A fragilidade do Castelo e as eleições municipais
Carlos Melo
09/06/2004
Os indicadores econômicos recentemente divulgados dão novo fôlego ao governo Lula. Antes da viagem à China, o executivo vinha trôpego na relação com sua base política, patinava no encaminhamento de importantes questões no Congresso Nacional e mostrava-se paralisado no que se refere à administrativa. Mas, ao contrário do que se chegou a inferir por ocasião do caso do NYT, o momento mostra que o governo não acabou, não. Todavia, o otimismo pode ser tão precipitado quanto o pessimismo de dias atrás. Não se pode dizer que, de repente, o governo tenha se tornado uma Brastemp. Existem problemas sérios no âmbito administrativo e político, assim como o cenário internacional continua sendo uma incógnita que pressiona o presente e pode comprometer o futuro. O clima melhorou, é certo, e a tempestade, por hora, passou. Mas o estrondo dos últimos meses deixou avarias e mostrou que o castelo governista é, no fundo, no fundo, bastante frágil. Esta fragilidade é estrutural e continua sem solução à vista; as eleições municipais podem, se mal conduzidas, agravar esta situação.
Uma série de fatores fez com que Luiz Inácio da Silva vencesse a quarta eleição presidencial que disputou: 1) A controversa candidatura de José Serra desestabilizou o PSDB e a aliança governista de então; 2) O apagão de 2001 freou o processo de desenvolvimento econômico; 3) o cenário internacional de sucessivas crises em mercados emergentes - que culminou com a hecatombe Argentina - acendeu a luz amarela na avaliação dos países emergentes; 4) a política econômica acabou responsabilizada pela estagnação do País; e, por fim; 5) a estréia de um pragmatismo inédito do PT, abandonando antigas teses radicais em relação ao Estado e, principalmente, quanto ao Mercado, foi recebida com espanto e festejos. Como sempre, as circunstâncias pesaram tanto ou mais que a eventual capacidade do ator político. Logo, é bom que se compreenda que não foi a liderança de uma ampla e majoritária frente reformista que, depois de tanto insistir, fez com que o PT chegasse ao governo. A fortuna também contou, e muito.
Assim, o pragmatismo e o compromisso com o equilíbrio fiscal dos primeiros tempos foram saudados. Diante sucesso inicial, a capacidade de articulação política e a qualidade da aliança governista foram superdimensionadas. Na verdade, era a lua-de-mel e a facilidade de comunicação de Lula que inflavam o otimismo. Com o tempo, viu-se que Lula sofreria, assim como todos seus antecessores, das agruras da inexistência de uma base parlamentar programaticamente sólida, menos suscetível ao dá cá toma lá da tradição política nacional. Pode-se mesmo afirmar que este é um dos nossos maiores problemas: há um crônico impasse na organização das forças partidárias, o que torna o sistema político incapaz de realizar reformas mais profundas no âmbito da estrutura e concepção do Estado Brasileiro.
Sucessivos governos se viram obrigados a procurar apoios em setores arcaicos, situação que persiste desde o fim do governo militar. Mesmo Fernando Henrique dançou miudinho por conta disto e teve que conciliar seu governo reformista às exigências do sistema político anacrônico, de têmpera, sobretudo, fisiológica. Ao padrão deste capitalismo internacionalmente determinado, estabelecido ao longo das últimas duas décadas, não se constituiu essa força reformista contemporânea. PT e PSDB fizeram entre si um jogo de soma zero, quando não negativa. Com Lula não está sendo diferente. Em que pese o otimismo econômico, o governo petista defronta-se com a impossibilidade de promover um salto qualitativo de significado histórico profundo.
Hoje se sabe que produzir superávits fiscais não basta. O Estado brasileiro tende a disfuncionalidade, retirando da sociedade recursos em demasia e devolvendo pouco ou nada em troca. O gasto com o custeio da máquina emperrada é grande e de péssima qualidade; o que sobra para serviços essenciais e estratégicos - como saúde, segurança e educação, ou mesmo para investimentos em infra-estrutura - é insuficiente. Cortar esses investimentos, porém, não tem se mostrado o melhor caminho, conquanto seja, por outro lado, o possível diante da situação. As reformas que dariam novo vigor ao setor público e à sociedade não se concretizam: reformas fiscais e tributárias para valer, assim como corajosas intervenções gerenciais e administrativas, além de um novo pacto federativo, evidentemente, ficam para as calendas gregas.
