A política estará de volta
Carlos Melo
A crise financeira internacional evoluiu para uma crise econômica e, rapidamente, foi comparada por economistas e historiadores a Grande Depressão de 1929. "29" ajudou a revelar o mundo desajustado do pós-guerra (1914-18) e, de algum modo, contribuiu para a eclosão da Segunda Guerra (1939-45). Seja como tragédia, seja como farsa, a história nem sempre se repete, é claro. Todavia a atual crise também revela desajustes e enormes contradições; aponta-se para uma brutal ausência de poder político e ação governamental. Uma "atmosfera" parece indicar a inexistência de lideranças políticas capazes de articular alianças e propor - viabilizando-os politicamente -- modelos alternativas para a economia e as finanças internacionais, evitando que maiores conflitos se materializem mais adiante.
O vácuo de autoridade recentemente ocorrido nos EUA - um governo mais que desgastado e uma eleição da qual ainda não emergira uma liderança legitimada - é apenas efeito e não causa para o vácuo de poder político em todo o mundo; obedece a outros fatores e não é exclusivo do país de George W. Bush. Na Europa, por exemplo, foi necessário que se levantasse um burocrata das finanças - o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown - para que os demais "lideres" se ajustassem a um padrão de decisão política mais ativo. Mr.. Brown não é político, porém; virou "Flash Gordon" e ocupou espaço possivelmente mais em virtude da omissão dos outros do que em razão de qualquer sagacidade pessoal especial.
Os "políticos de profissão" - Sarkozy, Merkel, Berlusconi, Zapatero, Durão Barroso, por exemplo - oscilaram entre a dissonância e a paralisia; comprometeram a imagem da União Européia. No Leste, uma miríade de países em dificuldades com a democracia tampouco revela diferenciada capacidade política. Na Rússia... Bem, a Rússia segue seu padrão tradicional de poder unipessoal, autoritário e atrelado à força da KGB do momento. Na China, a proeminência do Partido e o represamento de enormes contradições. Na América Latina, uma confusão que não causa surpresas: pragmáticos de um lado (Bachelet, Uribe, Garcia, Lula); ideológicos de outro (Chávez, Morales, Correa, Lugo) e os perdidos da vez (Kirchner): um grande resort, com todas as colorações, no mar tropical da Costa do Sauípe.
Como explicar esse vazio? As causas são várias e poderão ser respondidas mais satisfatoriamente por um trabalho de pesquisa mais profundo. Mas, para início de conversa, pelo menos três grandes eixos explicativos podem ser mencionados: 1) A visão economicista dos últimos anos que, dando pouco ou nenhuma importância aos políticos, acabou por enfraquecer e retirar legitimidade da grande Política, afugentando os melhores quadros e causando ojeriza às novas gerações; 2) Um ciclo de crescimento econômico realmente extraordinário capaz de prescindir da Política; capaz de criar riqueza independente e mesmo apesar dos políticos; transformando o bom momento em péssimo conselheiro, posto que inibiu um necessário processo de avanços e reformas; 3) Lideranças carentes de um conjunto de características eminentemente políticas, como a perfeita compreensão do momento histórico, a antevisão dos acontecimentos, a sagacidade, a capacidade de diálogo, a determinação programática, além da ousadia e da coragem de decidir.
Mas, o que tem sido não poderá continuar a ser. A crise é muito mais que uma "marolinha" e seus ventos ou varrerão entulhos de um tempo que já acabou ou seus entulhos ficarão alhures esperando a eclosão de novas crises até que uma crise política maior se coloque como regeneradora de todo o sistema. Diante de sua gravidade, pode dar em tudo, menos em nada. De certo, exigirá ação política.
Ao contrário do que se imagina, não é do ventre do destino que nasce o grande líder e nem é apenas com a sorte que se forma um conjunto de lideranças. A vida do indivíduo é apenas um referencial e a sorte só pode ser entendida como a dinâmica da história, o resultado de interações. São as circunstâncias e as respostas que a política fornece a eles que formam e que forjam o grande líder. Biografia e história se fundem e se confundem; a necessidade imposta pelo momento é dínamo da liderança e, portanto, da mudança. Daí provém os grandes nomes, os personagens que ficam para a história: César, Alexandre, Napoleão, Roosevelt, Churchill, Thatcher, Gorbatchov.
O presente momento parece possuir essa força e essa capacidade de -- e impor -- transformações mais profundas. O desaparecimento daquilo que se supunha riqueza, o desemprego, a recessão e a necessária busca de um novo padrão de desenvolvimento econômico jogarão suas redes por sobre a liderança política que temos hoje - depauperada e sem brilho em grande medida --; separará joio e trigo; revelará aqueles à altura do momento.
Barack Obama pode ser um desses líderes, despertado pelas circunstâncias, robustecido (ainda mais) pelo momento. Até aqui, soube contornar com notável habilidade os obstáculos que se lhe colocaram no caminho da presidência dos Estados Unidos; a natural dificuldade de uma eleição presidencial naquele país foi ainda mais ampla, consideradas as características pessoais e étnicas e a controvérsia de suas propostas. Encontrou respostas criativas e inovou em comunicação e utilização dos meios. Mas, isso não basta; veremos se chegará aos fins. O momento requererá mais. Será testado em sua capacidade de compreender de fato o momento, de romper com preconceitos e clichês, propor saídas, articular-se com outros líderes. Dada a força econômica e cultural norte-americana, para o bem ou para o mal, sua atuação servirá de parâmetro para toda a humanidade.
No Brasil, não será diferente. Por enquanto, questões menores ainda ocupam o centro: disputas em torno do comando da Câmara e do Senado e arremedos esfarrapados de reformas (política e tributária). O governo imagina levar a crise no gogó; a retórica, porém, não basta. O ambiente econômico e a aproximação das eleições de 2010 não permitirão que assim seja. Um novo padrão se estabelecerá: a política - e não a economia - voltará a ser a "arte" que organiza as sociedades, estabelece o equilíbrio entre desejos e interesses em conflito, define o possível. A negociação altiva, propositiva, é a nova condição. Aos políticos caberá compreender o momento, pesar, julgar e decidir com rapidez. O sistema político brasileiro será pressionado: ou inicia um processo de autotransformação ou será pisoteados pela história. 2009 e 2010 serão marcantes, portanto; a política estará de volta e esta é a novidade que vem acalentada pela crise e embalada a partir da posse de Barack Obama, em janeiro. Boas festas!
Carlos Melo, cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo, autor de Collor: o ator e suas circunstâncias (Editora Novo Conceito)

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