Pré-sal em tempo político
Carlos Melo
Entre grampos e candidaturas municipais, o fato político economicamente mais relevante no momento é a polêmica em torno do destino que se dará aos lucros provenientes das águas profundas do Pré-sal. Talvez o governo saiba mais do que revele; parece haver uma guerra de informação e desinformação, mas até aqui a imagem de bilhões de barris de petróleo dando sopa no fundo do mar é uma boa nova envolta em mistérios e incertezas. Não se sabe ao certo a exata dimensão deste tesouro, todavia sua simples perspectiva já suscita a justa preocupação com o futuro, embrulhada por ideologias, disputas federativas e cálculo político-eleitoral. A promessa de bilhete premiado revela irresistível atração pelo nouveau richisme: novos sheiks riem; rico ri mesmo à toa.
Mas o fato é que uma profusão de dados desencontrados, palpites, chutes e preferências impalpáveis têm desencorajado espíritos moderados: açodadamente, pula-se o processo, vai-se direto ao resultado. Colher o fruto sem plantar a árvore é nossa especialidade e vício. Antecipado, o futuro explode em arrogância: “não haverá mais problemas de contas externas no Brasil” (Guido Mantega). Quem fala demais dá bom-dia a cavalo. Mas, é importante estabelecer um novo clima, antecipar o otimismo. Enquanto a onda de euforia varre a precaução, áreas e contratos mais antigos aguardam que a poeira abaixe. O ritmo normal da economia se altera; expectativas paralisam negócios e investimentos. Resta a incapacidade de criar normas menos pessoais e decisões mais perenes: um marco regulatório mais claro e objetivo.
A polêmica denota pelo menos quatro outros aspectos que devem ser considerados: a) como já se apontou, as fragilidades regulatórias do país são evidentes; b) dissensos federativos e tributários emergem com maior intensidade diante da promessa de novos recursos; c) dissonâncias ideológicas impõem elevados custos de decisão política e transação econômica; d) um aguçado senso de oportunidade opera para se estabelecer o cálculo político como lógica do processo.
Não é novidade, o governo Lula nunca foi exatamente um entusiasta do modelo de Agências de Regulação. O mecanismo desenvolvido nos anos FHC é percebido como uma cunha tucana em território petista: menos que salvaguarda do Estado, um instrumento a serviço do mercado. Naturalmente, isto fez com que aspectos técnicos fossem relevados e o cálculo político, não raro, sobrepujasse a racionalidade econômica.
É evidentemente que “dados novos” e “janelas de oportunidade” podem implicar mudança de patamar econômico e exigir diferenciadas visões estratégicas de futuro. Com efeito, novas e diferentes formas de organização podem ser necessárias. Mas o fato é que a fragilidade das Agências permite a proliferação de opiniões e interesses que, não raro, buscam subordinar decisões impessoais -- técnicas e econômicas -- a interesses de governo ou, pior, de grupos políticos e partidários. No mínimo, perde-se garantias mínimas de que isto não ocorra.
Outro aspecto: a ausência de definições tributárias, fiscais e federativas leva a todo tipo de conflitos entre os chamados “entes federativos”. União, estados e municípios já se digladiavam por recursos minguados; ministérios manobram de modo a se adiantarem na divisão de raspas e restos. Imagine agora: olhos que crescem enxergam pior. A reforma tributária e a revisão do pacto federativo, necessidades freqüentemente decantadas em verso e prosa, acabam preteridas por interesses políticos que se anulam e pela ausência de uma força hegemônica capaz fazer valer sua vontade. Bom seria se o pragmatismo econômico impusesse reformas estruturais e rearranjos políticos e partidários. Mas, o dissenso e a fragmentação só fortalecem nossa incrível capacidade de conciliação; uns caraminguás arregimentam maiorias e constroem impossibilidades. Alicia-se qualquer vigor mudancista. Tudo se abranda; nada é prá já. Gradualismo a perder de vista!
Pior, no entanto, tem sido o destino que se dá, ao fim e a cabo, aos lucros provenientes desse tipo de riqueza, natural e esgotável. A injeção de recursos extraordinários entra em consonância com interesses eleitorais de curtíssimo prazo. Resultado: pouco ou nenhum investimento em infra-estrutura ou educação; aumento das estruturas administrativas, elevação de despesas correntes que comprometerão o longo prazo. Como sempre, “farinha pouca, meu pirão primeiro”. De uma só vez, serve-se no café da manhã o pirão que deveria alimentar vários jantares, por vários anos.
Em virtude disto – assimetria de informação, Agências não reconhecidas, estados e municípios pouco confiáveis --, o debate e a decisão a respeito do resultado do pré-sal tende a se dar na órbita do presidente da República. Sua esfera política assume centralidade. Como sempre, opera com ambigüidades de onde proliferam as mais variadas considerações ideológicas. Releva-se a vultosa magnitude de investimentos necessários para exploração do petróleo naquelas condições; o discurso da vontade política torna a ecoar em Brasília. A natureza estatal e nacionalista do governo não se disfarça.
Até aqui, a União tem assumido a condição de “dono da bola”, busca impor sua vontade aos jogadores e redefinir as regras do jogo. Nem mesmo à Petrobrás é dado privilégio. Impostos e royalties não bastam; o Estado quer, pelo menos, a maior parte dos lucros. E mais: decidir, sem pressões, o que fazer com a fortuna, no sentido lato e maquiaveliano do termo. Tudo dependerá do tirocínio de Lula.
Para além de uma racionalidade econômica pura, seu o sofisticado radar já captou o potencial do tema: erradicação da miséria e ampliação da educação, elementos que lhe valeram a reeleição e a popularidade de que goza neste momento (até em São Paulo!). A defesa do pré-sal, portanto, tende a ser a bandeira eleitoral de sua sucessão; o presidente se apresentará como portador da boa nova e o fiador dessa promessa; deixará em seu lugar alguém para encaminhá-la e, quem sabe, voltará para realizá-la.
Facilita-lhe o caminho esta conciliação de fatores: ausência de regras claras, o dissenso entre governos, a paixão que a polêmica desperta – “o pré-sal é nosso!” – a enorme popularidade, a ausência de antagonistas fortes, e a maioria negociável no Congresso. Não cabem considerações principistas: a definição deste assunto estará subordinada ao tempo político. Não é por outro motivo que desde o primeiro momento Lula e seu ciclo mais próximo não param de bater o bumbo.
Carlos Melo, cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Autor de “Collor: o ator e suas circunstâncias” (Editora Novo Conceito) carlos.melo@isp.edu.br

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