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Acervo | Análise da Conjuntura

Cirrose

Carlos Melo
14/05/2004

O recente qüiproquó do governo se resume a uma demonstração extemporânea de força. Obcecado como num samba, o presidente procurou aos santos clamar: "vingança, vingança, vingança". Bonito num bolerão de Lupicínio na voz de Jamelão, mas fora de propósito para um país que luta para superar a infância institucional. No caso do The New York Times, o governo, que poderia ter feito do limão uma caipirinha, produziu extraordinária dor-de-cabeça. Demarcasse sua origem proletária, sairia por cima. No Brasil, operários celebram o almoço e o apetite com uma "branquinha" e um torresmo. Confissão de tal delícia jogaria Lula nos braços do povo; não o comprometeria e tiraria uma pedra da bota: há meses setores da elite colocam reparos nesse hábito do presidente. Nada mais teriam a falar. Precificada pelo mercado, a cachaça do presidente seria digerida por todos.

A bílis, amarga e viscosa, azedou-lhe a relação com a imprensa internacional, talvez única fonte de apoio no recente cenário de turbulência. De vilão, Larry Rohter foi elevado à mártir da liberdade de imprensa; de caluniado, Lula viu-se reduzido a caudilhete, "ditador de republiqueta". Não tomou a decisão por índole autoritária; a lambança foi mesmo por inépcia. Maquiavel dizia que o governante deve usar a força e a prudência. Lula usou imprudentemente a força que não tem. Agora é curar a ressaca. No mínimo, presidente e áulicos receberão vexatórias lições sobre liberdades civis. Se ficar nisso, sai barato. Mas os efeitos são incontroláveis. Pode ser compreendido como sintoma de que o governo se perdeu. Cassandras afoitas e passionais já anunciam o fim do governo; o destino seria o de Collor; não cumprirá o mandato e tal e coisa. Delirante, mas - ao lado da incúria governista - podem construir profecias auto-realizáveis, estabelecendo dinâmicas negativas, aumentando a desconfiança, inibindo investimentos. A descrença individual estabelece a certeza coletiva de que o governo acabou e, quando se nota, o governo acabou de verdade e o país quebrou. O governo não reage porque não tem apoio, não tem apoio porque não reage. Um enorme retrocesso institucional. Lula não precisa sequer ser reeleito, mas parece fundamental cumprir o quadriênio, estabelecendo definitiva maturidade econômica e institucional. Passado o mandato, o ciclo democrático estaria realizado, com as forças relevantes tendo experimentado e experimentadas pelo poder. É óbvio, mas a desejável estabilidade é também política; aliás, esta é base para a econômica.

Mais proveitoso do que exibir dotes de vidente é, no entanto, compreender o presente. O governo sofre de uma doença difusa, que altera as funções de células, de sistemas e canais de comunicação. É resultado de vários processos e tem produzido um tecido fibroso não funcionante, não raro, acompanhada de necrose. Consulta aos médicos sentenciaria: "cirrose". O mal não se origina no consumo de bebidas destiladas. Bobagem. A causa reside nos males adquiridos na infância do PT, na disfunção de órgãos do governo e na incapacidade de regeneração pós-processos traumáticos de intensidade moderada, como o caso Waldomiro Dinis. O governo perde vitalidade e iniciativa porque: 1) não consegue definir ao que de fato veio; 2) o ministério e a base foram constituídos como uma colcha de retalhos, formados unicamente para dar sustentação parlamentar. Não há unidade porque não há clareza de projeto; 3) perdeu iniciativa política sobretudo no Senado porque tem um comando inexperiente e pouco treinado para a adversidade.

Quanto ao projeto, é fácil perceber que a manutenção do ministro Palocci e equipe reside mais na inviabilidade de mudanças profundas do que na existência de plano mais amplo que tenha como um dos requisitos a manutenção da política econômica. Compreendeu-se que não há alternativa e ponto. O presidente reafirma convicção neste caminho, mas isto não foi assimilado pelo governo e aliados. O fogo amigo abala a segurança de regras estáveis. Assim, se Lula quiser exercitar produtivamente a autoridade, eis um bom motivo: definir o que pretende e quem está com o projeto do governo. Terá que fazer escolhas e - ainda que precise de maioria no Congresso - precisará reduzir ambigüidades, buscar aliados novos, se dentre os atuais não houver concordância. O que quer o presidente? Como espera alcançá-lo? Perguntas que possibilitam respostas simples, porém corajosas. Monta-se o time a partir disto. Com a coação da mídia e algum grau do atual fisiologismo, não é impossível fazê-lo. Cumpre encarar a tarefa com determinação.

Outra providência seria evitar a armadilha plebiscitária, para a qual será atraído. Há poucos dias, perder São Paulo seria apenas uma derrota creditada à inabilidade do PT paulistano, míope e distante do governo federal. Com a entrada de José Serra na parada, a tentação do "terceiro turno" poderá levar à lógica do "tudo ou nada", com um agravante: na derrota, "nada" significa "absolutamente nada". Considerando o provável grau de virulência do conflito entre Serra e Marta - se patrocinada pelo Planalto -, após a eleição o governo pode perder a hipótese de "união nacional". Disse Veríssimo (filho) que o ostracismo é um hotel onde baratas têm nojo dos hóspedes. Derrotado, o governo pode ser abandonado; satisfeitas, as bactérias oportunistas, que já teriam consumido todo o organismo, dão o fora. Sem alternativa fora da base, a racionalidade desloca-se para a tentação populista. Neste caso é possível fazer previsão: o país naufraga antes que se consiga ler o rótulo de uma garrafa de Johnnie Walker.

Ideal seria reorganizar o governo rapidamente por meio de uma ampla reforma ministerial. Re-programando o perfil e diminuindo o número de ministros. Estabelecer pactos de governabilidade, eximindo-se das escaramuças municipais que batem à porta. Enfim, desfederalizar as campanhas e reorganizar o governo. Operar em baixo perfil, aprovando agora, em maio, uma agenda básica, negociada. O governo, no entanto, prefere chegar em casa chutando o cachorro e pondo medo nas crianças, metendo-se em conflitos tão desnecessários quanto improdutivos. Daqui a pouco, junto com a esperança, vai-se também o respeito. Só nos restará mesmo encher a cara. Será um porre fenomenal.


Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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