Independente da vontade política que se tenha, não há coesão programática para reformar para além do cosmético. Neste quadro, o governo vai surfando como pode nas ondas da ambigüidade. Decidir tudo com morosidade é o jeito, porque a pressa é inimiga da indefinição que está na base da aliança governista. O governo a compôs costurando acordos contraditórios; trazendo ONGs para o seu interior, ao mesmo tempo em alimentava o ressurgimento de oligarquias e setores que sempre se beneficiam da disfuncionalidade do Estado brasileiro. Recentemente, o presidente disse que o Estado "foi feito para não funcionar". Tem razão. Como responsável pelo funcionamento (ou não) deste Estado, o que fará para alterar essa lógica? Não diz. Não pode dizer porque perderá apoios. A volatilidade da base é, no limite, a causa da volatilidade dos capitais. Este é o fato, esta é a fragilidade do castelo: a base política deste governo, como dos anteriores, por heterogênea é incapaz de avançar para além da precariedade programática que a caracteriza. Tem sido freqüente ouvirmos dos senhores do governo e da oposição expressões como "as reformas que o Brasil precisa". Bonito. Cumpre saber: quais reformas e em que profundidade? Se se dispusessem a falar, veríamos que a multiplicidade de opiniões será tão grande quanto a variedade de nomes que todos entendemos serem os melhores para ocupar o meio-de-campo da seleção brasileira.
No começo deste ano, no auge popularidade, Lula sonhava uma recomposição política que reconfigurasse seu governo. Num encontro informal com jornalistas, chegou a comentar que setores de PT e PSDB um dia (!), estariam juntos. A estes poderiam se juntar fatias modernas e reformistas de todas as agremiações. Seria, enfim, uma reforma política baseada em interseções partidárias capazes, qualitativa e numericamente, de conduzir um projeto reformista. À época, houve quem - por desaviso ou interesse - falasse em "mexicanização". Bobagem. As condições do México eram outras, assim como o PT não é o PRI. O projeto, ou menos, a intenção foi bombardeada. O governo quis tomar a iniciativa, no seu destino mandar, mas o caso Waldomiro veio e qual roda-viva carregou o destino pra lá.
Hoje as condições econômicas são momentaneamente melhores e Oxalá sejam suficientes para que o governo possa realmente retomar a iniciativa, buscando uma conformação política programática e reformista. De imediato, pode conseguir importantes avanços aprovando uma agenda de importantes medidas microeconômicas. Diferente de há 30 dias, hoje há mais espaço para isto e para avanços mais significativos, embora o céu não seja exatamente de brigadeiro. Para realizar reformas de maior alcance o governo terá mesmo que buscar novos interlocutores e ousar construir uma unidade reformista programática, o que, com o sistema partidário que se tem, não se mostra simples e nem lógico. As eleições municipais e sua lógica destrutiva, logo veremos, se configurarão como uma pedra no meio deste caminho. O conflito pode atingir decibéis suficientes para quebrar cristais e junto com eles as pontes de uma conciliação mais adiante. Neste sentido, parece um erro que lideranças do governo e do PT aceitem desafios e apostem no tudo ou nada. Se derrotadas, essas lideranças poderão assistir a atual base política migrar para outros territórios que demonstrem projetos de poder mais sólidos e vantajosos. Aumentado o risco, parece óbvio que exijam prêmio maior, não? Para evitar este êxodo e o descontrole no Congresso, restará ao governo cobrir a aposta e aumentar a oferta de cargos e verbas. Ainda que uma vitória eleitoral seja aparentemente o melhor quadro para o governo, para o País talvez o melhor mesmo seja um resultado neutro, com poucas baixas e sem que mais ninguém precise ser lançado ao mar.
Em São Paulo, o resultado (Marta ou Serra) não pode significar uma derrota política para qualquer um dos lados. Perder uma eleição é o de menos; faz parte do jogo. Perder a possibilidade de diálogo parece ser muito mais sério quando se tem pela frente dois anos e tanto de governo. A obstrução do diálogo entre os setores modernos e reformistas, seja o PT vitorioso ou não, parece ser o principal cimento que permite que um castelo velho e mal-assombrado continue fragilmente de pé.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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