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Bodas de um ano e meio

Carlos Melo
06/07/2004


A princípio, um ano e meio de vida não é data para comemoração. É uma data quebrada, sem graça. Nesta idade, deve-se levar a criança ao pediatra e verificar o estado do seu crescimento. Um exame apurado pode indicar o desenvolvimento sadio, a necessidade da ingestão de proteínas, ou se o bebê sofre de nanismo. Temeroso deste diagnóstico, o governo resolveu mostrar que o país de Lula vai bem, crescendo e se desenvolvendo em sua plenitude. A oposição, evidentemente, aponta para o contrário: o governo é fraco, já deveria estar andando quando ainda nem bem engatinha; é débil, não fala, apenas balbucia; se, um dia, vier a voar, será vôo de galinha. São desconfianças e afirmações naturais. O governo toca o bumbo; a oposição denuncia. O clima eleitoral começa a esquentar e o mais provável é que a verdade não esteja nem aqui e nem acolá. Com um ano e meio, o governo ainda não é anão, mas, evidentemente, precisa de cuidados e muita vitamina.

Houve conquistas, sim: duas reformas encruadas, bem ou mal, foram aprovadas e algumas leis que tramitavam a passos de cágado avançaram. É possível que até o final do ano sejam aprovadas medidas importantes no que se refere a microeconomia. O mérito, no entanto, foi mesmo o governo do PT não ter se metido em aventuras. Percebeu-se um presidente consoante com seu ministro da Fazenda e o ministro atuando em sintonia com a realidade e o possível. Se há mérito, ele reside na prudência de Lula e na firme tranqüilidade de Antônio Palocci - o resto é mesmo o resto. No mais, várias medidas que já poderiam ter sido adotadas foram preteridas diante das disputas internas e das idiossincrasias das contendas partidárias e das buscas de espaço.

Já a oposição jogou seu jogo, colocando o governo em contradição com o passado. Aproveitando-se dos ventos da fortuna, faturou o desgaste do ministro Dirceu; denunciou o uso da máquina; criticou o crescimento que considera pífio; semeou a cizânia onde percebeu a disputa de egos e impôs derrotas onde foi possível. Ainda assim, denunciando a contradição do discurso do outro, chegou ela mesmo a desconsiderar que as dificuldades que se vive hoje são as mesmas de ontem. A postura diante da definição e votação do valor do salário mínimo demarcou um novo tempo em que tucanos e pefelistas demonstraram que estão aí para desgastar o governo, independente da justeza ou coerência dos argumentos. É do jogo.

No esdrúxulo balanço de um ano e meio, pode-se constatar que o novo foi mesmo a moderação do PT e a radicalidade do PSDB. De resto, pode-se dizer que o copo está pela metade: quase cheio para quem o quer cheio, quase vazio para quem o quer vazio. O governo chega às eleições municipais como quase ótimo e quase péssimo. Talvez, somente as urnas sejam capazes desempatar esta contenda. Especialmente São Paulo, que ocupará o centro da cena. Além de ser a maior cidade do país, é o berço dos interesses e lideranças dos dois mais viáveis competidores para 2006, o PT e o PSDB. Uma vitória do governo será remédio para todos os seus males; uma derrota tende a exagerar seus defeitos. Sabendo desse risco, o alto-comando do governo tenta suavizar os riscos desta eleição, preparando-se para a disputa, mas também criando alternativas que permitam absorver uma derrota com menores prejuízos.

É evidente que para o governo federal, ideal seria a vitória da prefeita Suplicy. Mas as dificuldades para uma vitória são muitas e o próprio secretário-geral do PT, Sílvio Pereira, numa entrevista considerada paradgma de sinceridade e ingenuidade admitiu isto. Assim, abunda no noticiário opiniões atribuídas a "fontes no Planalto" que sinalizam que a maior dificuldade é mesmo o gênio forte e intolerante de dona Marta. Aponta-se que a prefeita transmite, mais que auto-suficiência, arrogância: briga com populares, bate-boca com jornalistas - acusa-os de vinculação aos adversários -, revida a provocações. Nas ruas, o caos chama-se trânsito urbano e o inferno são os buracos dos túneis e obras que não se sabe se ficarão prontos a tempo; a saúde vai mal das pernas; a educação tem o que dizer; o transporte não se sabe se vai. Além disso, há o egocentrismo do PT paulistano, responsabilizado pela desvinculação do quercismo da sua aliança - e, por que não, por parte das dificuldades com o PMDB ao nível nacional. Para estas fontes a prefeita pode ganhar, como pode perder, é óbvio. Se perder, é melhor que seja pelos seus erros e não por responsabilidade dos petistas de Brasília. Pode-se intuir que a possibilidade de o governo lavar as mãos não é remota.

Paralelamente, o governo federal demonstra que tem se esforçado o quanto pode, dentro de limites estreitos na sua exposição pública. Tem determinado apoios de aliados como o PTB e o PL e deslocado ministros para os atos de lançamento de campanha, rufando os tambores. O próprio presidente da República se posicionou no passado e agora, chega. O que mais esperar do PT federal? Esperar que as coisas da economia e da política voassem mesmo em céu de brigadeiro. Ou que pelo menos que sejam percebidas deste modo. Daí a celebração das bodas de um ano e meio. A intenção da reunião do ministério não foi outra se não fazer espuma; surfar na sonolência deste período de definição das estratégias de campanha; se antecipar às críticas; dar argumentos aos candidatos país afora, produzir boas cenas para os programas eleitorais. De quebra, se utilizou a solenidade, para reafirmar o questionado poder do ministro-chefe da Casa Civil. Para o público externo, José Dirceu tornou a ser o capitão do time, mas seu papel, ao que parece, será mesmo eleitoral. Aquebrantado com tantos desgastes procurará demonstrar que é um forte. Será o cabeçca-de-área na defesa do governo e, em virtude disto, estará em todos os municípios mostrando o porrete para a oposição. De certo, voltará a ficar vulnerável. Mas este é outro assunto.

O melhor será que as campanhas não se fe deralizem, mas se assim o for, o PT e o governo querem estar prontos para reagir e avançar, sem, no entanto, colocar em risco a continuidade do mandato de Lula. Menos mal, preserva-se o presidente que deve passar um período low profile, viajando, cuidando do dia-a-dia. Em caso de vitória, alvíssaras!!!; em caso de derrota, parece prudente que o presidente se preserve, dando continuidade a vida, com Aldo Rebelo tentando cerzir a parte do tecido que se esgarçar - até porque Dirceu, estará cada vez mais incompatibilizado com a oposição e com a possibilidade de diálogo, que, mais que necessário, poderá ser imprescindível. Comemorar um ano e meio serve, portanto, para que se pense no futuro.


Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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