nador torne sua arte uma experiência comunitária, mesmo que sua vontade pedagógica instrumentalize a arte para o desenvolvimento do outro, a artista individual, radical nas suas proposições estéticas e políticas, não desaparece. A potência do JAMAC está fundamentada na vontade de uma individualidade e a continuidade da associação também está na dependência da presença da pessoa da artista.
Na direção da antiarte, as contribuições do outro são parcelas que constroem a obra final, esgarçando o conceito ou o rótulo de “artista” que, agora, pode ser uma dona-de-casa, um jovem grafiteiro, um músico ou um líder comunitário, uma vez que todos guardam a qualidade de criador. Quem legitima a multiplicação da condição de artista é a própria artista Mônica Nador. No âmbito do ateliê (interno e externo) o outro torna-se artista, desestruturando a noção de autor/autoria. Diferentemente de outras formas de ativismo político, o JAMAC desenvolve uma trajetória de tempo indeterminado, que se confunde com o potencial universal da arte e com a duração da vida.
São Paulo, agosto de 2007.
Residência na Vila Rodhia pintura sobre parede Vila Rodhia, São José dos Campos 2000
Residência de Verôniva pintura sobre parede Tijuana, México 2000
Residência de Verôniva pintura sobre parede Tijuana, México 2000
Casa da Neidinha pintura sobre parede Barbalha, CE 2002
Coreto tinta sobre parede Coração de Maria, BA 1998
Beruri pintura sobre parede Beruri, AM 1999
Pintura Mural pintura sobre parede Havana 2000
Miguel Chaia é professor do Departamento de Política, do curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política desta universidade.

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