Acervo | Análise da Conjuntura
O diabo na rua, no meio do redemuinho.
Carlos Melo31/03/2004
Um enredo de desacertos e disputas que poucos conseguem compreender o sentido. Ora o problema parece ser a economia; ora, os inimigos; ora, os aliados. A prática do governo se assemelha, mesmo, a um parquinho infantil. Mas ninguém está para brincadeira: a economia anda de lado; o eleitor se revolta; o investidor vai embora; o desesperado exaspera. Cinqüenta dias são o suficiente para mostrar que política é mesmo imprevisível. E este é o drama da presente crise: sua imprevisibilidade. Há dois meses, a oposição, moribunda, falava de "mexicanização", hoje vive nova aurora, sonhando com 2006. O ministro José Dirceu, por sua vez, possuía super-poderes e agora amarga remorsos. O país experimenta ciclones e o governo convive, na expressão de Guimarães Rosa, com o "diabo na rua, no meio do redemunho".
As pesquisas publicadas nos últimos dias retratam o aumento da insatisfação popular com o desempenho do governo. Os dados indicam que a base do descontentamento reside mais na economia do que na política. As soluções para os problemas, no entanto, não estão exclusivamente na ação econômica, mas, antes, no campo político. Aliás, pode-se dizer que a política tem sido um entrave para liberação de um circulo econômico virtuoso; menos pelos dias difíceis, pós Waldomiro Diniz, e mais pelos sinais de fadiga e disfuncionalidade do edifício de sustentação parlamentar do governo Lula.
Nos últimos anos, as lideranças do PT navegaram em ambigüidades. É fato que uma expressiva parcela do partido convergiu ao centro e reformulou sua avaliação a respeito do mundo, em geral, e da economia, em particular. Mas para garantir apoios mais amplos e não perder controle sobre a base, o PT cortejou a direita, sem abandonar a esquerda e namorou liberais, sem consumar divórcio com intervencionistas. Como tática eleitoral, foi um sucesso. Como prática de governo nem sempre dá certo. A existência de divergências é, até certo ponto, normal, conquanto fique claro quem manda. Não basta o presidente da República sinalizar adesão aos postulados liberais do ministro Palocci. Ao lado da política macroeconômica, o desenvolvimento depende da adoção de medidas microeconômicas que sejam coerentes com o todo do governo, cuja implementação e resultados levam tempo. À política econômica de determinada inspiração caberia complementos e medidas de igual linhagem.
Não é isto que tem ocorrido. A composição política da base é diversificada - em alguns casos, saudosa do nacional-desenvolvimentismo e do estado provedor - e não permite essa coerência. Equilibrando-se no fio da ambigüidade, o governo fica no meio termo. Não é à toa que o desenvolvimento não deslancha, pois, ou as medidas complementares, quando finalmente aprovadas, são esquizofrênicas e nem sempre demonstram conseqüências práticas, ou simplesmente empacam no parlamento na dependência de acordos entre situação e oposição - quando não entre os próprios governistas. Pode-se até prescindir de projeto, mas não se pode abrir mão de um rumo. Quando o governo não consegue sinalizar que no futuro as coisas se acertarão, as pessoas começam a desconfiar que nem precisarão esperar pelo longo prazo para estarmos todos mortos.
A situação se agrava com a notória deficiência de quadros capazes de articular iniciativas dos ministérios com a determinação principal do governo que é a estabilidade econômica e o desenvolvimento. Diante da necessidade de dar consecução a essa ambigüidade também na composição da equipe, a ação governamental acaba por obedecer mais a racionalidades partidárias ou ideológicas, do que considerações técnicas e práticas coerentes com os objetivos propostos. Essa deficiência de quadros e o tipo de ocupação de espaço político na máquina não é exclusividade do PT, é bom que se diga. Outros governos que passaram por isto, no entanto, procuravam suprir o déficit humano dos partidos com a atração de experientes quadros da burocracia do estado e, quando era o caso, de setores do empresariado. Fernando Henrique Cardoso, na análise que fez a respeito dos governos militares, já notara esta prática por meio do estabelecimento de "anéis burocráticos de poder", conceito desenvolvido no seu tempo de sociólogo. Coerente com sua formulação, presidente, preencheu as secretarias executivas dos ministérios com burocratas qualificados como Pedro Parente, Martus Tavares, Barjas Negri etc. Até José Sarney, ao apelar para a dupla Maílson da Nóbrega-João Batista de Abreu, percebeu que "arroz-com-feijão" não se faz com receita ideológica.
