Lulismo-Paloccismo: a fortuna gira, o mundo político roda; o sistema caduca.
Carlos Melo
10/08/2004
A experiência do governo Lula parece ser prova cabal da volatilidade da política. Como nos recordamos, com o caso Waldomiro e a divulgação dos índices de crescimento de 2003, o governo conheceu o inferno. Padeceu sob a mídia, tucanos e pefelistas; fez tanta lambança que foi dado por morto e sepultado. Como no credo, é possível que Lula tenha sentado à direita de Deus Pai, mas o fato é que ao anúncio do crescimento do primeiro trimestre, seu governo ressuscitou. O que parecia ser a solidez de um desgaste se desfaz agora diante da percepção de crescimento. Com a divulgação de inúmeros índices positivos, o cartaz do presidente, do ministro Palocci e dos candidatos do PT país afora só faz aumentar. O governo está vivo e, mesmo com alguns defeitos, escoriações e males crônicos, ao que parece, goza de saúde. Esta vitalidade, no entanto, expõe a caducidade do sistema político-partidário, estabelecido desde 1979. Hoje os papéis dos diversos atores políticos - da oposição e do governo - se confundem e não se sabe mais quem é quem. Por mais que digam o contrário, os partidos dissolvem-se no ar.
A economia tem sido determinante da melhora, mas seria injusto e até estúpido dizer que "é [apenas] a economia". Como os homens fazem escolhas, a política também tem ajudado. A novidade é que os atores já não cometem tantos erros de escolhas políticas como no passado. Mesmo diante da disputa interna, a racionalidade por enquanto passou a imperar. Ao seu modo, o presidente agora administra os conflitos internos e demonstra mais nitidamente suas preferências. Assim, internamente, os golpes abaixo da linha de cintura são, ao menos, mais sutis; o que tem preservado alguma credibilidade quanto aos rumos da economia. O presidente tem conduzido o governo para uma faixa mais centrista no espectro político, estabelecendo um perfil que ao final do mandato pode configurar uma opção de nítida feição social-democrata com: a) liberalismo econômico; b) pesado investimento em políticas públicas e; c) pontuais intervenções setoriais.
O governo faz isto ao largo da pressão dos movimentos sociais e dos setores tradicionais do petismo, deixando a esquerda indignada e a oposição estarrecida. Este movimento, no entanto, não pode ser creditado ao PT, mas a uma aliança política-tecnocrática que, ainda que imprecisamente, podemos chamar de "lulismo-paloccismo". Ambos, presidente e ministro, têm se descolado das formulações tradicionais do partido. Aliás, é o partido que - para o bem ou para o mal - vem se aproximando do projeto governista. Distante do PT e dos economistas tradicionais do partido, a tecnocracia se constitui no principal núcleo de elaboração estratégica deste governo, que é a equipe do ministro Palocci, associada ao Banco Central do Brasil. Ali são definidas políticas e se interfere em todos os temas do governo, estabelecendo verdadeiros combates com as mais diversas áreas. A partir de sua equipe, Palocci tem logrado recuperar a "agenda perdida", elaborada por setores liberais acadêmicos e do mercado.
O ministro caiu no gosto da mídia e do mercado por representar a defesa desse ideário, mas, como se sabe, não contava com excepcionais condições de apoio no PT e tampouco no Congresso Nacional. Entra aí a importância do presidente Lula, respaldando a ação do ministro, que é de fundamental importância. Obviamente, sem Lula, Palocci não iria longe. Como noticiam os jornais, quer seja no plano pessoal quanto no plano político, Lula e Palocci estabeleceram uma parceria mais profunda do que as naturais relações de um presidente com seu colaborador. Em vários momentos, Lula operou o arrefecimento das críticas ao ministro; controlou o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu; e a partir da ação do próprio Dirceu, teceu uma rede de aprovação das propostas da Fazenda no partido e no Congresso. Paralelamente, a atuação Aldo Rabelo estabeleceu pontes com a oposição, que, às vezes, defende Palocci como se fosse "seu ministro". No tempo das vacas magras, enquanto o PT e aliados pediam sua cabeça do ex-prefeito de Ribeirão, Lula bancava. De lá para cá, essa aliança se estabeleceu mesmo como se fosse o cérebro e coração do governo.
O lulismo-paloccismo, no entanto, tem implicações profundas e contribui para confundir e fragmentar ainda mais o quadro político-partidário do país. Assim como se distancia de setores tradicionais do PT, a união Lula-Palocci acaba por ocupar espaços antes reservados aos tucanos. O que coloca o PSDB numa complicada situação: não pode aderir, sob pena de perder vitalidade para as inevitáveis disputas eleitorais seja no plano local, regional ou federal; mas, tampouco pode permitir-se cópia mal-acabada do que foi o PT de ontem, radical e intransigente. Seu tradicional eleitorado, sua base social e os financiadores de campanha jamais admitiriam isto. Equivaleria a uma capitulação de princípios e mesmo à renúncia de setores sociais em benefício do PT. Dessa forma, como é de sua natureza, os tucanos ficam no meio do caminho e tentam se equilibrar entre duas linhas possíveis de oposição: o "oposicionismo de trincheira" e o "oposicionismo associado".
Na primeira linha - representada em performance e ferocidade pelo líder tucano no Senado, Arthur Virgílio e por "ativistas" mais radicais como Antero Paes de Barros e, de certo modo, por José Serra -, os tucanos buscam atingir o governo com todas as pedras que tenham em mãos: críticas à eficiência administrativa do governo, denúncias éticas, exposição das contradições dos petistas, aguçamento das disputas intestinas nos partidos da base, enfim... Tudo o que possa desgastar o governo com a "massa eleitoral". Noutra linha, no entanto, procura-se contemporizar. Atuam nesse sentido, tanto os governadores tucanos quanto parlamentares como o senador Tasso Jereissati. Aí a intenção parece ser reivindicar a paternidade das propostas de reforma (muitas delas, reconhecidamente, elaboradas no governo FHC); discutir problemas institucionais mais profundos (como o pacto federativo) ou mesmo se associar à equipe econômica para a "melhora" dos projetos governistas. A missão e o desconforto são duros, mas o partido deve ao mesmo tempo mostrar-se aguerrido e confiável. Aos olhos do público o resultado mais evidente são os sinais de esquizofrenia política e programática, tal e qual a que os tucanos apontam no PT. Não é à toa que vários analistas se perguntam se os petardos contra o presidente do BC, por exemplo, vêm do "oposicionismo de trincheira" ou se é mesmo do chamado "fogo amigo". Ambos os setores seriam igualmente beneficiários dessa operação, e o sistema torna-se internamente ainda mais confuso com este deslocamento do governo ao centro.
Logo, a melhora dos índices da economia brasileira (nos moldes em que são produzidos), resultado da ação do que chamo de lulismo-paloccismo, agrava ao paroxismo as contradições e anacronismo gerais do sistema político partidário nacional, porque em todos os partidos reina hoje uma espécie de esquizofrenia: uns são governo, mas sentem-se intimamente como oposição; outros são oposição, mas, no íntimo, fecham com o governo . Só para chover no molhado: o Brasil precisa de uma boa reforma também nesta área.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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