Acervo | Análise da Conjuntura
Para bom entendedor, pingo é letra; mas pode ser também a gota d'água.
Carlos Melo11/05/2004
Seria um exagero afirmar que as condições de governabilidade do governo Lula estejam esgotadas. Não estão e muito espaço ainda há para evitar que isto venha a ocorrer. O presidente tem a máquina e a caneta na mão, o controle de um importante partido político, que é o PT, e influencia legendas importantes no Congresso Nacional. Conta também com o apoio de parte importante da mídia nacional e de entidades empresariais. Além disto, pelo menos até aqui, o governo não fez nenhuma grande loucura que lhe impeça de tocar a diante o processo de controle da inflação e retomada do desenvolvimento econômico. Contudo, ainda que a fase de maior tensão até aqui vivida pelo governo tenha sido superada, a pressão, por outro lado, não diminuiu e nem a nuvem negra de dúvidas e desacertos foi dissipada. Há ainda muito espaço de manobra, no entanto, começa-se a questionar a capacidade de o governo lidar com todas estas variáveis que deveriam lhe favorecer.
A cena tem sido de uma comédia de erros. O governo e seus aliados esmeram-se em alimentar turbulências e a ensaiar trapalhadas. Após um período exitoso, quando levou adiante uma agenda de reformas inescapáveis (e, nota-se hoje, paliativas), o governo agora patina. O palco comum desses desacertos tem sido mesmo o Senado Federal. Ali a base governista tem sido engolida por uma oposição mais experiente e aguerrida. As lideranças do governo e dos partidos aliados, por outro lado, se anulam em disputas intestinas, na multiplicidade de comandos e no radicalismo tão destemperado quanto improdutivo e anacrônico. Como resultado, o time tem tomado bolas nas costas, submetendo-se a ataques constantes, que, não tarda, podem se reverter em gols de verdade e conformarem uma derrota real. Ali, no Senado, o time está sem capitão, não há como negar. O revés no caso da MP dos Bingos foi apenas um susto; a derrota da menos importante medida dentre as mais importantes ali discutidas. Ainda assim, todos vimos que "qualquer desatenção, pode ser a gota d'água".
A voz de comando na Casa deveria vir do Planalto, mas o sentimento difuso é o de que o comando da articulação governista se acanha diante da fleuma indiferente dos senadores. De fato, é difícil lidar com ex-prefeitos, ex-governadores, ex-ministros, pessoas que passaram pela Câmara e obtiveram sucesso e até ex-presidente da República - ainda que este, em particular, fosse eleito pelo destino. Gente que traz todo o ímpeto e segurança de quem nasceu na Casa-Grande e está apto para o mando e mais disposto a ser servido do que servir. De todo o modo, o Senado não pode ser desconsiderado. Dado de realidade, as dificuldades no Senado têm que ser equacionadas. Ao lado da lentidão de alguns ministérios, o Senado é hoje o calcanhar-de-aquiles do governo. Ali, o governo não conduz, é conduzido. Não navega, é navegado.
Como tenente não bate continência para sargento, o governo parece ensaiar como solução a volta do ministro José Dirceu à cena, após curto ostracismo a que foi submetido pelo caso Waldomiro Dinis. No entanto, a reassunção do ministro também traz custos e riscos. O ministro não tem papas na língua e obstina-se por colocar pingos nos is. Nos últimos dias desandou a falar de tudo, o que implica novos pitacos em temas econômicos. Mora aí o perigo e o Senado que é problema, vira detalhe. Isto se dá porque o mercado financeiro não é mais o mesmo. Seus humores mudaram. Hoje em dia, o mercado deve ser entendido como um relevante ator político. Não tem nome, sigla partidária em nem endereço, mas tem muito poder, uma vez que o governo necessita de fluxos financeiros para se financiar. O mercado é um resumo de ações individuais autônomas, onde todos buscam fazer o que é melhor para si. Acuados e temerosos, a principal tendência é a fuga para a qualidade e a segurança dos investimentos. Se muitos fizerem isto, todos terão que fazê-lo e se tem, então, o tal do efeito manada: quem fica é atropelado. Ações individuais que dão feição coletiva ao desastre. O governo não tem como deter isto; pensar em controlar fluxos parece ser uma temeridade desde já descartada. A mudança do cenário internacional aliada às recentes barbeiragens na área política, e a um estado de pasmaceira administrativa em vários ministérios têm feito com que o governo comece a desperdiçar grande parte do patrimônio de credibilidade adquirido. Há uma tendência de que tudo vire motivo para desânimo e pessimismo. A justeza desse humor - certo ou errado - é o que menos importa. A volatilidade do capital que hoje financia o Brasil não requer sequer motivos. Água de morro abaixo, fogo de morro acima e o capital quando quer ir embora, ninguém segura. Desse modo, o governo que passou pelos maus bocados do caso WD, "Abril Vermelho" e "Fogo na Rocinha", pode se ver num momento ainda muito pior em termos de crise. E aí não será mais gota, mas, como diria o Nelson Rodrigues, "uma tempestade de quinto ato de Rigoleto".
A volta de Dirceu pode ser alvissareira, pela própria incapacidade do governo em substituí-lo e porque o "capitão" é respeitado pelos senadores da base. Por seu estilo, pode estabelecer diálogos francos, diretos e objetivos, negociando pactos e compensações. Mas há o reverso da medalha: a capacidade do ministro Dirceu em produzir ambigüidades discursivas tem deixado os agentes de mercado ainda mais atentos e preocupados. Em que pesem os atos e as reiteradas afirmações do presidente Lula de que não cometerá irresponsabilidades (vide o valor anunciado para o salário mínimo), há ainda muita desconfiança a respeito da sinceridade de propósito do governo. Na semana que passou, Dirceu voltou à cena fazendo críticas veladas à política econômica e ao mesmo tempo reforçando o imperativo da responsabilidade fiscal. São sinais dúbios, num momento em que se pergunta se o governo terá coragem para dobrar a aposta diante de eventual maior adversidade. Ou seja, se aprofunda o processo de reformas e de reestruturação do Estado Brasileiro, ou se abandona tudo rumo a um canto de sereia.
O mercado hoje tem instrumentos para abortar iniciativas populistas de todos os governos e imediatamente. A velocidade com que pode se deslocar é tão grande que mesmo antes dos efeitos de médio prazo, o curto prazo já sacramenta o desastre. Por isso, o "capitão do time" precisa saber que neste momento, pingo é letra e todo cuidado é pouco para não transformar um descuido verbal numa desatenção fatal.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.
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