Para construir maiorias e compor o governo, Lula escalou um articulador absolutamente pragmático: José Dirceu agiu primeiro no PT e depois no Congresso. No Brasil, o poder do presidente é compartilhado com o Parlamento; como o eleitor não estabelece uma maioria natural, o Executivo precisa construí-la da forma que lhe for possível. Desse modo, Dirceu jogou o jogo, estabeleceu alianças igualmente pragmáticas, e, evidentemente, heterogêneas. Interlocutor do governo junto as bases, conquistou delas a confiança e o respeito. No núcleo do governo, o ministro se viu obrigado a defender acordos heterogêneos e por isso foi identificado como o antípoda dos ortodoxos. A dinâmica política o levou a isto. No interior do núcleo duro, indispondo-se com Antônio Palocci, Dirceu isolou-se e passou a ser alvo da mídia e do mercado. A mesma dinâmica política - e a ambigüidade a ela inerente - fez com que o ministro Palocci assumisse a guarda dos fundamentos macroeconômicos do país. A surpresa de seu didatismo suave e elegante encantou o mercado e setores da imprensa. Para estes segmentos, assim como para os organismos internacionais de finanças, Palocci é o fiador do governo. No entanto, o ministro isolou-se no PT e nas bases governistas. Faz sentido que o ministro tenha mais sucesso entre a oposição do que com os aliados.
Esta contradição - e o conflito que daí advém - parece ser a aflição do momento, porque a paralisia atribuída não é falta de trabalho, mas falta de definição. A população distante das disputas políticas, quando consultada pelas pesquisas de opinião, responde por critérios objetivos e tangíveis. O medo do desemprego e a queda da renda são o centro da lógica popular. Num ano eleitoral o sistema político fica mais sensível a isto. Os políticos, ao contrário do que pretendem aparentar, não vão à frente, dirigindo, mas atrás, buscando representar se não os interesses pelo menos as angústias da população. As chances de candidatos do governo decrescem. Integrá-los a um sistema único de composição política, cujo centro seja a governabilidade federal fica mais difícil. Casos como São Paulo são típicos. Além do desgaste natural do desempenho municipal e da postura pessoal controversa, a prefeita Marta Suplicy arca com o reflexo dos problemas federais. À parte disto - mas também em virtude disto - as pretensões de seu grupo impossibilitam a construção de um acordo nacional mais amplo com os aliados do governo, especificamente, o PMDB. Dirceu parece ser o cume de um vulcão pronto a explodir. Mas na verdade, é a sua válvula.
A solução seria simples se Lula pudesse mudar de bases políticas, zerar o jogo; ou se lhe fosse possível, por gesto de vontade, alterar a política econômica. Não pode. Ilusão acreditar que os tucanos virão em socorro do adversário para o qual perderam a eleição. E mesmo que viessem, não viriam em bloco. Fracionados, não compensariam o que o governo perderia no PMDB e mesmo em parcela do PT. Uma ampla reforma partidária seria uma saída e parece que Lula, antes da crise, investia nisso. Atribui-se ao Luís Gushiken o poder de influenciar o presidente nesta direção, o que tem servido para que mais um se desgaste no núcleo duro e no partido. O certo é que essa possibilidade ficou absolutamente distante. Nada autoriza mais esta hipótese. Por sua vez, dada a brutal carência de investimentos privados e a enorme mobilidade de capital, mudar a política econômica seria, de fato, o caos.
Ao que parece, só a melhora da economia pode abrandar a fervura presente. Não é à toa que o ministro Palocci pede que o deixem trabalhar. Ainda assim, seu trabalho dependerá de acordos internos que permitam a implementação de políticas que dêem coerência ao governo. Desarmar espíritos, no entanto, leva tempo. Para isto, continuará dependendo de Dirceu. Com a proximidade das eleições, as pesquisas tendem a demonstrar o nível de insatisfação e exigência dos eleitores, aumentando a ansiedade dos políticos. É mesmo: é o "diabo na rua, no meio do redemunho". Circulo vicioso de infernos intermitentes. O ciclone de Santa Catarina pode ser apenas o princípio. Se os atores políticos do campo do governista são mesmo pragmáticos, como se acredita, chegou a hora de provar isso. Repactuando alianças talvez seja possível retirar esse diabo das ruas, sem exorcismos.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.
Neamp - Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001
São Paulo - SP - Brasil
Tel/Fax.: (55 11) 3670 8517
neamp@pucsp.br

Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001




Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) de Miguel Chaia e Vera Lúcia Michalany Chaia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Unported. Based on a work at www.pucsp.br. Permissions beyond the scope of this license may be available at http://www.pucsp.br.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Design DTI-NMD |