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Incompetência imunológica

Carlos Melo
17/03/2004

Saprófito é um microorganismo que se nutre de animais e plantas em decomposição. Grosso modo, pode ser classificado como uma bactéria oportunista. Existem bactérias, como a pseudomonas aeruginosa que não causam doenças em pessoas sadias e imunocompetentes, mas infectam aqueles cujas defesas estão comprometidas, como, por exemplo, os queimados. Assim, uma rápida pesquisa na Internet a respeito do reino bacteriano pode nos dar elementos mais do que contundentes sobre o que tem se passado nos últimos dias no reino da política, no Brasil.

Independente do mérito do escândalo Waldomiro Diniz, de lá para cá, o governo se abateu com as queimaduras a ponto de perder a iniciativa. Não governa; tem sido governado pelos fatos e fica exposto a toda sorte de bactérias oportunistas. A capacidade de condução do jogo político - no Congresso Nacional, na sociedade, nos partidos de sua base de sustentação (sobretudo, no PT) - desapareceu conforme a roda da fortuna começou a girar num sentido contrário ao desejado.

No ano que passou, Lula estabeleceu diálogos com os mais diversos setores. Tudo correu bem, o capital político do governo era alto e ainda havia na máquina pública toda multidão de cargos para indicação de aliados e convenientes. Por concordância, tática, perplexidade, subserviência ou medo, os atores políticos acatavam as determinações do governo. Deixavam-se conduzir na esperança de um projeto: o ano de 2004. Se 2003 estava marcado para morrer; 2004 era a crônica anunciada da retomada do crescimento. O crescimento seria o remédio para todos os males. Mas, sabe-se agora, ele depende de iniciativa política e não só de condução econômica.

Ao contrário do que disse o presidente, durante a reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico, o crescimento não ocorre apenas porque se quer que ele ocorra e nem virá por inércia apenas porque se tenha capacidade produtiva ociosa. O desenvolvimento depende, acima de tudo, de que todos acreditem na sua viabilidade. A crença fundamenta ações de agentes econômicos, investidores, e cidadãos que acabam por construir, também eles, as condições para o crescimento. Isto daria ensejo a um circulo virtuoso, onde o sucesso eleitoral do governo e aliados, nas eleições municipais, era o aspecto mais festejado. Mas, como diz a frase atribuída a Garrincha, "não combinaram com os russos". Os primeiros abalos vieram e o que era para ser uma gripe está se transformando numa pneumonia. Interesses pessoais que habitavam na periferia do palco político vieram para o centro da cena. Se todos atingirem a todos, será o pior para todos e para o País.

Política requer rumo, formação de consensos e unidade de comando e isto tem faltado. Escaramuças e revezes são naturais na política. Não por isso, o governo deve se paralisar. Parece crucial para a própria manutenção do seu poder, que Lula consiga externar rapidamente sinais de desenvolvimento. Implementar a tal da agenda positiva, construir pontes de diálogo com setores de oposição que lhe possibilitem minimizar a artilharia inimiga, alterar as expectativas e mudar a percepção de que a vaca foi para o brejo. Mas para isto o governo precisa se livrar das tais bactérias oportunistas - ou criar anticorpos que as combatam, minimizando sua ação.

Se o pronunciamento do presidente, no Conselhão, serviu para esvaziar as críticas à gestão econômica, implícitas na nota oficial do PT, e demonstrar que a política não é do ministro Palocci, mas do próprio presidente; de lá para cá, vários fatos escureceram as luzes que se esperava a partir de sua fala. O PMDB, por exemplo, mostrou que sua nota musical será a da ambigüidade. Com um olho no gato, outro na sardinha, apoiará Lula dando espaço para a crítica interna que lhe possibilite sempre ensaiar uma debandada, quando e se for o caso. Fez isto com FHC, quando acenava com a possibilidade da candidatura Itamar Franco. Faz agora com Anthony Garotinho e Joaquim Roriz. Nesse ínterim, negocia mais espaços e maior influência. É sempre bom lembrar que o partido se pauta basicamente por objetivos exclusivamente eleitorais e ainda possui setores enviuvados do nacional desenvolvimentismo. Basta lembrar que forjou a sobrevida do Plano Cruzado, em 1986. É possível que o então presidente Sarney não tivesse alternativa, diante do frágil apoio do partido, mas o fato é que o populismo imediatista venceu a preocupação com o longo prazo. Nada garante que esta pressão não torne a ocorrer, ainda que Lula faça profissão de fé em relação à responsabilidade fiscal e à importância de fundamentos econômicos ajustados. Tudo dependerá das condições de governabilidade de que vier a dispor.

Postura semelhante tem se percebido em outros aliados. Depois de solicitar aos motoristas que não bebessem, em comercial durante o carnaval, Waldemar Costa Neto, aparentemente embriagado pelos interesses e problemas internos de seu PL, acha-se no direito de pedir a cabeça do ministro Palocci. Junte-se a isto o que parece ter sido a declaração de guerra do PSDB ao governo Lula: o pedido extemporâneo da CPI Celso Daniel, o encontro com Leonel Brizola e os olhos rútilos do líder Arthur Virgílio denotam que o partido está disposto ao tudo ou nada, diante da fragilidade governista. Teremos, então, a impossibilidade da construção do desenvolvimento econômico, uma vez que a tônica da oposição (com a ajuda de aliados) será mesmo a de obstruir, da forma que for possível, qualquer iniciativa do governo que lhe permita retomar a iniciativa. Cada vez mais o governo dependerá do PMDB, que ambíguo, procurará tirar proveito da confusão.

O ministro José Dirceu, por exemplo, atingido pelo escândalo tem sido obrigado a continuar atuando no front político. No Congresso, as ações dos articuladores e líderes formais do governo são insuficientes, quando não desastrosas. O que menos Lula precisa, neste momento, é de um líder que atue como um macaco em loja de louça. Não é hora de quebrar os cristais. Em virtude disto, Dirceu desloca-se e falha na execução de seu mais importante papel que seria a da articulação executiva do governo. Muitos jogadores atuando no mesmo espaço, embolam o jogo e desguarnecem a defesa. O presidente, em resposta, precisará saber impor limites, redefinindo alianças, agenda e mesmo papéis de colaboradores. Uma nova reforma ministerial não pode ser descartada.

A equipe do presidente está mesmo desconcentrada e exposta a toda sorte de bactéria oportunista. A semelhança com o time de futebol do presidente, o Corinthians, não parece ser mera coincidência. É justo que os torcedores sofram pelo seu clube de coração, mas sucumbir junto com ele, pelo menos, para um presidente da República, parece um exagero.

Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.
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