Youtube Twitter Facebook
Artigos
Página Inicial | Artigos | De política, mercados e biscoitos

De política, mercados e biscoitos

Carlos Melo

 

A política, o Estado e as Instituições servem para evitar que lógicas individuais - racionais, do ponto de vista do indivíduo -- possam tangenciar o absurdo e a loucura coletiva; são ferramentas básicas, se não exatamente de controle, pelo menos, de coordenação de ações e expectativas individuais para que o horror coletivo não prevaleça. Mas, a política, o Estado e as Instituições são também resultado de ações individuais que assumem caráter coletivo: existem se os indivíduos acreditam; caso contrário, serão ineficientes. Culpar a quem, então? A todos e a ninguém.

 

Indivíduos que percebem seus interesses, em interação, em risco pelos interesses de outros indivíduos referendam a política enquanto instrumento de negociação; o Estado como árbitro; as leis e as instituições como regras do jogo. O sentido da política está no indivíduo; sem essa internalização como um valor em cada ser, a política torna-se apenas instrumento para o bem-estar de uns poucos espertalhões. Certamente, será relegada a uma estúpida e perigosamente falsa irrelevância.

 

Se a sociedade for apenas "um conto contado por um louco, cheio de som e fúria, significando nada", os indivíduos serão bonecos do pânico. As lideranças políticas surgem para evitar isso e dar sentido às coisas: negociar conflitos, estabelecer parâmetros, organizar a força legítima e apta a arbitrar perdas e ganhos. São fundamentais em qualquer época e lugar. Mas, não adianta pensar num demiurgo capaz de resolver a parada sozinho. Mesmo as grandes lideranças surgem da própria sociedade e não de um ente superior e externo. Como parir essas lideranças se a sociedade nega-se a concebê-las?

 

Chega-se a uma espécie de "enigma do biscoito": a política perde força e respeito porque o indivíduo descrê, ou o indivíduo descrê porque a política perdeu força e respeito? Provavelmente, os dois: por acreditar que o biscoito está sempre fresquinho, as pessoas compram mais; por comprarem mais, o "ciclo do biscoito" permite a sensação de "sempre fresquinho", que vende mais. Tudo reside na credibilidade que Instituições, políticos e biscoitos possuem. Ou o indivíduo acredita, ou eles não existem. Eis o "xis" do problema.

 

O fato é que aos poucos a política perdeu status e credibilidade e, portanto, também a capacidade de dirigir e conduzir processos. Vê-se agora que isto prejudicou a muitos e ainda a muitos mais pode prejudicar. Nenhum país aparentemente conseguiu escapar desse circulo vicioso; o Brasil não é exceção.

 

A crise financeira que deprime as Bolsas de todo o mundo é expressão disto. Racionalmente, acreditou-se numa liberdade sem fim. Não se trata só de egoísmo ou qualquer juízo de valor: os indivíduos apenas agiram racionalmente. Mas, uma das confusões mais freqüentes foi acreditar que a "mão", por "invisível", não existia ou tornou-se desnecessária. Essa mão, que equilibra o jogo, não somente existe como é imprescindível: a natureza humana exige sua presença, pois essa natureza não é essencialmente ética e nem os mercados são necessariamente perfeitos. Há assimetria de informações e nem todos agem com previsão.

 

No capitalismo, ou em qualquer outro regime de que se conheça, o auto-interesse incontido e desembestado - inconsciente de limites -- não gera necessariamente benefícios públicos; muito pelo contrário. O mínimo que se pode esperar é que os agentes econômicos busquem, como se diz, "otimizar suas escolhas" e que isso requer, num mundo complexo, algum tipo de coordenação. Exigir que enxergassem, sozinhos, mais longe e mais fundo não faz sentido. Operadores de bolsas não foram feitos desse barro.

 

Ademais, a lógica era ganhar e deixar de ganhar era o mesmo que perder. Num momento de exuberância irracional, nada mais racional do que ser exuberantemente irracional. Exigir moderação desses ímpetos seria como esperar do alcoólatra contenção diante do barril. Mais que um erro, uma ingenuidade. Religiosos, analistas e técnicos podem se dar ao luxo, políticos não. Do político se exige sagacidade, antevisão e antecipação. O problema, portanto, é que faltou política capaz de antecipar-se e impor freios a trens que poderiam descarrilar, como de fato descarrilaram.

 

Mas isto também não é simples. A modesta menção à política tem assustado espíritos tão preconceituosos quanto reativos. A preocupação com a qualidade das instituições foi colocada de lado pelo interesse individual. Ademais, a política também baseada em ganhos individuais fez suas escolhas: contentar a todos e não desagradar a ninguém; cada vez menos assumir custos, que somente raros estadistas do passado aceitariam.

 

Também aí, exigir demais é um erro: políticos típicos apenas correspondem aos anseios da sociedade, composta por indivíduos que não gostam, não acreditam e não referendam a política. A recusa de "sujar as mãos", a "renúncia dos bons" remeteu a política à esfera da malandragem, deu certa "reserva de mercado" aos "espertos"; o farisaísmo e o cinismo propagaram-se e se anularam.

 

No final das contas, todo indivíduo quer que o transporte coletivo funcione; que se retire automóveis das ruas, de modo a que o trânsito flua generosamente de forma a que ele, o indivíduo do começo da frase, possa confortavelmente sair de casa com o seu carrão -- que trava o trânsito e prejudica a todos. Qualquer iniciativa contra isto é evidentemente mal vista e qualificada de intervencionista; não é de bom tom. Os políticos escamoteiam essa discussão; veja a eleição paulistana como exemplo disto.

 

O mercado financeiro, tão questionado, sofre do mesmo mal. Sendo a reunião de todos os agentes econômicos dispersos, o mercado é todos, mas também é ninguém. A quem condenar? A cada indivíduo que, no âmbito do mercado, agiu racionalmente em busca do próprio interesse? Melhor será condenar a política que não soube e impor limites ao auto-interesse. Mas, necessário lembrar que além de força, faltava-lhe respeito, interesse e a credibilidade, em cada indivíduo.

 

Condenar a mídia, que apenas disse o que seus leitores gostariam de ouvir, sem o quê deixariam de comprar jornal, ver tevê, ouvir rádio, navegar nos sites? Condenar a cada um por ter jogado o jogo, por ter corrido antes que a manada o atropelasse? "Em casa de família em que todos passam fome...". Alguém poderia ter feito algo, sim. Difícil dizer "quem" e o "quê". Fácil apontar, agora; depois. Corajosa é a força e a teimosia de enfrentar as manadas. Restam-nos "biscoitos murchos"; alguém deixou de acreditar que estivessem fresquinhos e eles ficaram velhos de verdade. O principal desafio é reconstruir a confiança.

 

Carlos Melo, cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Autor de "Collor: o ator e suas circunstâncias" (Editora Novo Conceito)

compartilhe
Neamp - Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política    Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001    São Paulo - SP - Brasil    Tel/Fax.: (55 11) 3670 8517    neamp@pucsp.br
Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) de Miguel Chaia e Vera Lúcia Michalany Chaia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Unported. Based on a work at www.pucsp.br. Permissions beyond the scope of this license may be available at http://www.pucsp.br.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Design DTI-NMD